Ações Neutras e a Incriminação da Advocacia

15/03/2015

Por Geraldo Prado - 10/02/2015

Com muita frequência constato casos em que a atividade da advocacia sofre tentativas de incriminação, quer de forma dissimulada, a título de suposta colaboração de advogados, por seu ofício, na prática delitiva de outrem, com a insidiosa comparação da conduta do causídico a formas comuns de coautoria ou participação, quer de maneira bastante clara, ao se pretender coibir atos próprios da atividade, como aconselhamentos e orientações estratégicas respaldados na garantia que têm os clientes contra a autoincriminação compulsória, subvertendo-se o julgamento jurídico em pretenso julgamento moral.

Os dois tipos de situação têm em comum: i) o fato de não raras vezes a incriminação ser precedida da censura pública, pelos meios de comunicação social; ii) configurarem ações das agências públicas que propõem colmatar lacunas probatórias em casos rumorosos valendo-se de argumentos morais que visam intimidar e cercear o exercício do direito de defesa.

Isso explica a proliferação de requerimentos que visam afastar sigilos entre advogados e clientes, reservas que são essenciais ao cumprimento do dever de confidencialidade, assim como obrigar os primeiros a se converterem em custódios dos interesses do Estado em detrimento do de seus assistidos.

Em várias oportunidades ao longo do ano passado pronunciei-me de público contra esse “esforço concentrado” de diminuição da reputação do munus da advocacia, em especial da exercida em âmbito criminal, porque as garantias, tais como a mencionada – contra a autoincriminação compulsória -, em suas facetas passiva e ativa, requisitam profissionais que devem gozar da liberdade de atuação que é condição indispensável à realização do Estado de Direito.

Tomo a liberdade de mencionar, com reservas, uma situação específica que, no âmbito de consulta sobre temas do meu ofício (processo penal), levou-me a me deparar com hipótese flagrante de transferência dos deveres de vigilância do Estado para o advogado, transferência operada coativamente por meio da incriminação de atos da rotina da advocacia.

A hipótese exemplar chama atenção pelo modo como os profissionais das agências repressivas naturalizaram juízos morais como deveres jurídico-penais, muito provavelmente sem consciência de que esta “naturalização” agride garantias constitucionais e prerrogativas da advocacia. É contra este tipo de “naturalização” que vem à luz o presente ensaio.

O caso: a acusação imputou a advogado a prática do crime de peculato, porque em tese concorreu na conduta de procurador de autarquia, consistente em “subtrair da autarquia, em proveito próprio, dinheiro do qual não tinham posse”. O modus operandi, de acordo com a inicial, caracterizou-se por postular a homologação judicial, em nome de segurados e de autarquia, de acordos por valores hipoteticamente superiores ao devido em revisão de benefícios previdenciários. O peculato, por óbvio, teria sido praticado em concurso necessário entre o procurador da autarquia e o advogado, todavia a prova do vínculo entre os personagens traduziu-se com exclusividade, afirmada pelo MP, na presunção de que, se houve acordo judicial em torno de valores superiores ao devido, é porque os personagens estavam adrede acertados. No caso concreto há séria controvérsia acerca de se os valores eram indevidos, mas interessa para mais do que isso observar o fenômeno recorrente da incriminação da advocacia.

Isto é: para além de um crime funcional (cujo autor teria sido o citado procurador autárquico), a conduta somente seria punível se pudesse estar enquadrada, no que respeita ao advogado, no modelo dos crimes concernentes à violação do exercício de atividade profissional rotineira, regulamentada e autorizada de advogado que em regra é lícita.

A participação penalmente relevante de advogados em delitos alheios é um tema delicado, que tem merecido a atenção da doutrina penal porque não raro toca nas fronteiras do exercício do direito de defesa, consagrado como fundamental em todos os tratados internacionais de direitos humanos.

