ABDPRO #97 - AMICUS CURIAE E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO DENEGATÓRIA E O ENTRAVE A DEMOCRATIZAÇÃO DO DEBATE

07/08/2019

Coluna ABDPRO

A participação de terceiro, não vinculado às partes e sem um interesse direto no resultado do julgamento da causa, como forma de aumentar e enriquecer democraticamente o debate endoprocedimental, não é algo novo em nosso ordenamento jurídico. Evidencia-se tal afirmação a partir da constatação de que é permitida a realização de audiências públicas em procedimentos desenvolvidos no âmbito do Legislativo, Executivo e Judiciário, como mecanismos de promover um ganho qualitativo argumentativo na tomada de decisões[1].  

            No procedimento legislativo, a participação direta da sociedade encontra-se disciplinada no art. 52, § 2º, II, CF/88. Já no procedimento administrativo, por exemplo, é admissível a realização de audiências públicas prévias às licitações de grande porte, na forma do art. 39, da Lei 8.666/93[2].

            E, no procedimento jurisdicional constitucional de controle abstrato, a realização de audiências públicas, em Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) (Leis 9.868/99 e 9.882/99), é prática corriqueira, como mecanismo de enriquecimento do debate e democratização do procedimento de formação da decisão por meio da participação ativa da sociedade civil, vez que o debate das questões constitucionais deve-se dar por uma “sociedade aberta de interpretes constitucionais[3].

            A participação de um terceiro, formalizada pela audiência pública, amplia o debate, a transparência e a publicidade do procedimento de formação da decisão desenvolvido nas três arenas das atividades estatais (legislativa, executiva e jurisdicional).

            Especificadamente no âmbito jurisdicional, a Lei 6.385/76 disciplinou a atuação da Comissão de Valores Mobiliários como amicus curiae em causas de seu interesse, possibilitando a oferta de pareceres e esclarecimentos.  Tem-se, assim, a permissibilidade de participação de terceiro que possui a “atuação centrada no interesse da questão jurídica e não interesse das partes”[4].

As normas procedimentais de 2015 potencializaram a participação do terceiro que não possui interesse pessoal no julgamento da causa, seja na qualidade de amicus curiae, na dicção do disposto no art. 138, CPC/15, por permitir a sua participação no julgamento de qualquer causa (individual e repetitiva), ou por meio da realização da audiência pública no julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas, art. 983, § 1º, CPC/15 e no julgamento dos recursos extraordinários e especial repetitivos, art. 1.038, II, CPC/15.

O amicus curiae será admitido em causas cuja relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia demande a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada. Além da disciplina geral disposta no art. 138, do CPC/15, vale a pena ressaltar que a participação do amicus curiae encontra-se também expressa nos arts. 927, § 2º, 950, § 2º e 3º, 938, 1.035, § 4º e 1.038, I, CPC/15.

            Sem quaisquer dúvidas, no âmbito do direito positivo, há tempos busca-se democratizar o debate por meio da atuação de um terceiro que não é parte, desejando conferir legitimidade democrática ao procedimento decisório, por meio da participação direta da sociedade civil.

            O presente texto objetiva enfrentar o problema consistente na irrecorribilidade da decisão que denega a participação de terceiro na qualidade de amicus curiae, cujo embasamento se dá por meio de uma interpretação literal e restritiva do art. 7º, da Lei 9.860/99 e art. 138, CPC/15.

            O entendimento doutrinário e jurisprudencial, sobre a impossibilidade de interposição de recurso em face da decisão que denega a participação do amicus curiae, consubstancia-se em um entrave à democratização do procedimento de tomada de decisão, devendo ser superado para a busca de qualificação do debate, por meio da atuação de terceiro. 

Não cabe aqui, obviamente, recapitular toda a evolução histórica do amicus curiae que se origina no direito romano, assim como enfrentar as demais problemáticas advindas da possibilidade de sua participação, como o seu potencial uso estratégico, sua representatividade adequada e a necessidade de consideração pelo julgador da integralidade dos argumentos por ele exarados[5].  

 

ENTRAVE À DEMOCRATIZAÇÃO DO DEBATE

Denota-se do informativo 920 - RE 602584 AgR/DF, de relatoria original do Min. Marco Aurélio, sendo designado redator para o acórdão o Min. Luiz Fux,[6], o atual entendimento firmado, por maioria, pelo Supremo Tribunal Federal no sentido da impossibilidade de interposição de recurso contra a decisão que denega a participação de terceiro como amicus curiae.

“Amicus curiae”: indeferimento de ingresso e irrecorribilidade -

É irrecorrível a decisão denegatória de ingresso, no feito, como amicus curiae.

Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, não conheceu de agravo regimental em recurso extraordinário interposto pela Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (APESP) e pelo Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo (SINDIPROESP) contra a decisão que indeferiu sua admissão no processo como interessados.

No recurso extraordinário, discute-se a possibilidade de, ante o mesmo credor, existir a distinção do que recebido, para efeito do teto remuneratório, presentes as rubricas proventos e pensão.

