Por Felipe Halfen Noll, Laura Mallmann Marcht e Ester Eliana Hauser - 24/06/2016
A questão da criminalização do aborto voluntário está consolidada no ordenamento brasileiro. A aceitação dos dispositivos e a forma como a prática é encarada pelo Estado, no entanto, não é de entendimento unânime, e a doutrina diverge em muitos aspectos, especialmente, no que tange ao início da existência da vida humana e da personificação do feto, detentor de direitos e proteção estatal.
O Código Penal versa sobre o crime dos artigos 124 ao 128, sendo que os incisos I e II do art. 128 trazem a previsão legal de se excluir a ilicitude do ato, se for este praticado por médico.
Em 2012, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, foi votada constitucional a interrupção da gestação de feto anencéfalo, adicionando uma terceira cláusula excludente de ilicitude na condução de um aborto. Assim, é revestida de atipicidade a interrupção de gestação, quando realizada por médico capacitado, nos casos de gravidez decorrente de estupro, quando há risco de vida para a mulher em razão da gravidez e nos casos de detectada anencefalia no feto em formação (SCHULZE, 2012).
Entretanto, o que se racionaliza na presente discussão são os casos de aborto voluntário, e a improvável descriminalização do mesmo. Dados levantados na Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada em 2010 por método de pesquisa domiciliar e urna, levantam dados impressionantes quanto à prática. Entrevistadas 2002 mulheres entre a idade de 18 a 39 anos, revelou-se que cerca de 15% delas já cometeram aborto voluntário, sendo cerca de metade desse número mediante uso de medicamentos e tendo a metade delas sido internadas em hospitais em decorrência do ato (DINIZ; MEDEIROS, 2010).
Como já mencionado, a criminalização do aborto está longe de ser aceita de maneira unânime. As tendências contemporâneas somadas à observância da realidade brasileira trazem à tona a possibilidade (e necessidade) de se abrandar a represália à prática, e mesmo de torná-la legal, desde que fundamentada num sistema que combine prazos e indicações (TESSARO, 2008).
A problemática acaba incidindo na interpretação de aspectos biológicos sob uma perspectiva subjetiva do início da vida humana. São diversas as teorias que dispõe sobre o assunto, que divergem especialmente sobre qual o momento em que o embrião torna-se pessoa humana, com bases na proteção universal do direito à vida elencada na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A “perspectiva concepcional” aposta que a vida humana tem início instantâneo, e se consolida com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Os estudiosos que defendem a existência humana a partir da fecundação embasam sua tese na potencialidade que o zigoto tem, enquanto organismo supostamente independente, de se desenvolver por si mesmo em fases sucessivas e gerar um organismo biologicamente humano.
É questionável a independência e “potencialidade humana” do zigoto, tendo em vista que nem sempre um óvulo fecundado vai vir a gerar uma vida e que a própria evolução do organismo pressupõe interação com outras moléculas e, mais do que qualquer coisa, depende diretamente da genitora. Da mesma forma, os métodos de reprodução assistida vêm a compor obstáculos para a aceitação dessa teoria, pois, se o óvulo fecundado possui direitos, o óvulo fecundado in vitro também estaria sujeito à proteção estatal (o que não ocorre).
Para essa teoria, Kottow estabelece um comparativo metafórico, entre o bloco de mármore que não é potencial escultura por depender completamente das mãos do artista, por necessitar de contextualização para ser. Ainda afirma que pode o mármore ser considerado como uma obra em potencial, mas que esse material jamais terá o mesmo valor axiológico que a obra que poderia ser (KOTTOW, 2001).
A teoria concepcional está especialmente suscetível a valorações alheias à ciência, pois parte de uma crença e não de constatações verificáveis. Já a perspectiva biológico-evolutiva, desenvolvida a seguir, tenta partir do conhecimento da embriogênese para fixar um momento de aquisição de vida pelo feto.
Essa perspectiva biológico-evolutiva defende que o início da vida decorre do aparecimento de certos sinais morfológicos do embrião ou a partir de um momento determinado do processo de gestação. Por esse viés, foram propostos diversos critérios para a determinação do início da vida humana: nidação/individualização, surgimento da crista neural, mobilidade fetal, viabilidade extra-uterina, nascimento e, por fim, a aquisição da capacidade racional na infância (TESSARO, 2001).
De acordo com esse entendimento, certas características que surgem no feto no decorrer de seu processo evolutivo têm mais relevância que outras, e, no caso em que se considera a existência com vida produto do início da atividade cerebral, nos três meses de gestação, se deixa de considerar os seres humanos com capacidade racional deficiente. Segundo Kottow, na perspectiva biológica-evolutiva se comete o mesmo erro que na perspectiva concepcional, de se valer da mesma noção naturalista, unindo dados empíricos para fundamentar valorações éticas (KOTTOW, 2001).
Afastar a existência da vida humana de perspectivas concepcionais ou biológico-evolutivas é preceito básico para se chegar a um entendimento mais condizente com a realidade. É nesse princípio que se baseia a perspectiva relacional, que inova levando em consideração aspectos interpretativos mais amplos ao reconhecimento da vida humana, afastando as interpretações morais acerca de aspectos puramente biológicos e dando primazia e protagonismo à parte que a gravidez mais afeta: a gestante.
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. Felipe Halfen Noll é acadêmico do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntário no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. . .
. Laura Mallmann Marcht é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntária no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. . .
. Ester Eliana Hauser é Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2001). Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1994). Professora da UNIJUÍ atuando principalmente nos seguintes temas: direito penal, criminalidade, controle punitivo, funções da pena, sistemas penais e politica criminal..
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