Afinal, a quem esta OAB representa? O pedido de impeachment pela OAB e a tentativa de golpe de Estado em curso no Brasil – Por Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Paulo Roberto Iotti Ve

31/03/2016

No afã de ser protagonista no cenário político nacional e correndo o risco de contrariar parte de sua própria história institucional[1], o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, através de seu Presidente, apresenta denúncia por crime de responsabilidade em face da Presidente Dilma, no dia 28 de Março de 2016, perante o Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Eduardo Cunha[2]. Como fundamentos jurídicos, invocou as “pedaladas fiscais” (sic), a nomeação do ex-Presidente Lula para o cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil, a renúncia fiscal à Copa do Mundo e a delação premiada do Senador Delcídio do Amaral, quanto à acusação feita por este de que a Presidente teria conversado com o Presidente do Supremo Tribunal Federal e nomeado um Ministro para o Superior Tribunal de Justiça com finalidades (para simplificar) escusas.

Já nos manifestamos sobre os três primeiros fundamentos em prévio artigo sobre o tema, também disponibilizado no Empório do Direito[3], razão pela qual os retomaremos aqui apenas brevemente, esclarecendo alguns pontos.

Em primeiro lugar, cabe considerar que pessoas jurídicas não têm legitimidade para ingressar com denúncia popular por crime de responsabilidade, apenas os cidadãos, nos termos do art. 14, da Lei 1.079/50. Na verdade, o chamado “pedido de impeachment da OAB” foi juridicamente encaminhado por seu atual Presidente do Conselho Federal, Cláudio Lamachia, na condição de pessoa física; embora, politicamente, assim pretenda agir em nome da maioria do Conselho Federal que, reunido, aprovou parecer no sentido desse ingresso, conforme amplamente divulgado, inclusive, no próprio site da entidade.[4]

Para enfrentar as questões da pedaladas fiscais, o chamado pedido da OAB argumenta que pode haver crime de responsabilidade em relação a mandato anterior, já que a possibilidade de reeleição significaria uma continuidade do mandato presidencial. Para subsidiar, a OAB lança do argumento de que quando da promulgação da Constituição, o art. 86, §4º não previa a possibilidade de reeleição, que só veio a lume com a edição da Emenda Constitucional 16/97[5].

Há, aí, um equívoco interpretativo. É que o pleito olvida a existência do art. 82 que expressamente consigna que o mandato presidencial é de 4 (quatro) anos e, caso reeleito, o Presidente inicia um novo mandato[6]. Conforme elucida Gilberto Bercovici, não fosse assim, não se precisaria de uma nova eleição, uma nova posse, confirmação e nomeação de Ministros na nova posse: “O art. 15 da Lei 1.079/1950 só pode ser interpretado de acordo com o disposto na Constituição, ou seja, eventual denúncia só pode ser recebida durante o mandato presidencial a que a ela se refere. Qualquer outra interpretação levaria ao paroxismo de interpretarmos a Constituição segundo a lei, e não a lei conforme a Constituição”[7]. O fato da Constituição ter sido alterada para prever a reeleição em nada mudou o dado do art. 82 quanto à duração de cada mandato. Cessado este, cessa a possibilidade de arguição de crime de responsabilidade – e não se pode, por alquimia hermenêutica, transformar dois mandatos em um único mandato (os limites semânticos do texto constituem o notório limite ao labor interpretativo). Assim, impossível a responsabilização das “pedaladas fiscais” (sic), posto que foram feitas no mandato anterior. Nessa medida, irrelevante o Decreto 8.535/2015 ter abolido as tais “pedaladas fiscais”, até mesmo porque eram elas aceitas pela jurisprudência do TCU. A modificação do Decreto fez com que a Presidente também tomasse medidas para abolir as pedaladas em atitude deferente com o novo posicionamento do TCU.

