AFINAL, O QUE É UMA DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS?

17/10/2019

No Código de Processo Penal, como se sabe, há um dispositivo permitindo que o Tribunal de Justiça ou o Tribunal Regional Federal (conforme seja a competência), julgando procedente um recurso de apelação, determine a realização de um novo julgamento pelo Tribunal do Júri, sempre que a decisão dos jurados tenha sido manifestamente contrária à prova dos autos. Trata-se do art. 593, III, “d”, c/c § 3º., não se admitindo, porém, pelo mesmo motivo, uma segunda apelação, nos termos do art. 593, § 3º., in fine.

Para ilustrar, observa-se que a origem deste dispositivo está no art. 79, § 1º., da Lei nº. 261 de 03 de dezembro de 1841, que reformou o Código do Processo Criminal do Império, in verbis:

Art. 79. O Juiz do Direito appellará ex-officio:

§1º. Se entender que o Jury proferio decisão sobre o ponto principal da causa, contraria á evidencia resultante dos debates, depoimentos, e provas perante elle apresentadas; devendo em tal caso escrever no processo os fundamentos da sua convicção contraria, para que a Relação á vista delles decida se a causa deve ou não ser submettida a novo Jury. Nem o réo, nem o accusador ou Promotor terão direito de solicitar este procedimento da parte do Juiz de Direito, o qual não o poderá ter, se, immediatamente que as decisões do Jury forem lidas em publico, elle não declarar que appellará ex-officio; o que será declarado pelo Escrivão do Jury.”

Pergunta-se, então: aquele artigo do nosso Código de Processo Penal é compatível com a Constituição Federal, mais especificamente, quando se assegura a soberania dos vereditos?

Acho que sim, desde que, efetivamente, e indene de dúvidas, os julgadores leigos tenham decidido sem nenhum amparo nos elementos de prova produzidos ao longo da instrução criminal.

Assim, quando os jurados decidiram, rigorosamente, de acordo com uma das versões apresentadas por uma das partes (e com os respectivos elementos de prova), não é cabível um novo julgamento (salvo, evidentemente, a ocorrência de alguma nulidade), especialmente à vista da consagrada soberania, típica dos julgamentos populares no Brasil, disposição prevista em quase todas as constituições republicanas, sendo, hoje, cláusula pétrea inserida no art. 5º., XXXVIII, “c”, da Constituição.[1]

A propósito, Frederico Marques concebia a soberania popular, já constitucionalmente assegurada, como “a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados ser substituída por outra sentença sem essa base. Os veredictos são soberanos, porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva. O problema se situa, assim, no campo da competência funcional. Sobre a existência de crime e responsabilidade do réu, só o júri pode pronunciar-se, o que faz através de veredictos soberanos. Aos tribunais superiores, o objeto do juízo, na sua competência funcional, se restringe à apreciação sobre a regularidade do veredicto, sem o substituir, mas pronunciando ou não pronunciando o sententia rescindenda sit.”[2]

Comentando o art. 141, § 28, da Constituição de 1946 – que também trazia expressa a soberania dos veredictos -, José Duarte, afirmava que “somente em casos excepcionais a revisão do veredicto poderá caber. Injustiça de julgamento jamais a legitimaria” e, “somente mediante prova de erro grosseiro de falsidade, de novas provas que deem ao caso feição absolutamente diversa do conhecido e apreciado no processo, é que poderá motivar uma revisão.”[3]

Mesmo Rui Barbosa preocupou-se com a Instituição do Júri, apontando-lhe, “em matéria penal, como ´a mais alta expressão da consciência popular`”, e lhe atribuindo “a mais elevada eminência e o mais inalienável primado entre as instituições republicanas.[4]

Portanto, quando a legislação processual penal brasileira desautoriza o veredito anterior e determina que o acusado seja submetido a novo julgamento popular, exige que aquela primeira decisão tenha sido manifestamente contrária à prova dos autos, ou seja, que tenha havido patente error in judicando, razão pela qual “as legislações de quase todos os países declaram inapeláveis as decisões emanadas do veredictum.”[5]

É preciso, ao se analisar um recurso em que se contesta a concordância do veredito popular com o material probatório trazidos aos autos, a máxima atenção com a soberania do Júri, pedra fundante e razão de ser do julgamento popular, goste-se ou não dele!