O Colegiado considerou que a possibilidade de impugnação de decisão negativa em controle subjetivo encontra óbice (i) na própria ratio essendi da participação do colaborador da Corte; e (ii) na vontade democrática exposta na legislação processual que disciplina a matéria.

Asseverou que o art. 138 (1) do Código de Processo Civil (CPC) é explícito no sentido de conferir ao juiz competência discricionária para admitir ou não a participação, no processo, de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, e de não admitir recurso contra essa decisão. O art. 7º (2) da Lei 9.868/1999, de igual modo, é inequívoco nesse sentido.

O Colegiado afirmou, também, que o amicus curiae não é parte, mas agente colaborador. Portanto, sua intervenção é concedida como privilégio, e não como uma questão de direito. O privilégio acaba quando a sugestão é feita.

Ressaltou, ainda, os possíveis prejuízos ao andamento dos trabalhos da Corte decorrentes da admissibilidade do recurso, sobretudo em processos em que há um grande número de requerimentos de participação como amicus curiae.

Vencidos os ministros Marco Aurélio (relator) e Edson Fachin, que conheceram do agravo e reafirmaram precedentes que admitiram a interposição de recurso contra a decisão denegatória de ingresso no feito.

Para eles, nos termos das normas que regem a matéria, somente é irrecorrível a decisão que admitir a intervenção. Se a decisão é negativa, contrario sensu, cabe agravo para a apreciação pelo Colegiado.

Os ministros Dias Toffoli (presidente) e Rosa Weber reajustaram os votos anteriormente proferidos.

 

Importante fixar que, desde 2011, observa-se a tendência do STF, por maioria, de não admitir recurso contra a decisão que indefere a participação de terceiro como amicus curiae[7]. Todavia, o julgado acima referido mostra-se emblemático, visto que mesmo após a promulgação de Código de Processo Civil 2015[8], que possui um livro específico sobre as normas fundamentais (art. 1 ao 15, CPC/15), não foi capaz de ensejar a alteração do entendimento da Corte Constitucional.

Lado outro, a interpretação literal e restritiva do art. 138, CPC/15 conferida pelo STF solapa a democratização do debate de questões complexas em uma sociedade multifacetada. Fica patente a arbitrariedade contida no entendimento do STF, visto que impossibilita a interposição de recurso pelo terceiro que deseja participar do debate na qualidade de amicus curiae, na hipótese de a solicitação de admissão/intervenção ter sido efetuada pelo próprio terceiro interessado[9].

É preciso observar, por fim, que a lei confere legitimidade ao terceiro, amicus curiae, para requer a sua intervenção (art. 7º, § 2º, da Lei e 9.868/99 e art. 138, CPC/15) e o STF, por meio de uma interpretação restritiva, fixa o entendimento no sentido de que a decisão denegatória não é impugnável, esvaziando de forma reflexa, por conseguinte, a legitimidade legal conferida ao terceiro de pleitear a sua participação em causa que possui interesse[10].

Fica, pois, assente, que a compreensão da impossibilidade de recurso da decisão denegatória, além de esvaziar a própria legitimidade do amicus curiae de requerer a sua participação, confere grande arbitrariedade ao juiz e ao relator, ao instituir a concepção de irrecorribilidade da decisão denegatória.

 

SUPERAÇÃO DO ENTENDIMENTO DE IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO DENEGATÓRIA

Para a regular promoção da democratização do debate pela atuação de terceiro, deve-se superar o entendimento consistente na irrecorribilidade da decisão denegatória; a uma pela autorização legislativa de interposição de recurso de agravo de instrumento (art. 1.015, IX, CPC/15) e agravo interno quando se tratar de decisão unipessoal do relator (art. 1.021. CPC/15); a duas pela indiscutível necessidade de promoção da pluralidade dos argumentos, notadamente os de cunho técnico.  

Bruna Silveira partilhando do entendimento exposto, afirma que “correta interpretação a se dar à recorribilidade da admissão do amigo é a de que irrecorrível é apenas a decisão que admite o ingresso, sendo recorrível a decisão que inadmite, com fulcro no art. 1.015, IX, CPC”[11].

Por meio de pesquisa empírico-jurisprudencial[12], Bruna Silveira demonstra que no julgamento dos litígios repetitivos a participação da agência reguladora na qualidade de amicus curiae evidencia uma “uma forte ligação entre a participação dos órgãos reguladores e a consideração de questões regulatórias quando da construção da tese. Mostram que a participação da Agência Reguladora foi capaz, ao menos, de trazer elementos regulatórios ao conhecimento dos julgadores”[13].

Sendo a participação do terceiro, não vinculado às partes, mecanismo de qualificação e democratização do debate, em razão da apresentação de novos argumentos não exarados pelas partes, evidencia-se o equívoco constante da afirmação do STF que a participação do amicus curiae é concedida “como privilégio, e não como uma questão de direito”.

A rigor, toda decisão oriunda da causa que permite a participação do amicus curiae, inclusive as subjetivas, que podem ser ações individuais potencialmente coletivas, produzirá efeitos para a coletividade, visto que há a discussão de interesses socialmente relevantes.