Como demonstramos no citado artigo, as “pedaladas fiscais” (sic) imputadas à Presidente da República não se constituem como crime de responsabilidade. Com efeito, o que constitui causa para o impeachment (nos termos da Lei do Impeachment – Lei 1.079/50) é a realização de operação de crédito com entes federativos ou integrantes de sua Administração Indireta (art. 10, item 9). A uma, não há “operação de crédito” aqui, consoante o disposto no art. 29, III, da Lei de Responsabilidade Fiscal e no art. 3º da Resolução do Senado n.º 03/01, como bem explicado no item II do parecer de Ricardo Lodi[8] – que bem explica que não é o inadimplemento de qualquer obrigação com banco público que pode ser qualificado como operação de crédito (do contrário, todo aquele que atrasasse um pagamento estaria necessariamente enquadrado como em “operação de crédito” com seu credor! Entendimento este teratológico, data venia). Ao passo que a natureza penal dos crimes de responsabilidade (consoante os precedentes que embasaram a Súmula 722 do STF), torna incabível “analogia in malam partem” para dizer que teria havido algo equivalente a operações de crédito a justificar a incidência de crime de responsabilidade (por analogia!) contra a Presidente da República.

Ao passo que o crime de responsabilidade é a prática, “em desacordo com a lei”, de operação de crédito “com qualquer um dos entes da Federação, inclusive suas entidades da administração Indireta”, nos termos do art. 10, 9, da Lei 1.079/50. Assim, com base no que a própria Lei estabelece, cabe afirmar que, ainda que houvesse, e, como vimos, de fato não há, operação de crédito, a Lei do Impeachment proíbe essas operações tão somente quando realizadas: a) em desacordo com a lei; b) se realizadas com os demais entes da Federação e, por fim, c) se realizadas com os entes da administração indireta dos demais entes da Federação  - e não, portanto, da própria União. Essa vedação de operações de crédito com os demais entes federativos e com os entes da administração pública indireta dos demais entes federados se explica em razão de uma questão de princípio, ou seja, do próprio princípio federativo, ou seja, da garantia da autonomia econômico-financeira dos Estados-membros, Distrito Federal e, agora, dos municípios em face do poder político e econômico da União; e, aliás, por outro lado, se assim não o fosse, ou seja, se não se entender essa proibição restritivamente aos entes da administração indireta dos demais entes federados, isso inviabilizaria, por exemplo, a própria atuação dos bancos públicos da União.

Logo, cabe concluir que não há, no caso concreto, existência de prática de operação de crédito; e mesmo inexiste qualquer operação de crédito com outro ente federativo ou com suas entidades da administração indireta, dos demais entes da Federação, tal como veda a Lei 1.079/50, art. 10, 9. Donde as condutas imputadas à Presidente da República não constituem o crime de responsabilidade em questão. Podem ser criticáveis, segundo uns, podem não ser consideradas práticas de boa gestão, segundo outros, mas isso não é causa para impeachment. Nem mesmo violações à Lei de Responsabilidade Fiscal em geral o são, mas somente aquelas positivadas na Lei do Impeachment. A Lei 1.079/51 tipifica apenas como crime de responsabilidade o desrespeito à Lei Orçamentária e não à Lei de Responsabilidade Fiscal (cf. art. 10, 4A aprovação da PLN 5/2015 adequou a Lei Orçamentária aos decretos não numerados e, como já dissemos acima, eventual violação da Lei Orçamentária de 2014 não pode ser apreciada, por se tratar de mandato anterior. E, como vimos, sequer “operação de crédito” a Presidente da República praticou, quanto mais falar em crime de responsabilidade pelas tais pedaladas fiscais.

O pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados insiste em tentar caracterizar as “pedaladas fiscais” como crime de responsabilidade, fazendo referência ao art. 85, inc. IV da Constituição que trata da ofensa à Lei Orçamentária. Como bem explicitou Ricardo Lodi Ribeiro essa é uma hipótese de pedalada hermenêutica: “a atuação não poderia ser enquadrada em qualquer das hipóteses de crime de responsabilidade do presidente da República por violação da lei orçamentária, conforme previsto pelo artigo 4º, VI da Lei 1.079/50, cujas condutas sancionadas são esmiuçadas exaustivamente no artigo 10 da Lei 1.079/50. É que a manobra contábil, que vem sendo utilizada desde o segundo governo Fernando Henrique Cardoso, sempre com o beneplácito do Tribunal de Contas da União e do Congresso Nacional, ainda que se traduzisse em operação de crédito, o que, vimos, não é o caso, não viola propriamente a Lei Orçamentária Anual (LOA), que constitui o bem jurídico tutelado em todos os tipos do referido dispositivo sancionador dos crimes de responsabilidade, mas a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que com ela não se confunde. Violar a LRF não é a mesma coisa que violar a LOA. Esta última é a norma que prevê todas as receitas e despesas da União. É aqui que as condutas comissivas e dolosas do presidente da República poderão ensejar, em tese, o crime de responsabilidade. Já a LRF é norma geral de Direito Financeiro que orienta a elaboração, controle e fiscalização da LOA, mas que não faz qualquer previsão de receitas e despesas e com a lei de normas gerais não se confunde. É nessa confusão que reside a segunda pedalada hermenêutica, ao utilizar dispositivos legais que tipificam a violação da lei orçamentária como crime de responsabilidade para condutas supostamente violadoras da LRF”[9]. O pedido, neste ponto, apresenta-se falho em sua argumentação e não condiz com uma entidade que pretenda assumir protagonismo político.

Outro aspecto que o pleito da OAB levanta para tentar caracterizar o crime de responsabilidade é a isenção concedida à FIFA na Lei Geral da Copa do Mundo, Lei 12.350/2010 que, segundo mencionam, não fora realizada com a observância do art. 163, inc. I da CF/88, regulamentado pelo art. 14 da LRF que dispõe: “A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias; II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição”. Assim, entende a OAB que a isenção concedida à FIFA de vários tributos não veio acompanhada das exigências de estimativa da renúncia fiscal na lei orçamentária e nem mesmo de medidas de compensação.

É bom salientar que o pedido da OAB não faz qualquer menção dos tributos que foram objeto de renúncia fiscal, alegando genericamente que “A Lei n. 12.350/2010 concedeu várias isenções de tributos à FIFA e outras empresas privadas, sem observância ao inciso I do art. 163 da Constituição Federal, regulamentado pelo art. 14 da Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), e ao § 2º do art. 165, também da Constituição Federal, que exigem, para os casos de renúncia fiscal e isenção, a demonstração de que não serão afetadas as metas de resultados fiscais previstos no anexo da LDO (inciso I do art. 14 da LRF) ou a indicação das medidas de compensação, por meio do aumento de receita, através da elevação de alíquotas, majoração ou criação de tributos ou contribuições (inciso II do art. 14 da LRF)”[10]. Vamos ultrapassar a questão da absoluta inépcia do pedido neste ponto por ausência da indicação dos tributos que seriam objeto de renúncia fiscal, para adentrarmos ao debate da Lei Geral da Copa. Ora, ademais, precisamos lembrar que o pedido apenas indica que poderia haver prejuízos pela renúncia fiscal, mas efetivamente não comprova quais teriam sido os prejuízos financeiros pela renúncia fiscal (evidente pressuposto indispensável para a alegação).

Sobre o tema, primeiro cabe notar que causa espécie a OAB invocar, contra a atual Presidente da República, uma lei sancionada pelo ex-Presidente da República. A atual Presidente assumiu seu primeiro mandato no ano de 2011, ao passo que a lei invocada pela OAB foi sancionada em 2010, por outro Presidente da República. Por outro lado, cabe lembrar a obviedade segundo a qual renúncias fiscais se dão por força de lei. Não foi a Presidente que, em um ato discricionário unilateral, concedeu as isenções fiscais em questão. Foi o Congresso Nacional. Será que o Presidente do Conselho Federal da OAB pretende pedir a cassação dos mandatos de todos(as) os(as) parlamentares que votaram a favor da lei? Como se vê, o fato de uma lei ter concedido as isenções fiscais em questão afasta qualquer possibilidade de isto se enquadrar como crime de responsabilidade da Presidência da República. Ao passo que não é qualquer inconstitucionalidade que caracteriza crime de responsabilidade (e, concorde-se ou não com a citada decisão do STF, ele declarou constitucionais as isenções fiscais concedidas à FIFA para a realização da Copa do Mundo no Brasil – será que a OAB também pedirá o impeachment dos Ministros e das Ministras do STF que proferiram referida decisão?).

