Coluna ABDPRO
O caso
No julgamento de Recurso Ordinário em Habeas Corpus autuado sob o n. 99.606-SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça analisou a temática das medidas executivas atípicas, relacionada com a normatização fundamental do CPC/2015, notadamente os artigos relativos à cooperação processual, à boa-fé, à fundamentação das decisões e ao contraditório.
No referido caso, o juízo de primeira instância havia determinado a suspensão da carteira nacional de habilitação do devedor e condicionado o direito do paciente de deixar o país ao oferecimento de garantia, como meios de coerção indireta ao pagamento de dívida executada nos autos de cumprimento de sentença.
Contra essa decisão, impetrou-se habeas corpus junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que foi denegado sob a alegação de que o remédio constitucional estaria sendo manejado como sucedâneo recursal.
No recurso ao STJ, a parte reforçou o argumento de que a decisão de primeira instância implicaria em ofensa à sua liberdade de locomoção, sendo, portanto, cabível a impetração do habeas corpus.
No primeiro tópico de seu voto, a relatora destacou a evolução doutrinária e jurisprudencial sobre o cabimento do habeas corpus, notadamente o cível e concluiu ser cabível a discussão, nessa sede, da questão relativa à condição imposta pelo juízo da primeira instância de oferecimento de garantia pelo devedor para que pudesse deixar o país, nos seguintes termos:
A medida de anotação, pela Polícia Federal, de restrição de saída do país sem prévia garantia da execução, tem o condão, por outro lado – ainda que de forma potencial –, de ameaçar de forma direta e imediata o direito de ir e vir do paciente, pois o impede, durante o tempo em que vigente, de se locomover para onde bem entender.
No tocante à suspensão da carteira nacional de habilitação, reforçou entendimento já antes firmado no tribunal de que não se poderia discuti-la em sede de habeas corpus, já que não se estaria diante de limitação ao direito de ir e vir.
Na sequência, passou à análise das questões relacionadas à cooperação, à boa-fé objetiva no direito processual civil e na tutela executiva. De início, a relatora mencionou o paradigma da instrumentalidade das formas como informador do moderno direito processual e indicou que “uma plêiade de novos princípios foi estabelecida pelo legislador do Novo CPC com o propósito de garantir o direito das partes – e da sociedade – de obter, em prazo razoável, a resolução integral do litígio, inclusive com a atividade satisfativa, conforme disposto no art. 4º de referido diploma legal”.
Sobre a boa-fé objetiva, entendeu que ela gera deveres recíprocos para as partes envolvidas em uma relação jurídica e invocou as lições de Gustavo Tepedino para explicar que se busca com isso proteger a confiança, na medida em que se exige um comportamento digno de fé e um não abuso das respectivas posições jurídicas.
Como corolário da boa-fé objetiva estaria a cooperação que, na interpretação da relatora, há de ser considerado um princípio e de tão grande importância que teria implicado em uma “substancial e destacada revolução no modelo processual até então vigente, em vista de uma maior proteção dos direitos fundamentais dos envolvidos no processo e da própria sociedade, pois acarreta a superação do modelo adversarial até então vigente”.
Na sequência, a relatora passou à análise das previsões específicas, no CPC/2015, de disposições em que se aplicaria a boa-fé e a cooperação no âmbito da tutela executiva. Fez menção ao disposto no art. 774, III e V, que trata da conduta do executado que dificulta ou embaraça a realização de penhora de bens ou que deixa de indicar bens passíveis de penhora. Outro exemplo citado foi o da disposição do art. 805, parágrafo único, que trata do princípio da menor onerosidade da execução, mas exige do devedor que quando alegar algo nesse sentido deve indicar meio executivo menos gravoso. Houve menção ainda ao art. 917, §3º, que impõe ao executado o ônus de, quando alegar excesso de execução, indicar nos seus embargos o valor que entende devido, sob pena de rejeição liminar dos embargos.
No terceiro item do acórdão, a relatora apreciou os poderes executivos do juiz à luz da disposição do art. 139, IV/CPC e resgatou a ideia de que o código instaurou um novo modelo de processo, o cooperativo, que impõe ao magistrado “deveres em relação ao resultado da prestação jurisdicional, não mais podendo figurar como mero espectador do desenvolvimento procedimental”.
Sobre os meios executivos, mencionou que o “CPC/15 albergou, na linha dos deveres do juiz em relação à tutela executiva, o princípio da atipicidade dos meios executivos”, de modo que “a coerção psicológica sobre o devedor agora é a regra geral da execução civil, pelo que se pode enunciar que, na ordem do CPC/15, vige o princípio da prevalência do cumprimento voluntário, ainda que não espontâneo, da obrigação”.
E para justificar essa posição, a relatora fez analogia ao procedimento da execução de alimentos, em que a adoção de medidas executivas atípicas pode ocorrer mesmo antes das tentativas de excussão patrimonial.
Reforçando sua argumentação, a ministra defendeu que “não se deve confundir a natureza jurídica das medidas de coerção psicológica, que são apenas medidas executivas indiretas, com sanções civis de natureza material, essas sim capazes de ofender a garantia da patrimonialidade da execução por configurarem punições ao não pagamento da dívida”.
Feitas essas digressões, a relatora passou à análise das disposições normativas referentes ao contraditório e à fundamentação das decisões judiciais. Nesse ponto, ela resgatou a boa-fé e sinaliza que, como decorrência dela, o magistrado tem o dever de atentar-se ao devido processo legal substantivo.
