Ainda sobre a delação premiada  

09/05/2019

 

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

O presente artigo é apenas um complemento ao que já foi dito em outra oportunidade, em “A delação premiada e o esquadrão suicida[1].

Naquela oportunidade questionei até que ponto estaríamos dispostos a abrir mão de garantias para suposta proteção de bens jurídicos e se uma delação não seria uma forma de tortura psicológica, entre outras coisas.

Lembrei do momento no qual vivemos, em que todos que criam uma conta no Facebook se acham capazes de opinar, de forma fundamentada, sobre direito, justiça, constituição e sistema criminal[2].

“Nessa toada, misturam a insatisfação política com a “necessidade”, ou não, de se proteger garantias constitucionais. Falam em impeachment sem nunca terem lido a Constituição. Debatem, contra ou a favor, sobre o “crime de responsabilidade” e não sabem o que é crime em seu sentido dogmático. Querem reduzir a maioridade penal, mas não sabem nem que argumento utilizar. Criticam advogados por ainda não terem precisado de um...” (RODRIGUES, 2016)

Questionei “como um país no qual impera o Estado Democrático(?) de Direito, em que quase metade da população carcerária é de presos provisórios, pode se dizer “país da impunidade”, sendo que o Estado de Inocência é um de seus princípios basilares?” (RODRIGUES, 2016).

E mais!

Como poderiam as instituições querer cada vez mais mitigar garantias constitucionais sob o pretexto de acabar com a impunidade[3]?

Aury Lopes Junior falou muito bem, como não poderia deixar de ser, sobre a delação premiada quando foi ouvido sobre o tema na CPMI da JBS[4]. Afinal, “se o Estado tem provas, não precisa negociar com bandidos”, pois “O Estado falhou no seu poder de investigar e apurar crimes”. Usando ainda de suas palavras “a banalização demonstra a incompetência do Estado em apurar crimes”, e é isso que temos que ter me mente!

E eu complemento com o que já havia dito:

Utilizam-se de um mecanismo de “colaboração”, para ter indícios de cometimento do crime... Isso se não questionarmos eventual liberdade na delação, afinal, ela não deve ter como delator um sujeito preso, mas sim um livre[5]! Onde haverá espontaneidade ou voluntariedade? E será que a delação, quando o sujeito está preso, é feita de forma penosa, tortuosa[6]? (RODRIGUES, 2016)  

Relembro, em tempo, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

O perigo não é tão evidente, mas reside no fato de que se assumirem tal lugar (trata-se de um engajamento), viram – como diz ALEXANDRE MORAIS DA ROSA – os NICHOLAS MARSHALL de toga, prontos a lutar contra a lavagem de dinheiro, a corrupção, o tráfico de entorpecentes, etc., custe o que custar, nem que para isto direitos e garantias sedimentados e erigidos ao grau de dogma constitucional sejam passados para trás, como se obstáculos – e não conquistas históricas da humanidade – fossem. Agrava-se a situação, como é visível no cotidiano, quando os crimes que se “combatem” têm repercussão, por força dos meios de comunicação[7]. (COUTINHO, 2006, p.76)

Daniela Bonaccorsi faz a necessária observação de que:

É inadmissível, a partir de uma interpretação constitucional do processo, os argumentos de “paz social”, “prevenção de riscos”, busca de um resultado acima de tudo, contra um sujeito que já é “etiquetado” de inimigo pela sociedade e pela mídia. Não há argumento que possa fundamentar uma limitação a direitos e garantias fundamentais. (BONACCORSI, 2017)[8] [g.n.]

Trabalhei, também, a espetacularização do processo penal... E, em uma comparação da delação premiada com a confissão, Sílvia Alves cuidando do Direito Penal Setecentista:

A confissão do acusado é por si insuficiente para a condenação. Presume-se que a confissão é o resultado do desespero e como tal contrária às leis da natureza e da religião, que não deixam aos homens a livre disposição da sua vida e da sua honra[9]. (ALVES, 2014, p. 784).

Contudo, algo não foi dito. E agora faço este complemento.

Participando de uma banca de monografia, sobre o tema Delação Premiada, tive o prazer de debater o assunto não apenas com o aluno, como também com os componentes da banca[10].

Falávamos da decretação de prisão preventiva para forçar o investigado a delatar.

Uma grande verdade é que parece ser de uma total incoerência que alguém seja preso sob a justificativa da famigerada “ordem pública”. Aliás, não é este a única justificativa para a decretação de prisão preventiva, conforme preceitua o art. 312 do Código de Processo Penal.

Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.  

Parágrafo único.  A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o). [g.n.]

É interessante notar que sempre que se afirma que a justificativa para a prisão dos investigados, especialmente na Operação Lava Jato, tem sido para “forçar” o acusado a delatar, os argumentos tanto dos juízes, como dos promotores, tem sido de que tais prisões têm sido decretadas em razão de existirem os requisitos legais para sua decretação.

Mas esta lógica que é problemática. Afinal, se havia, de fato, um dos requisitos do art. 312, CPP, para a decretação de prisão preventiva, com a delação, tal fundamento deixou de existir?

Se Tício foi preso preventivamente pela necessidade da garantia da ordem pública, ao delatar, passa a estar assegurada a ordem pública? Pois, com a delação, todos têm sido colocados em liberdade. E se a delação se provar com o tempo falsa? Ou, ainda que não seja falsa, não existirem elementos que corroborem com ela, a garantia da ordem pública foi preservada?

Havia ou não a necessidade de prisão? Esta é a questão maior.

Afinal, caso contrário, para “acabar com a impunidade, cria-se a impunidade[11]” (RODRIGUES, 2016).

 

Notas e Referências

[1] http://emporiododireito.com.br/leitura/a-delacao-premiada-e-o-esquadrao-suicida-por-leonardo-monteiro-rodrigues

[2] Neste sentido, seguimos Leandro Karnal. https://www.youtube.com/watch?v=dGrNc3LkcdM

[3] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/#

[4] https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=12524

[5] Nesse sentido o Ministro Sebastião Reis demonstra sua preocupação com o tema em palestra proferida na EMERJ em 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?list=PLN3KoXwOXUoidtokudsF-OqKPqygbpvov&v=ZOhhgGiabcA

[6] Nesse sentido o Ministro Marco Aurélio Mello também revela a mitigação da espontaneidade quando o indivíduo está encarcerado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AELI0oPJjfY

[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. Acordos de delação premiada e o conteúdo ético mínimo do Estado. Revista Estudos Criminais PUC/RS. Ano VI, nº 22, 2006.

[8] BONACCORSI, Daniela Villani. Lavagem de dinheiro e imputação: seus limites e possibilidades no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: D´Plácido, 2017.

[9] ALVES, Sílvia. Punir e Humanizar. O Direito Penal Setecentista. Lisboa; Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.

[10] Daniela Villani Bonaccorsi e Guilherme Reis.

[11] Em todos os dispositivos precitados, a regra comum é uma redução de 1/3 a 2/3 na pena que será futuramente aplicada àquele que delatar (a semelhança com o brocardo “a confissão é a rainha das provas” não é mera coincidência) Veja-se: a redução ou isenção de pena vem de uma decisão judicial; salvaguardada, portanto, das máculas processuais, pois a palavra final sobre o conteúdo do processo ainda cabe ao Judiciário. (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. Acordos de delação premiada e o conteúdo ético mínimo do Estado. Revista Estudos Criminais PUC/RS. Ano VI, nº 22, 2006, p. 78). [g.n..]

 

Imagem Ilustrativa do Post: Descubrir / Discover // Foto de: Hernán Piñera // Sem alterações

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