Em prefácio à obra de referência acerca da responsabilidade penal dos profissionais da área jurídica, Gonzalo Fernández adverte sobre o incremento de normas jurídico-penais que se propõem a tolher o exercício de direito das pessoas representadas por advogados. Textualmente:

“Pois bem, em meio a essa confusão de leis imperfeitas e regulamentações todavia piores, os autores deste livro abrem o caminho e estudam com comprometimento a responsabilidade penal dos profissionais jurídicos e os limites que mediam entre a prática lítica e a participação delitiva.

Para tanto, começam com uma visão sinóptica das figuras do autor e dos partícipes acessórios, onde não falta referência à teoria do domínio do fato e, sobretudo, uma reformulação normativista da teoria da imputação. Sob dita rubrica, o livro aborda um compêndio da teoria da imputação objetiva na versão de Günther Jakobs, catedrático emérito de Bonn, até concluir descartando a fidelidade a direito ou infração objetiva da função, como fundamentos da atribuição de responsabilidade.”[2]

A incriminação dos comportamentos de autoria e participação por conta de condutas de rotina da advocacia reclama, portanto, elementos típicos que são bastante mais rigorosos que os que de ordinário se apresentam.[3]

No campo concreto tratei da problemática do “erro”, que não será objeto deste artigo, mas que é relevante para compreender a questão central, concernente à transferência funcional ao advogado de deveres de vigilância e de informação especial (infração objetiva da função), típicos de um Estado policial. No aspecto particular do “erro” remeto à lição do jurista Alaor Mendes.[4]

Sublinho, todavia, que estão equivocados os que sustentam que no crime de peculato, conforme o mencionado exemplo, a proteção penal ao bem jurídico tutelado deva ser deslocada para o campo - perigoso e autoritário - da tutela de função. Isso implicaria em transferir ao profissional liberal deveres de vigilância que são deveres da autoridade, isto é, do agente público.

A impossibilidade jurídica dessa conversão é inquestionável. Vale aqui a lição de Cervini e Adriasola:

No que concerne à concepção que se centra na atividade própria do Poder Judiciário como uma função do Estado, corremos o risco de confundir bem jurídico com função. A distinção entre bem jurídico e função estatal torna-se hoje essencial para delinear uma concepção redutora do direito penal. Dissemos que é preciso diferenciar a noção de bem jurídico da noção de função. Esta última compreende atividades administrativas do Estado, referentes ao controle sobre determinado setor da vida de relação ou de seu próprio organismo. A função tem sempre uma característica de instrumentalidade ou dependência de outro objeto, é uma atividade dirigida à consecução de um fim cuja definição é de menor amplitude. Sob essa ótica, a atividade judicial encaminhada à realização do ideal de Justiça é uma função. A função não existe por si mesma, sua natureza é instrumental para a configuração da efetiva aplicação da lei por parte do Poder Judiciário. Portanto, não podemos aceitar que o direito penal tutele funções, devendo estas distinguirem-se dos bens jurídicos. Se assim não fosse, se a tutela recaísse sobre funções e não sobre bens jurídicos, isso teria uma relevante repercussão sobre a construção dos tipos penais, permitindo ao legislador tipificar condutas de obstrução tipicamente autoritárias, ampliando, por exemplo, o elenco de obrigações de denunciar e de delitos de omissão ou adiando a tutela penal.[5]

Os atos de formalização de acordo em juízo inscrevem-se como práticas profissionais rotineiras. Eventual incriminação ficaria na dependência de distingui-los a priori das atividades profissionais comuns.

De outra maneira, ainda que por meio do ato de proposta ou aceitação de acordo em juízo o funcionário público tenha cometido peculato, o comportamento do profissional liberal deve ser considerado “ação neutra” e, portanto, atípica, salvo se demonstrada deliberação e articulação prévia com o propósito de lesar o bem jurídico.

Para entender o ponto é necessário partir do conceito jurídico-penal de ações neutras. Segundo Luís Greco, “ações neutras seriam todas as contribuições a fato ilícito alheio não manifestamente puníveis.”[6]

Em que circunstâncias essas “ações neutras” surgem?