João Gualberto, ao tratar de fatos e prognoses no controle de constitucionalidade, afirma que a disciplina contida nas Leis n. 9.868/99 e 9.882/90 demanda a participação dos sujeitos em verdadeira abertura interpretativa, vez que a sua participação contribui para a tomada de decisão de maneira mais democrática, em razão da prestação pelo amigo da corte de informações especificas e relevantes para a formação da decisão jurídica[14].  

            Definitivamente, a interpretação literal do caput, do art. 138, CPC/15 e do art. 7º, da Lei 9.868/99 não se mostra adequada, sendo a irrecorribilidade restrita à decisão de admissão o entendimento recomendável, como visto alhures.

Conclui-se, por conseguinte, que deve ser oportunizado ao terceiro, que requereu a sua participação ou que teve a sua admissão pleiteada por uma parte, a demonstração em grau recursal do preenchimento dos requisitos autorizadores de sua intervenção na qualidade de amicus curiae.

 

CONCLUSÃO

Assim, ao não se permitir a interposição de recurso pelo terceiro na hipótese de indeferimento de seu pedido de admissão na forma de amicus curiae, tem-se uma verdadeira incoerência diante da busca pela qualificação e democratização do debate, evidenciando, por conseguinte, a postura arbitrária do STF.  

Há potencial interesse da coletividade na atuação do amicus curiae, em razão da necessidade de trazer para o debate informações desconhecidas pelas partes e julgadores, qualificando e democratizando o procedimento de tomada da decisão.

Diante disso, conclui-se que preenchidos os requisitos para a sua participação à intervenção do terceiro, amicus curiae, não pode ser entendida como um privilégio, mas sim como um direito de influenciar a tomada da decisão, em total observância ao contraditório o que induz ao desfecho de que a melhor interpretação a ser dada ao texto do art. 138, CPC/15 e do art. 7º, da Lei 9.868/99 é a de que a irrecorribilidade seja restrita à decisão de admissão do amigo da corte.

  

 

Notas e Referências

[1] Ver: ANDRADE, Mário Cesar da Silva. Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal como Seara argumentativa: cientificismo, discursividade e democracia na abordagem dos argumentos pelos ministros (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2015.

[2] ANDRADE, Mário Cesar da Silva. Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal como Seara argumentativa: cientificismo, discursividade e democracia na abordagem dos argumentos pelos ministros (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2015, p. 46-47.

[3] Häbele, Peter. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/2353/1205.

[4] RIBEIRO, Patrícia Henriques; BERNARDES, Wilba Lúcia Maria. Novo Código de Processo Civil Comentado – Tomo I (art. 1º ao 317). Comentários ao art. 138. Ed. Lualri, 2017.

[5]Ver: MENEZES, Rafael Filipe Fonseca. O Amicus Curiae no Processualismo Constitucional Democrático. (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.

[6] Informa-se que até a data de finalização do presente texto, 30.07.2019, o inteiro teor do acordão do RE 602584 AgR/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Luiz Fux, não fora disponibilizado no site do Supremo Tribunal Federal. Última movimentação: “25/10/2018 Ata de Julgamento Publicada, DJE. ATA Nº 36, de 17q10q2018, DJE nº 227, divulgado em 24/10/2018”. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=12088

[7] DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. O princípio do máximo rendimento: amicus curiae e audiências públicas, Revista de Processo, vol. 224/2013, p. 73, out/2013.

[8] Registra-se que para o marco teórico do garantismo processual “o processo concretiza-se em procedimentos (civil, penal comum, penal militar, trabalhista, tributário, eleitoral etc.), que se instituem por lei em função dos diferentes ramos do direito material aplicáveis logo, não se confundem a ciência processual e a ciência procedimental” (COSTA, Eduardo José da Fonseca. Hoje se inicial a coluna semanal “garantismo processual”. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/hoje-se-inicia-a-coluna-semanal-garantismo-processual).

[9] DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. O princípio do máximo rendimento: amicus curiae e audiências públicas, Revista de Processo, vol. 224/2013, p. 73, out/2013.

[10] DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. O princípio do máximo rendimento: amicus curiae e audiências públicas, Revista de Processo, vol. 224/2013, p. 73, out/2013.

[11] SILVEIRA, Bruna Guapindaia Braga da. Litigiosidade repetitiva, processo e regulação: interações entre o judiciário e o regulador no julgamento de casos repetitivos (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

[12] Remete-se o leitor para a análise da tese de doutorado, litigiosidade repetitiva, processo e regulação: interações entre o judiciário e o regulador no julgamento de casos repetitivos, da autora Bruna Guapindaia Braga da Silveira especificadamente o tópico IV.2. DA APRESENTAÇÃO DOS DADOS, p. 211-219.

[13] SILVEIRA, Bruna Guapindaia Braga da. Litigiosidade repetitiva, processo e regulação: interações entre o judiciário e o regulador no julgamento de casos repetitivos (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 221.

[14] GUALBERTO, João Guilherme Gualberto.  Fatos e Prognoses no Controle de Constitucionalidade. Ed.DelRey, 2019, no prelo

 

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