A doutrina brasileira, desde os clássicos, sempre defendeu esta mesma tese, senão vejamos:

Para Câmara Leal era “essencial que o veredicto não encontrasse apoio algum nas provas existentes nos autos ou produzidas em plenário. Faz-se mister uma oposição absoluta entre a decisão e as provas. Uma vez que estas, embora deficientemente ou incompletamente, autoriza de certo modo a decisão, explicando-se a mesma por se ter o júri baseado em alguma versão existente nos autos, embora desautorizada por outras provas também existentes, já não se poderá dizer que o veredictum não encontrou apoio algum nas provas.” Então, advertia que não se pode sair “do extremo dos julgamentos injustos pela soberania do tribunal popular para outro não menos prejudicial dos julgamentos excessivamente rigorosos pelos juízes colegiais dos tribunais superiores.”[6]

Espínola Filho afirmava não restar dúvida de que, para se anular o veredito, era “necessário o total, manifesto desprezo da prova dos autos”, e que a decisão do Júri anulável “é aquela que não encontra nenhum apoio na prova, que é aberrante, insustentável, evidentemente divorciada dos elementos de convicção que se reúnem no processo.”[7]

Também Bento de Faria só admitia a procedência de tal apelação “quando a decisão não encontrasse apoio algum nas respectivas provas; donde resulta que qualquer prova que possa legitimar o veredictum, ainda quando não seja completa, mas suscetível de arrimar a deliberação será bastante para desautorizar o provimento do recurso.”[8]

Contemporaneamente, veja-se o Professor Tourinho Filho:

É imperioso, contudo, esteja a decisão de todo dissociada das provas dos autos. A lei diz: manifestamente contra a prova dos autos. É preciso que a decisão dos jurados derive do acervo probatório. Exige-se que a decisão dos jurados não encontre arrimo em alguma prova. Afinal de contas, os jurados têm inteira liberdade de julgar, e essa liberdade lhes confere o direito de optar por uma das versões. Se a sua decisão é estribada em alguma prova, não se pode dizer ser ela manifestamente contrária ao apurado no corpo do processo”.[9]

Dos autores da nova geração, destacamos, com este mesmo entendimento, Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró, respectivamente:

Não basta que a decisão seja ´apenas` contrária à prova dos autos; ela deve ser, evidentemente, inequivocamente contrária à prova. A soberania das decisões do júri impede que o tribunal ad quem considere que os jurados não optaram pela melhor decisão, entre as duas possíveis. Não lhe cabe fazer esse controle. Apenas quando uma decisão não for, desde uma perspectiva probatória, possível, é que está o tribunal autorizado a cassar a decisão do júri, determinando a realização de um novo julgamento.[10]

Se as provas indicam duas possíveis soluções, cada uma delas admissível segundo um determinado segmento da prova, a decisão dos jurados que opte por qualquer uma delas não poderá ser considerada arbitrária e manifestamente contrária à prova dos autos. Fácil concluir que esta construção permite, em suma, que os jurados, tranquilamente, no caso de dúvida, optem por condenar o acusado.”[11]

Pacelli e Fischer, em obra conjunta, asseveram que “arguição desse dispositivo como forma de afastar o que decidido pelo juiz natural (tribunal popular) deve ser aplicado de forma excepcional. É dizer, naquelas situações absolutamente incontestáveis nas quais a decisão dos jurados desbordou de toda prova existente nos autos”, somente podendo ser anulada a decisão “se a conclusão a que chegar o conselho não tiver amparo razoável em nenhuma prova colacionada aos autos”, mesmo porque a apelação de que trata o art. 593 do Código de Processo Penal “não pode servir como supedâneo para alterar toda e qualquer decisão dos jurados, que, como referido, tem sua soberania garantida constitucionalmente.” Assim, apenas “em caso manifestos, absurdos, não poderá prevalecer decisão que contrarie totalmente a prova existente nos autos criminais.”

