“Apagaram tudo, pintaram tudo de cinza": entre a confusão e (des)informação cotidiana

06/02/2017

Por Roberta Oliveira Lima – 06/02/2017 [1]

[...] Apagaram tudo Pintaram tudo de cinza A palavra no muro Ficou coberta de tinta 

Apagaram tudo Pintaram tudo de cinza Só ficou no muro Tristeza e tinta fresca [...][2]

Esses dias muito se associou a música cantada por Marisa Monte ao ato promovido pelo prefeito da capital de São Paulo, João Dória, que apagou/pintou de cinza o muro de grafites da avenida 23 de maio – maior mural da América Latina e com obras de artistas como Eduardo Kobra.

Por estudar Direito Ambiental e, principalmente, me esforçar para que todos entendam em minhas aulas que Direito Ambiental está para além do meio ambiente natural e dos jargões como “salve o mico leão dourado”[3] ou “abrace uma árvore” é que o ocorrido no meio ambiente artificial de São Paulo me chamou a atenção. Ademais, o Direito Urbanístico em muito se aproxima do Direito Ambiental, inclusive, encontra-se dentro do próprio ementário de alguns cursos da ainda recente e pouco compreendida disciplina de Direito Ambiental

Enfim, passada a fase de explicação, talvez até desnecessária, da razão que me leva a discutir a intervenção do executivo municipal paulistano em sua paisagem urbana e trazendo à lume um dos objetos do Direito Urbanístico que é o Direito à Cidade e a função socioambiental desta é que passo a tecer algumas considerações sobre o tema que tanta comoção causou nas redes sociais nos últimos dias.

Para além da hipótese aventada por alguns juristas de dilapidação do patrimônio público promovida por Dória e de tudo que girou e pode girar, juridicamente falando - sobre referido ato, algo me incomoda mais do que o rol de direitos afetados por essa situação. Explico: me incomoda a confusão entre arte e sujeira[4]. Me incomoda a confusão – pura e simples, se assim podemos chamar algumas ocorrências que temos vivido cotidianamente. Vivenciamos um tempo de confusão, brutalização, polarização. Isso é patente ao abrir as redes sociais, principalmente o facebook.

Nesse momento, confesso que sinto saudades dos corações cheios de glitter que as tias-avós faziam jorrar pela timeline, pois agora me aterrorizo ao ver as postagens de muitas senhorinhas de bem - e o “de bem” virou, infelizmente, agregador de condutas provocadoras dos mais diversos males... Mas, enfim, voltemos às “senhorinhas de bem”, outrora compartilhadoras de bichinhos e flores coloridas e brilhantes e dos coleguinhas que postavam correntes que requeriam o seu “amém”, o seu “compartilhamento”, sem esquecer, é claro, dos “likes” que algum herói ou heroína mereciam por alguma atitude tomada ou situação difícil de vida enfrentada.

De repente tudo ficou confuso, essas pessoas “de bem”, muitas delas próximas a nós, passaram a se arvorar como especialistas em Política Criminal, Política de Combate às Drogas, Política Carcerária, Direito – do Impeachment aos mais variados Tratados Internacionais de Direitos humanos e, logicamente, Política Partidária.

Grande parte da massa de “gente de bem” foi formado em sites -  que não citarei os nomes, dados à explicações em formas de “memes” ou de quadros com imagens de no máximo 04 ou 05 linhas e – TCHARAM! - de repente, tudo foi compreendido pela população e, logicamente, feroz e rapidamente compartilhado. Visualizou a confusão?

Pois é, voltemos à ela – a confusão! Diante desse caos social, político, jurídico e econômico em que estamos imersos como nação e como planeta, vejo muita confusão. Cito algumas, pois percebo que confundiram: juiz com herói; presídio com centro de tortura e extermínio; policial com justiceiro; direitos humanos como direito para apenas alguns humanos; feminismo com femismo – essa você vai pesquisar, caso não saiba; direitos de hipossuficientes e populações vulneráveis com “mi mi mi”; Direito à cidade com título de propriedade; Justiça Social com comunismo (stalinista, evidentemente. Afinal o capitalismo deu certo – ironia aqui!); Esquerda com PT; Direita com bondade; Liberdade de expressão com discurso de ódio. Arte com sujeira.

Cito esta última confusão entre “arte e sujeira” para voltarmos ao Dória e a toda a sua confusão recente e que mostra, de forma latente, o quanto estamos confusos. Talvez você ache que confusão não seja a palavra correta. Mas como bem lembra a Eliane Brum[5] em suas colunas, no Brasil as palavras parecem ter “deixado de dizer” e hoje temos pessoas “acidentadas” em presídios através de guerras de facções e outras “acidentadas” em quedas de aviões. Surge, então, outra indagação: estamos confusos ou mal informados?

Sabemos que somos mal informados[6]. A informação tem sido porção fatiada e alinhada à discursos dicotomizados[7] e alinhavados para, paradoxalmente, não informar, mas arrebatar compartilhadores e hospedeiros. A consequência é, por óbvio, nefasta. Muita confusão. Muita “falação”. Muito pouco diálogo. Menos ainda compreensão. Tempos inglórios, ainda que líquidos, para lembrar o querido e agora recém falecido Bauman[8]. Que passe logo, então, toda essa confusão projetada, midiatizada e que nos provoca mal-estares à lá Black Mirror[9].

Por fim, sem grandes pretensões ou inserções acadêmicas, singelamente desejo que a confusão dê lugar à compreensão e empatia, pois como finaliza Marisa Monte na canção que começou o texto:

[..] Nós que passamos apressados Pelas ruas da cidade Merecemos ler as letras E as palavras de gentileza Por isso eu pergunto A você no mundo Se é mais inteligente O livro ou a sabedoria O mundo é uma escola A vida é o circo "Amor: palavra que liberta" Já dizia o profeta.


Notas e Referências:

[1] Referência à música gentileza, popularizada na voz da cantora Marisa Monte.

[2] Letra da canção gentileza já referenciada no título do texto.

[3] Que são pertinentes, diga-se de passagem.

[4] Sem adentrar na extensa discussão entre pichação como arte e o que seria a “arte”.

[5] BRUM, Eliane. O golpe e os seus golpeados. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/20/opinion/1466431465_758346.html. Acesso em: 30 de jan de 2016.

[6] Vale até recordar uma frase atribuída ao ator Denzel Washigton e que diz mais ou menos assim, em livre tradução: "Se você não ler os jornais você é um desinformado. Se ler, é um mal informado."

[7] Umas aulinhas de análise do discurso cairiam muito bem em nossas escolas e faculdades.

[8] Desde sua obra “Modernidade Líquida” a outras obras conexas de sua autoria.

[9] Série inglesa transmitida pela Netflix e que aborda através de cenários e roteiros distópicos realidades cada vez mais cotidianamente comuns em nossa sociedade espetacularizada e midiatizada.


Roberta Lima. . Roberta Oliveira Lima é Advogada, Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Gestão de Políticas Públicas (UNIVALI). Professora Universitária.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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