De qualquer forma, indispensável citar que na ADI 4976/DF, o Rel. Min. Ricardo Lewandoski, o STF julgou constitucional a concessão de isenção tributária à FIFA e seus agentes com base no art. 150, §6º da Constituição que disciplina que qualquer isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão possa ser feita por lei específica, mesmo realizada em ato normativo que não cuide especificamente da isenção. De qualquer forma, enfrentou o mérito da alegação de ofensa à isonomia e supostos prejuízos financeiros para dizer que o benefício fiscal concedido por Estado soberano para organismo internacional na busca de promover política pública de modo a alcançar benefícios econômicos e sociais é medida legítima. Nessa medida, veja-se que o Brasil mesmo se voluntariou para receber o evento[11], conforme destacou o acórdão ao afirmar, sobre outro tema (mas a ratio decidendi é evidentemente a mesma) que tal se refere a “Compromisso livre e soberanamente contraído pelo Brasil à época de sua candidatura para sediar a Copa do Mundo FIFA 2014” (o que vale para todas as benesses concedidas à FIFA – concorde-se ou não com elas, elas decorreram desse compromisso assumido pelo país para sediar o evento).

Ora, o pleito da OAB referente à suposta renúncia fiscal em desacordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal parece ser mais um equívoco da entidade que acredita que a escolha de políticas públicas possa se transformar em objeto de responsabilização. Assim, veja-se que toda e qualquer benefício fiscal, por exemplo, concedido por governante levaria à sua deposição. É um arrematado absurdo pensar que políticas públicas que não agradam a certo grupo possam se converter em julgamento com a pena de perda do cargo.

De toda sorte, o Conselho Federal da OAB, na pessoa de seu atual Presidente, propor crime de responsabilidade por questão já julgada no STF e tendo decisão deste afirmando a regularidade do ato se mostra algo, no mínimo, temerário e, no limite, beira à má-fé. Se a Corte a quem, por dicção da Constituição, cabe a “guarda” desta, se manifestou pela regularidade da lei, como isso poderia constituir fundamento para crime de responsabilidade?

Outro fato que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, mediante pedido encaminhado na pessoa de seu atual Presidente, entendeu pela caracterização do crime de responsabilidade teria sido a delação premiada do Senador Delcídio do Amaral no ponto em que a Presidente teria nomeado o Ministro do STJ, Marcelo Navarro Dantas, para o fim de, utilizando-se de seu cargo, obter ordem de Habeas Corpus para investigados no âmbito da operação Lava Jato, especificamente Marcelo Bahia Odebrecht e Otávio Marques de Azevedo[12].  Desta feita, teria a Presidente se imiscuído na independência do Poder Judiciário com o intuito de frustrar investigação criminal.

O fato é que o termo de delação premiada, por si só, não pode constituir base para a condenação de quem quer que seja. Vale lembrar aqui, o teor do art. 4º, §16º da Lei 12.850/13: “Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. Ora, o texto normativo é expresso  neste sentido. Nenhuma – absolutamente nenhuma – sentença pode ser proferida incriminando o acusado com base apenas nas palavras do agente colaborador. Enquadra-se, pois, toda e qualquer decisão proferida em processo que afete o status jurídico de um indivíduo – e sendo os crimes de responsabilidade efetivamente crimes (cf. os precedentes da Súmula 722 do STF), evidentemente que a condenação respectiva não pode se dar por mera delação premiada. Ademais, se até mesmo a confissão de acusado deve ser apreciada pelo juiz em corroboração com outros elementos de prova, conforme estatui o art. 197 do CPP, com maior razão o deverá ser uma delação premiada, que jamais poderá servir de elemento único para qualquer condenação, logo, também para processos de impeachment (especialmente quando se os considera processos penais, decorrência lógica da citada Súmula 722 do STF).

Neste caso, há outras provas além do termo de delação do Senador Delcídio do Amaral de que a Presidente teria influenciado no resultado do julgamento do remédio heroico? Há algo que indique que o Ministro do STJ foi nomeado apenas para intervir na Operação Lava-Jato? Pelo contrário, há elementos que induzem exatamente o contrário. Levando em conta os critérios constitucionais para a nomeação de Ministro do Superior Tribunal de Justiça, especificamente o notável saber jurídico e reputação ilibada, e aliando-se ao extenso currículo do Ministro[13] e sua aprovação pelo Senado Federal após sabatina, não parece possível sequer criticar a indicação do Ministro Marcelo Navarro.

Em um Estado Democrático de Direito um “Termo de Delação Premiada” não pode, isoladamente, ser motivo suficiente para ocasionar a caracterização de crime de responsabilidade, apto a estremecer a estrutura constitucional e a própria vontade soberana do povo.  Especialmente em sendo eles crimes (cf. a Súmula 722 do STF), mas mesmo independente disso: se a lei não admite algo como prova exclusiva para a condenação, isso se aplica a toda e qualquer condenação, logo, também àquelas em processos de impeachment. Teratológico entender-se que aqui teríamos uma decisão puramente “política”, como muitos afirmam, com o intuito de escaparem do escrutínio jurídico da decisão: o Congresso Nacional é soberano na definição dos fatos praticados pelo(a) Presidente da República, mas não pode deixar de seguir o Direito vigente em suas decisões. Do contrário, teríamos a antítese do Estado de Direito nos julgamentos dos crimes de responsabilidade: ao invés de “governo de leis”, teríamos o governo da arbitrariedade, algo manifestamente inconstitucional. Ao contrário, ao se considerar os nomes que constam na “Lista da Odebrecht”[14], poder-se-ia pensar que, na verdade, seriam alguns membros da oposição os maiores interessados na nomeação de alguém que pudesse livrar pessoas ligadas àquela empresa.

Ademais, o pedido da OAB também coloca como causa de pedir as interceptações telefônicas entre a Presidente da República e o ex-Presidente Lula; observe-se, contudo, que no pedido da OAB a ilegalidade do meio pelo qual a prova foi obtida em nada interfere em sua valoração[15]. É, no mínimo, estarrecedor ver uma entidade com a função constitucionalmente atribuída de ser parte do acesso à justiça, que prima pela legalidade e pela defesa da própria Ordem Constitucional, utilizar como causa de pedir de abertura de processo para apuração de eventual crime de responsabilidade uma prova obtida ilegalmente, cujo próprio juiz que a produziu reconheceu sua ilegalidade[16]. Será preciso lembrar à OAB que a Constituição veda o uso de provas obtidas por meio ilícito – art. 5o, LVI? Ora, sendo obtidas por meio ilícito em um caso, não poderão ser “aproveitadas” em outro ato, seja jurisdicional, seja administrativo, seja o procedimento especial de crime de responsabilidade. Sobre isso o STF já possui entendimento consolidado há anos e temos certeza de que, inclusive, membros do Conselho da OAB podem, quiçá, já ter se valido de tal jurisprudência em petições de defesa de seus clientes.

Ao passo que é uma enorme ilação (verdadeiro “triplo carpado hermenêutico”n na expressão popularizada pelo ex-Ministro Ayres Britto) concluir que da fala da Presidente da República ao ex-Presidente Lula teria sido “comprovada” uma suposta intenção de obstruir a Justiça ou algo do gênero. Lembre-se que a própria decisão do Presidente da Câmara que abriu o processo de impeachment não aceitou as acusações de tolerância da Presidente com a corrupção sob o (correto) fundamento de que não se condena com base em meras ilações ou conjecturas – e lembre-se que isso foi reiterado pelo próprio pedido da OAB! É preciso haver provas cabais, acima de qualquer dúvida razoável, para justificar condenações. Sem falar que a investigação contra o ex-Presidente Lula continuaria sendo realizada perante o Supremo Tribunal Federal, donde a sua nomeação como Ministro Chefe da Casa Civil não obstruiria em nada a Justiça nem constituiria óbice a eventual punição que a ele fosse devida. Conclusão contrária implica em arbitrária ilação, por inexistente qualquer prova que a justifique. Implicaria julgar por achismos. Algo, data venia, inadmissível em um Estado Democrático de Direito.