Para estes mesmos autores, “é preciso ter extremo cuidado. Não se poderá pleitear a nulificação do que decidido pelo Júri se houver nos autos provas que amparem tanto a condenação quanto a absolvição. Nesse caso, não se está diante de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, mas unicamente de adoção pelo Júri (pelo seu livre convencimento, sequer motivado – uma exceção ao art. 93, IX, CF/88) de uma das teses amparada por prova presentes nos autos. Nessas situações, não de se falar em admissibilidade do recurso de apelação forte no art. 593, III, d, CPP.”[12]

Do entendimento da doutrina não dissente a jurisprudência reiterada do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.[13] Aliás, “a jurisprudência brasileira pauta-se pela manutenção do resultado do julgamento, somente acolhendo o apelo quando a decisão for absolutamente dissociada da prova, sem a menor base probatória.”[14]

Por fim, relembrando mais uma vez Câmara Leal, “sem respeito à livre apreciação das provas pelos juízes de fato, o júri tende a perder sua razão de ser, passando de tribunal popular, criado para o julgamento pelos pares, a simples simulacro de tribunal, com suas funções constantemente usurpadas pela justiça togada, convertida em árbitro absoluto e soberano das decisões.”[15]

Assim, determinar a realização de um novo julgamento quando os jurados admitiram uma das versões trazidas por uma das partes, cuja prova consta dos autos, é fazer tabula rasa da soberania das decisões do Tribunal do Júri, que só pode ser relativizada quando os jurados empreenderam um erro grosseiro. Pode-se discordar da decisão, entendê-la injusta, por exemplo, mas não necessariamente contrária à prova dos autos.

 

Notas e Referências

[1] A Constituição Federal de 1937, extraparlamentar, nada dizia acerca do Júri.

[2] MARQUES, José Frederico, A Instituição do Júri, Campinas: Bookseller, 1997, p. 80.      

[3] DUARTE, José, A Constituição Brasileira de 1946, volume 3, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 77.      

[4] BARBOSA, Rui, O Júri sob todos os aspectos, Rio de Janeiro, 1950, p. 48.      

[5] MARQUES, José Frederico, A Instituição do Júri, Campinas: Bookseller, 1997, p. 75.   

[6] LEAL, Câmara, Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, Volume IV, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943, p. 82.

[7] FILHO, Espínola, Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Volume VI, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1961, p. 155.

[8] FARIA, Bento de, Código de Processo Penal, Volume II, Rio de Janeiro: Record Editora, 1960, 2ª. edição, p. 322.

[9] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Código de Processo Penal Comentado, São Paulo, Saraiva, Volume 2, 11ª. edição, 2008, páginas 354/355.

[10] LOPES JR, Aury Lopes, Direito Processual Penal, São Paulo, Saraiva, 15ª. edição, 2018, p. 1.039.

[11] BADARÓ, Gustavo Henrique, Manual dos Recursos Penais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 234.

[12] PACELLI, Eugênio e FISCHER, Douglas, Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência, São Paulo: Editora Atlas, 10ª edição, 2018, p.1.231.

[13] Habeas Corpus nº. 44.176-RJ; Habeas Corpus nº. 120.967/MS; Habeas Corpus nº. 141.598/GO; Habeas Corpus nº. 70.962/SP; REsp 690.927/CE; REsp 779.518/MT; AgRg nos EDcl no AREsp 42.431/PR; AgRg no AREsp 983.373/SP; Habeas Corpus nº. 232.885/ES; Habeas Corpus nº. 96242; Habeas Corpus nº. 85904.

[14] LOPES JR, Aury Lopes, Direito Processual Penal, São Paulo, Saraiva, 15ª. edição, 2018, p. 1.039.

[15] Obra citada, p. 82.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura