Ainda sobre feminicídios… crime passional ou violência de gênero?

24/03/2016

Por Soraia da Rosa Mendes - 24/03/2016

No dia em que a notícia do assassínio de uma mulher, em vez de esmiuçar os antecedentes quasi (sic) sempre desfigurados da sua vida íntima, constituir-se, apenas, um libelo desassombrado contra a covardia da besta humana que se revelou no crime, os homicídios passionais decrecerão (sic) de noventa por cento. (…) Será lindo que o mundo saiba que temos poetisas, declamadoras, cientistas, escultoras, pianistas, engenheiras, professoras, médicas, advogadas, e, em futuro não muito distante, até constituintes. Mas seria infinitamente mais nobre que se lhe pudesse dizer que a mulher, entre nós, mesmo quando não declame, nem pinte, nem toque, nem trabalhe, nem vote, tem, ao menos, o direito rudimentarissimo (sic) de viver…

Hoje vou revisitar um tema sobre o qual tive oportunidade de escrever há vários anos: crime passional e violência de gênero. Uma pena... pois gostaria muito que minhas linhas anteriores já se tivessem tornado obsoletas...

O texto que afixei em epígrafe está publicado na obra O Amor e a Responsabilidade Criminal de Roberto Lyra, sendo ainda mais estranho que o clamor do jurista, em um capítulo intitulado Crimes Passionais, e escrito há quase noventa anos, precisamente em 28 de abril de 1931, ainda revele atualidade em sua substância.

O “rudimentar direito de viver” ainda não é garantido às mulheres, mesmo que já de muito tempo votemos, sejamos constituintes e até uma de nós seja presidenta de nosso país. Mais do que estranho, é inadmissível a atualidade da denúncia de Lyra sobre o julgamento moral a que a mulher, vítima do crime, é submetida no contexto de pretensos crimes passionais.

Ainda olhando para o tanto que já foi dito e escrito sobre isso, lembro que há trinta anos, no seminal trabalho Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais, a antropóloga Mariza Corrêa buscou entender como nossa sociedade define as mulheres; delimita o lugar que lhes cabe na estrutura social; e que tipo de exclusão social e sexual é produzida pelas práticas jurídicas. A pesquisadora analisou processos de homicídios “passionais” ocorridos em Campinas nas décadas de 50 e 60 e, com esta análise, constatou a forma com a qual o Poder Judiciário atuava em tais delitos.

Segundo Corrêa, era analisada a conduta moral masculina e feminina em detrimento da análise específica do fato delituoso. E eis aí o ponto no qual Roberto Lyra tocava, e que me inspira a buscar o porquê de insistirmos em falar em passionalidade e não em violência de gênero quando a vida de uma mulher é ceifada por seu marido, ou ex-marido, companheiro, namorado, ou ex-namorado, ou mesmo um pretendente repelido.

Não me compete adentrar os meandros da diferença entre amor e paixão, que me parece muito mais dada a psicólogos/as ou pesquisadores da área. Mas me cabe como jurista buscar compreender por que a conduta criminosa do homem que agride e mata “sua” mulher ainda pode ser tomada pela sociedade, e não raro pelo Judiciário, como signo de um amor irracional.

Com a devida vênia, para usar a uma das mais formais e conhecidas expressões da erudição jurídica (o que, confesso, me cansa um pouco...), essa compreensão não se sustenta.

Foi com muito esforço, diga-se de passagem, que se construiu no âmbito internacional, americano e nacional um conjunto de normas que definem a violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, tanto na esfera pública como na esfera privada. Nesse sentido, estão, notadamente, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também chamada Convenção “Belém do Pará”, e a própria Lei 11.340/06, batizada de “Lei Maria da Penha”.

No âmbito deste novo (e já nem tão novo assim, pois a lei do feminicídio, por exemplo, acaba de completar seu primeiro ano) contexto normativo, crimes cometidos nas circunstâncias em que abordo neste artigo não são delitos passionais, mas a expressão da violência de gênero. Violência esta que, segundo Maria Amélia Teles e Mônica de Melo, origina-se de uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher que demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos.

Esse tipo de violência não é fruto da natureza ou sentimento, mas sim do processo de socialização das pessoas. E aqui o ponto fundamental para uma (re)definição conceitual: um caso de um ex-namorado rejeitado que mata a pessoa que dizia amar, não é somente um “caso” de um pobre rapaz possivelmente atormentado psicologicamente.

É certo que, dos tantos feminicídios que ocorrem neste país, algum ou alguns hão de ser cometidos por homens com algum sofrimento psíquico. Essa hipótese não pode ser descartada. Mas, a patologia verdadeiramente letal para as mulheres é o resultado de relações de gênero que autorizam (ou justificam) a eliminação de um “objeto” supostamente amado. Se isso é doença, seu nome é machismo.

É preciso que se reconheça, sem recursos retóricos, que o motivador das ameaças, lesões corporais (muitas gravíssimas) e feminicídios decorrem da estrutura patriarcal que sustenta, na relação entre os seres humanos de sexos opostos, a existência, ainda hoje, de poderes selvagens, tal como aponta Ferrajoli em Direito e Razão, ao mencionar a não atuação estatal no espaço familiar. É necessário que a vítima deixe de ser julgada, em juízo e fora dele, e que medidas efetivas sejam adotadas para prevenir a violência contra a mulher.

Assim como comecei, termino com citação do então Promotor de Justiça no Rio de Janeiro nos anos 30, o jurista Roberto Lyra, para conclamar que nunca deixem vasia (sic) a tribuna da acusação particular nos tribunais do povo. Guardem-na, sempre, invariavelmente, sistematicamente, quando não possa ser com o auxílio imediato da sua palavra, ao menos com o prestígio inestimável da sua presença. Façam sentir á (sic) consciência dos juízes de fato que as vítimas dos matadores passionais não são apenas os esquemas que os autos arquivam para a indicação legista das lesões que causaram a morte – eram creaturas (sic) vivas (…) mães algumas, filhas outras, esposas muitas, mulheres todas. 

Somos mulheres, temos um direito “rudimentar” à vida e quem ama não mata.


Soraia da Rosa Mendes. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.. .


Imagem Ilustrativa do Post: Alyssa // Foto de: Alyssa L. Miller // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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