Agressores Sexuais. Uma Lei de Megan for Brazil vale a pena?

15/06/2015

Para entender do que falamos

Megan Kanka era uma menina de sete anos que vivia em Hamilton, EUA. Saiu para brincar com uma amiga das redondezas e não encontrou-a em casa, sendo aliciada por Jesse Timmendequas, vizinho de porta, sob o pretexto de brincar com um cachorro (situação típica de chamariz infantil – veja o vídeo aqui e se assuste). Dentro da casa foi violentada sexualmente, asfixiada e colocada dentro de um saco, tendo sido desovada em um parque próximo. Seu corpo foi encontrado no dia seguinte e uma denúnica anônima levou a Polícia até o agressor que confessou o crime. Jesse havia recém saído de uma prisão por crime de índole sexual.

A brutalidade do crime é inegável e não pretendemos mitigar sua gravidade. Jesse foi condenado à pena de morte que, depois da abolição da pena capital, foi comutada em prisão perpétua. O movimento dos familiares de Megan foi intenso e, após três meses, a Lei de Megan (Megan’s Law) foi sancionada pela governadora do Estado de New Jersey. A lógica básica era a de criar um mecanismo de controle e informação de quem são seus vizinhos, especialmente sobre a existência de “predadores sexuais”.

No Brasil, sem regulamentação formal, existem algumas iniciativas isoladas de criação de cadastro de agressores, tanto em sites públicos como privados. Além disso, também, alguns pretendem que o condenado use uma camiseta, uma faixa ou se coloque uma placa em sua casa em que conste expressamente: agressor sexual, na linha da pena pela humilhação ou envergonhamento de inspiração americana. Logo, precisamos discutir o tema.

Reconhecida, entretanto, a legalidade da Lei de Megan pela Corte Suprema Americana, inclusive com efeitos retroativos (aos crimes praticados antes de entrar em vigor), vários Estados americanos editaram leis desta ordem, sob o impacto de outros casos (Aimee Willard, Adam Walsh, Jacob Watterling, Joan Angela D’Alessanro, Polly Klaas). Cabe sublinhar, exemplificativamente, a regulação no Estado de New Jersey, segundo a qual:

  1. O departamento de recursos humanos do Estado precisa avisar o Ministério Público cada vez que um condenado que cometeu certos crimes (incluindo homicídio e crimes sexuais) for posto em liberdade. A acusação é obrigada a notificar o advogado do centro de proteção às vitimas e testemunhas.
  2. O condenado por crimes sexuais, após libertado, é obrigado a se registrar em uma agência especializada ou agência policial da cidade em que vai morar.
  3. O bairro em que o condenado for morar será notificado de sua mudança para vizinhança. A notificação será de acordo com regras estabelecidas pelo Procurador Geral.
  4. Os condenados serão supervisionados pelo resto da vida, desde o momento em que são liberados, em um sistema semelhante ao da condicional.
  5. Nenhum preso por crime sexual terá redução de pena por bom comportamento, a não ser que realize tratamento.
  6. Os condenados por crimes sexuais são obrigados a fornecer amostra de sangue para que o DNA seja armazenado na central de dados.
  7. a internação involuntária é possível para condenados sexuais cuja conduta tenha sido caracterizada por um padrão de comportamento repetitivo, compulsivo.

Assim, tanto a o Estado, por seus órgãos, como o condenado e a sociedade trocam informações sobre o paradeiro e as atividades dos monitorados e, já libertados, sob o manto da Lei de Megan, promove-se um aparato de controle. Anotamos que cada Estado congrega autonomia para regulamentar e a indicação de New Jersey foi meramente exemplificativa.

Há resultados palpáveis da Lei de Megan?

O efeito direto da Lei de Megan, adotada em diversos Estados, não é comprovado, até porque não se pode medir o não-evento. A segregação, estigmatização e exclusão social não decorrem somente dos ditos “agressores sexuais”, dado que em muitos Estados o conjunto dos que devem se registrar e informar o paradeiro vai de simples acusados até condenações por delitos sexuais menores, no que se pode denominar “pânico moral sexual”.