A rigor, as “ações neutras” aparecem em contextos delimitados de atuação profissional, cotidiana ou habitual. Nesta esfera o autor da ação neutra realiza os comportamentos ordinários de sua profissão e estes atos, todavia, configuram contribuição à ação delitiva alheia.

Salienta Landa Gorostiza:

“…se trata al parecer de un problema principalmente de delimitación de algunos supuestos límite que por desarrollar-se como contribuciones en el marco de la actividad laboral, cotidiana, habitual, suscitan dudas sobre su calificación en el caso concreto como cooperación punible.”[7]

A doutrina penal e a jurisprudência alemãs elaboraram o critério da “ação neutra”, na sequência do desenvolvimento da problemática da imputação objetiva, com a finalidade de conter o processo de incriminação das condutas cotidianas que bem poderiam partilhar do propósito delituoso do agente principal (autor) ou não. No caso das “ações neutras”, a impossibilidade concreta de aferir o fim de colaboração no delito alheio resulta na não punição desses comportamentos. [8]

Wolfgang Frisch esclarece que as “ações neutras” não são responsáveis pela criação de um risco tipicamente desaprovado. Ao revés, inserem-se nas práticas comuns e disso resulta a impossibilidade de punição. [9] Os exemplos referidos por este autor na obra citada são autoexplicativos.[10] Inexistente a prova do ajuste prévio para a prática do crime, a ação do advogado é atípica, malgrado em teoria possa ter concorrido para o crime do funcionário público.

Em resumo: a participação penalmente relevante de advogados em delitos alheios é tema que toca nas fronteiras do exercício do direito de defesa, consagrado como fundamental em todos os tratados internacionais de direitos humanos, mas que, à semelhança da postulação das mais variadas medidas de afastamento de sigilo, compõem arsenal ao qual autoridades públicas têm recorrido com lamentável frequência para enfraquecer as garantias próprias da advocacia.

Os advogados que cometem crimes devem ser investigados e punidos, mas isso não se confunde com a incriminação de condutas inerentes à advocacia, estratégia ilícita que persegue a punição de crimes pela via da redução do âmbito normativo do exercício profissional de atividade essencial à Justiça e pela conversão de advogados em agentes encarregados de reforçar a vigilância e castigo das pessoas que recorrem a eles.

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Sem título-1 Geraldo Prado é professor da UFRJ e consultor jurídico.     __________________________________________________________________________________________________________________ [2] FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Prefácio ao livro Responsabilidade penal dos profissionais jurídicos, de Raúl Cervini e Gabriel Adriasola. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 6. [3] Hipótese, ordinária, por exemplo, é a do escrivão judicial que deixa de recolher taxa judiciária ao erário, pois que recebe a importância em razão do cargo ocupado. (TJRS – AC 70011290459 – 4ª C. Crim. – Rel. Gaspar Marques Batista – j. 12.05.2005). [4] LEITE, Alaor. Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal: a atuação nos limites entre o permitido e o proibido. São Paulo: Atlas, 2013.  p. 152-153. [5] CERVINI, Raúl; ADRIASOLA, Gabriel. Responsabilidade penal dos profissionais jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 83-84. [6] GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 110. [7] LANDA GOROSTIZA, Jon-Mirena. La complicidad delictiva en la actividad laboral “cotidiana”: contribución al “límite mínimo” de la participación frente a los “actos neutros”. Granada: Comares, 2002. p. 5. [8] LANDA GOROSTIZA, Jon-Mirena. La complicidad delictiva en la actividad laboral “cotidiana”: contribución al “límite mínimo” de la participación frente a los “actos neutros”. Granada: Comares, 2002. p. 3-4. [9] FRISCH, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Madrid: Marcial Pons, 2004. p. 316. [10] Idem. __________________________________________________________________________________________________________________ Imagem ilustrativa do post:  All shall be equal before the law: justice graffiti in Cape Town Foto de: Ben Sutherland Disponível em: https://www.flickr.com/photos/bensutherland/8496877807 Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode __________________________________________________________________________________________________________________

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