O próprio Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, ironiza o pedido de impeachment apresentado pela OAB quando já há processo de impedimento em trâmite[17], aduzindo que o mesmo não tem sentido algum. Mas dita manifestação do Presidente da Câmara teria destacado algo importante: que somente os fatos objeto de denúncia formalizada que foram por ele aceitos como potenciais crimes de responsabilidade poderiam gerar, em tese, o impeachment. Mas nem mesmo os fatos por ele aceitos como tais não caracterizam, nem em tese, crimes de responsabilidade, porque não são fatos típicos, como explicamos pormenorizadamente em nosso artigo anterior[18]. Logo, se o impeachment for decretado com base neles, deverá o Supremo Tribunal Federal declarar a nulidade de tal condenação. Bem como, se provocado a tempo, deverá extinguir o processo de impeachment, por atipicidade das condutas imputadas à Presidente da República e isso por uma razão muito simples: “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa” (cf. Gadamer e Streck). Não se pode dizer que uma conduta se enquadra como crime de responsabilidade quando ela, de forma alguma, se enquadra em nenhum dos taxativos tipos penais respectivos.

Assim, veja-se que o pedido da OAB tenta sustentar em vão  o cometimento dos seguintes supostos crimes de responsabilidade:

1) Art. 9, 7(“proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo"). Trata-se, pois, de artigo de extrema vagueza e a OAB apenas o invoca sem mencionar aonde o mesmo incidiria. Lembrando-se que tipos penais vagos são inconstitucionais, por violação do princípio da taxatividade;

2) Art. 10, 4 e 6 (4: "Infringir , patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária."; 6: "ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal;"). Mencionamos acima as razões pelas quais não é possível o cometimento de crime de responsabilidade nas práticas apontadas pelo pedido da OAB.

3) Art. 12, 1 (" impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário;"). Efetivamente, a Presidente não impediu qualquer ato ou decisão do Poder Judiciário, uma vez que a investigação criminal em face do ex-Presidente Lula continua tramitando normalmente.

O que sobra, então, do pedido feito pelo Presidente do Conselho Federal da OAB? Os fundamentos aqui apontados pela Ordem foram, um a um, desmontados, tendo sido demonstrada sua incompatibilidade com a Constituição, a Lei 1.079/50 e a jurisprudência do STF. Logo, pode-se também concluir que este pedido da OAB contraria parte de sua história de luta contra ataques ao Estado Democrático de Direito. Cabe, portanto, perguntar: Afinal, a quem esta OAB representa com este pedido de impeachment? [19].


Notas e Referências:

[1] É bom lembrarmos o papel que a Ordem dos Advogados do Brasil teve na ditadura empresarial-militar de 1964. Em primeiro momento, como nos lembra Denise Rollemberg, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil regozijou-se em apoiar o golpe de 1964, “cônscios” de que estavam protegendo a Constituição e a ordem jurídica exatamente pelo fato de que, em 1963, tratou como força subversiva a tentativa do governo de João Goulart promover reforma agrária (ROLLEMBERG, Denise. Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974). In: REIS, Daniel Aarão; ROLLAND, Denis (Orgs.). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 57-96). Somente em 1972, no VI Encontro da Diretoria do Conselho Federal da OAB em Curitiba, é que a instituição rompe claramente com o regime militar passando a atuar como protagonista na redemocratização do país, valendo citar as lutas individuais promovidas por Sobral Pinto e Raymundo Faoro que, desde os primeiros anos do regime militar, já o denunciavam como regime político violador das garantias individuais. A partir daí, portanto, a OAB adquire um papel de protagonista no cenário político nacional em defesa das liberdades individuais e do regime democrático. Sobre isso ver http://www.oab.org.br/historiaoab/links_internos/def_estado_declcuritiba.htm; e http://www.oab.org.br/historiaoab/links_internos/dest_viiconf.htm.

[2] Petição disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/pedido-impeachment-oab.pdf. Consultor Jurídico, [s/d]. Acesso em 29 de Março de 2016.

[3] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Supremo Tribunal Federal deve barrar ou nulificar impeachment sem crime de responsabilidade. Empório do Direito, 23 de março de 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/ (último acesso em 27.03.2016)

[4] “OAB protocola pedido de impeachment da presidente da República”. Disponível em http://www.oab.org.br/noticia/29423/oab-protocola-pedido-de-impeachment-da-presidente-da-republica, acesso em 30 de março de 2016.

[5] Petição disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/pedido-impeachment-oab.pdf, acesso em 29 de Março de 2016.

[6] Este é o posicionamento de Gilberto Bercovici em parecer. Consultor Jurídico, [s/d]. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/parecer-dilma-bercovici.pdf, acesso em 29 de Março de 2016.

[7] Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/parecer-dilma-bercovici.pdf. Consultor Jurídico, [s/d], acesso em 29 de Março de 2016

[8] Para uma síntese do parecer, vide: http://www.conjur.com.br/2015-dez-08/parecer-encomendado-lider-rede-solidariedade-defende-dilma (último acesso em 21.03.2016). O parecer, disponibilizado na referida matéria, encontra-se disponível emhttp://s.conjur.com.br/dl/parecer-ricardo-lodi-impeachment-dilma.pdf (último acesso em 21.03.2016). Ainda sobre o tema, o artigo de RIBEIRO, Ricardo Lodi. Pedaladas hermenêuticas no pedido de impeachment de Dilma Roussef.  Consultor Jurídico, 04 de dezembro de 2015. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-dez-04/ricardo-lodi-pedaladas-hermeneuticas-pedido-impeachment: “não é possível enquadrar na acepção do termo operações de crédito, o nascimento de débitos com instituições financeiras decorrentes do inadimplemento de obrigações contratuais, como a ausência de repasses de recursos para o pagamento de prestações sociais pelos bancos públicos”

[9] RIBEIRO, Ricardo Lodi. Pedaladas hermenêuticas no pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Consultor Jurídico, 04.12.2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-dez-04/ricardo-lodi-pedaladas-hermeneuticas-pedido-impeachment, acesso em 29 de Março de 2016.

[10] Petição disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/pedido-impeachment-oab.pdf. Consultor Jurídico, [s/d],  acesso em 29 de Março de 2016.

[11] DELBIN, Gustavo, VAZQUEZ, Paula Gambini. Lei da Copa é constitucional e não põe a soberania em risco. Consultor Jurídico, 09.05.2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-mai-09/lei-geral-copa-constitucional-nao-poe-cheque-soberania-nacional, acesso em 30 de Março de 2016.

[12] Petição disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/pedido-impeachment-oab.pdf. Consultor Jurídico, [s/d], acesso em 29 de Março de 2016.

[13] Basta ver, pois, o seguinte sítio em que está disponível o currículo do Ministro: http://www.stj.jus.br/web/verCurriculoMinistro?parametro=1&cod_matriculamin=0001233&aplicacao=ministros.ativos, acesso em 30 de Março de 2016.

[14] Sobre a “lista”, ver http://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2016/03/23/documentos-da-odebrecht-listam-mais-de-200-politicos-e-valores-recebidos/. Acesso em 29 de março de 2016.

[15] Petição disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/pedido-impeachment-oab.pdf. Consultor Jurídico, [s/d], acesso em 29 de Março de 2016.

[16] BAHIA, Alexandre Melo Franco de Moraes; BACHA E SILVA, Diogo; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Sobre o Poder Judiciário Brasileiro e o risco do Estado de Exceção no Brasil: em defesa do Regime Constitucional Democrático em tempos de “Morogate”. Empório do Direito, 20.03.2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/, acesso em 24 de Março de 2016.

[17] “‘São momentos, circunstâncias e pessoas diferentes. A OAB chegou um pouquinho atrasada; não veio como naquele momento, com protagonismo — veio com retardo’, disse Cunha”. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/505991-CUNHA-OAB-CHEGOU-ATRASADA-PARA-PEDIR-O-IMPEACHMENT-DE-DILMA.html, acesso em 29 de Março de 2016.

[18] BAHIA, Alexandre Gustavo de Moraes Melo Franco; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade e Vecchiatti, Paulo Roberto Iotti. Supremo Tribunal Federal deve barrar ou nulificar impeachment sem crime de responsabilidade. Disponível em http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/, acesso em 29 de março de 2016.

[19] A posição de um órgão que toma uma decisão a partir de Conselheiros Federais, sem amplo debate com a categoria – aliás, vale considerar que nem a Presidência do órgão é eleita diretamente, senão por um “Colegiado”, algo que há 30 anos sepultamos no cenário político do País – tem gerado reações contrárias dentro da classe, havendo Seções Regionais e advogados individualmente se manifestado contra a decisão do Conselho Federal através de petições eletrônicas e “cartas abertas”.


 

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