Por isto a estrutura da lei gera muitos conflitos, aponta Margie Fodor. De um lado os que defendem a proteção infantil a qualquer custo e, de outro, os que afirmam se tratar de uma pena perpétua, para além do previsto em lei. Mesmo extinta a punibilidade, o agente permanecerá, para sempre, com a insígnia de agressor sexual (sex offender – confira o site). Além da mitigação de qualquer privacidade, em diversos casos houve espacamento, linchamento e exclusão social, atitudes próprias do “vigilantismo”, em que a Justiça é praticada pelas próprias mãos.

Loic Wacquant sustenta que esta exclusão empurrou os “registrados e monitorados”, tidos como ‘sex offenders’, para os chamados guetos. “A opinião […] sobre os atentados […] contra crianças […] endureceu a tal ponto que hoje eles são considerados não mais como desequilibrados […] mas como desviantes incuráveis que representam um perigo ad eternum. Os dispositivos de registro e notificação da presença de condenados por atentados aos costumes, longe de tranquilizar, atiça o medo irracional das agressões sexuais, […] anula o de fato de o […] direito à intimidade da vida privada.“¹ Como apontado por Wacquant, essas pessoas já condenadas ficam sem possibilidade de recomeçar sua vida. Devido a esses registros, dificilmente conseguem empregos, constituir família e nem mesmo locar um imóvel. Assim, congregam-se em guetos e se transformam em sub-cidadãos, empurrados para clandestinidade.

Presos sem grades, à mercê dos humores de quem os descobre, resta se esconder. O fato de a internet (aqui) ostentar as fotos, endereços, dados pessoais, inclusive para consulta em celulares (aqui), tornou-os cumpridores eternos de penas simbólicas, talvez mais graves do que as reais. O gueto constitui-se, assim, em forma do mercado de trabalho seletivo e do poder de punir do Estado, combinados em fazer “limpeza moral” das ruas e aumentar ainda mais a divisão entre a classe tida como útil para a sociedade e a classe inútil, perigosa e desqualificada. Não raro voltam à prisão ou são mortos, sempre instrumentalizados em sua fragilidade cidadã.

A eterna divisão entre os bons e maus é reiterada. Contudo, “o gueto conjuga quatro componentes do racismo: preconceito, violência, segregação e discriminação.“.² A situação leva seus habitantes à exclusão total e acaba sendo uma punição à pobreza, por obstar oportunidades sociais, conduzindo à punição eterna, sob o estereótipo, ainda, de sex offenders (aqui). Com a lei de Megan, muitos ex-detentos, sem ter pra onde ir, acabam se instalando nessas comunidades, nas quais o potencial de recidiva é manifesto, dada à impossibilidade do recomeço diante do monitoramento, “guetizados” que se tornam. Sabemos que muitos vibram com as mortes, afinal se colocam no lugar das vítimas. A questão, pois, é entender qual o papel do Estado não vingativo.

Para se ter uma noção do impacto dos registros, “Na Califórnia [consulta online aqui], mais de 41 mil criminosos têm uma morada específica. Outros 11 800 estão numa lista separada por cidade e região. Existem ainda mais de 30 mil condenados por ofensas sexuais, como aqueles que foram julgados em tribunais de menores, cujos dados só estão acessíveis às polícias locais. Todos os condenados, sem excepção, devem registar-se e comunicar qualquer alteração de nome ou de morada, sob pena de incorrerem em novo crime. Aqueles cujo histórico é público só poderão ser dispensados da obrigação de registo com o perdão do governador.” (aqui)

O que se pode dizer é que criou uma burocracia de informes, apresentações e controles que impedem que a atividade policial possa se focar em outras questões, inclusive casos, ou seja, criou custos de implementação, cujos resultados são de duvidosa eficácia, ainda que aparentemente se tenha feito algo.

Como se situar:

A questão do crime sexual contra crianças movimenta um lado oculto em cada um de nós e o processo penal deveria ser o mecanismo de apuração da responsabilidade penal. Apurada a culpa cabe a punição. A discussão sobre tratamento obrigatório ou mesmo castração química renderá outro artigo, no futuro, embora já antecipemos nossa ausência de entusiasmo. O que se pode dizer é que o modelo de registro e monitoramento ganha fôlego na Comunidade Européia (aqui) e se espraia por aqui, a despeito de sua indemonstrada eficácia, salvo para apaziguar os medos morais de todos nós.

Fato é que a Lei de Megan não impediu novos crimes, nem se pode dizer, com dados, que tenha mitigado a ocorrência (aqui), mas serve, em princípio, como lenitivo da necessidade de se fazer alguma coisa e se cercar de vizinhos aparentemente de confiança, como se isso fosse tão simples, segregando todos que entram na tarja “sex offender” para o gueto. A abertura pública do perfil e da identidade, dita transparência, mostra-se como uma das faces da “guetização” do mundo pós-cárcere, quando não a abertura para linchamentos reais, em nome da proteção da infância em risco, cujos efeitos emocionais não encontram limites na razão. O impacto da tecnologia do monitoramento precisa ser pensado em bases racionais, como aponta Augusto Jobim do Amaral (aqui) e Túlio Vianna (aqui), dado que pode estar sendo instrumentalizada para efeitos perversos.

Para que possamos nos posicionar, então, sobre as propostas existentes, especialmente a criação de uma Lei de Megan for Brazil, precisamos discutir os dados efetivos da eficácia do modelo, cujo preço subjetivo e dos direitos individuais, não se mostra demonstrado. É claro que discutir a temática ganha um aroma emocional, desprovido de razão e, não raro, banhado por sangue. O papel do Estado é compreender o desejo de vingança da vítima, até porque em alguns casos pode-se estar acusando um inocente, organizando um certo papel civilizatório. Contudo, quando o populismo penal adentra as políticas de controle social, como vemos hoje, talvez tenhamos a reiteração de programas televisivos explorando a temática. Não queremos nenhuma criança violentada, como não queremos impedir, ninguém, de poder recomeçar a vida. O tema está aberto e a primeira coisa que podemos dizer é que não há uma única demonstração, efetiva, de que haja eficácia real da Lei de Megan, para além do imaginário. Os custos de implementação, tanto do Estado, como de condenados, todavia, são palpáveis e mortais, em todos os sentidos.


 Notas e Referências:

¹WACQUANT, Loic. A Onda Punitiva, Punir aos Pobres. Rio de Janeiro: Revan, 2007

² WACQUANT, Loic. As duas Faces do Gueto. São Paulo: Boitempo, 2007

3. FODOR, MARGIE. Megan’s Law: Protection or Provacy, Issues in Focus. EUA Enslow Publishers, 2001

Sites Consultados:

http://meganslaw.ca.gov/homepage.aspx?lang=PORTUGUESE

http://www.missingkids.com/home

www.jwf.org

www.pollyklaas.org

https://www.youtube.com/watch?v=27zaMrCHM_E

http://www.sexoffender.com/

http://pt.m.wikihow.com/Saber-Se-H%C3%A1-um-Criminoso-Sexual-Registrado-em-sua-Vizinhan%C3%A7a

http://pt.4androidapps.net/apps/sex-offenders-search-download-218175.html

http://www.brazilianvoice.com/bv_noticias/pedofilo-irmao-do-assassino-da-lei-megan-desaparece-em-new-jersey.html

http://www.meganslaw.ca.gov/

http://www.ionline.pt/378052

http://observador.pt/2014/09/02/lei-contra-pedofilia-e-uma-diretiva-comunitaria-e-devia-estar-em-vigor-ha-nove-meses/

http://www.funhen.com/o-que-e-a-lei-de-megan-para-washington/

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/viewFile/8110/6044


Imagem ilustrativa do post: esse Timmendequas, right, accused of the kidnapping, rape and murder of Megan Kanka, in 1994, will remain in prison.

Foto de: AP File Photos

Disponível em:http://www.lehighvalleylive.com/breaking-news/index.ssf/2011/06/jesse_timmendequas _who_killed.html

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