Nessa linha, importante destacar os trechos do voto:
Assim, somente após a prévia oitiva do executado é que se abrirá a possibilidade de aplicação de medidas coercitivas indiretas, de modo a induzir ao cumprimento voluntário, ainda que não espontâneo, do direito exigido.
A decisão que autorizar a utilização de medidas coercitivas indiretas deve, ademais, ser fundamentada, não sendo suficiente para tanto a mera indicação ou reprodução do texto do art. 139, IV, do CPC/15 ou mesmo a invocação de conceitos jurídicos indeterminados sem ser explicitado o motivo concreto de sua incidência na hipótese concreta (art. 489, § 1º, I e II, do CPC/15), o que ilustra, mais uma vez, que o dever de boa-fé processual alcança o magistrado e impõe-lhe o dever de aplicar medidas proporcionais e razoáveis, em respeito ao devido processo legal.
Estabelecidas essas premissas, a relatora fez, então, a análise do caso concreto. Asseverou, de pronto, que o juízo de primeira instância proferiu decisão determinando a adoção de medidas executivas atípicas em desrespeito ao contraditório prévio e não fundamentou sua decisão. E concluiu que:
A falta de atendimento a essas exigências seria suficiente para macular a validade de referido ato processual e, por conseguinte, impedir a utilização desse meio de coerção indireta.
Entretanto, considerou que o executado, quando impugnou a decisão e invocou o princípio da menor onerosidade, deixou de atentar para a exigência da demonstração de que o mesmo resultado poderia ser alcançado por outros meios executivos e com isso, à luz do entendimento da relatora, houve “violação aos deveres de boa-fé processual e colaboração, previstos nos arts. 5º e 6º do CPC/15”.
Diante disso, assim concluiu:
Com efeito, sob a égide do CPC/15, não pode mais o executado se limitar a alegar a invalidade dos atos executivos, sobretudo na hipótese de adoção de meios que lhe sejam gravosos, sem apresentar proposta de cumprimento da obrigação exigida de forma que lhe seja menos onerosa, mas, ao mesmo tempo, mais eficaz à satisfação do crédito reconhecido do exequente.
Como esse dever de boa-fé e de cooperação não foi atendido na hipótese concreta, não há manifesta ilegalidade ou abuso de poder a ser reconhecido pela via do habeas corpus, razão pela qual a ordem não pode ser concedida no ponto.
A Terceira Turma acompanhou o voto da relatora integralmente e o julgamento se deu por unanimidade.
O ocaso do devido processo legal
O processo brasileiro não é regido pelo paradigma do instrumentalismo, ao menos não o é no âmbito da Constituição. Conforme já bem demonstrado por Eduardo José da Fonseca Costa, o processo é instituição de garantia das pessoas e não instrumento da jurisdição[1].
Dessa maneira, fica evidente a primeira discordância com relação ao julgado, que é relativa ao ponto de partida. Quando se compreende que o instrumentalismo rege a ideia do processo, este passa a ser compreendido como um instrumento da Jurisdição na efetivação dos direitos materiais. O processo perde, com isso, a sua essência de direito/garantia e transforma-se em meio de se atingir determinados objetivos. Deixa de ter um caráter limitador e passa a ser um facilitador.
Perde-se, com isso, a normatividade dos direitos e garantias fundamentais de natureza processual, como é o caso do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da fundamentação das decisões etc.
Essa ideia será retomada adiante.
Outra discordância fundamental que se tem com o julgado é relativo à ideia de “novo modelo processual” que teria sido estabelecido pelo CPC/2015. Nos termos do julgado, ter-se-ia superado o modelo adversarial e em seu lugar teria sido implantado um modelo cooperativo. A ideia não é solitária. Há considerável doutrina nesse sentido no país.
Entretanto, é necessário essa afirmação passe pelo filtro da norma constitucional. Não se aprofundará esta questão, porque o tema já foi bem enfrentado por Diego Crevelin de Sousa, que assim lapidou a essência da ideia: “o modelo cooperativo não é o modelo constitucional de processo e também não é uma peculiaridade sua em relação a outros modelos processuais a defesa de uma versão forte do contraditório e da fundamentação das decisões”[2].
Não sendo o modelo cooperativo o modelo constitucional e considerando a supremacia da Constituição, forçosa é a conclusão de que a norma infraconstitucional processual não pode criar um modelo diverso daquele imposto pela norma maior.
Outra premissa que precisa ser discutida é aquela relativa à ideia de que “a coerção psicológica sobre o devedor agora é a regra geral da execução civil, pelo que se pode enunciar que, na ordem do CPC/15, vige o princípio da prevalência do cumprimento voluntário, ainda que não espontâneo, da obrigação”.
Quando se trata de execução por quantia certa, ainda que o art. 139, IV/CPC possibilite a adoção de medidas executivas atípicas, fazendo-se uma interpretação sistemática das disposições procedimentais, infere-se claramente que a regra geral não é o da coerção psicológica, em detrimento dos meios de excussão patrimonial. Os meios executivos típicos de penhora de bens são a primeira porta a se tentar abrir diante da inércia do executado no cumprimento da obrigação. Sendo inefetivos estes meios, parte-se para os atípicos, que devem, segundo a própria relatora, ser devidamente justificados à luz das circunstâncias do caso concreto. A essa conclusão se chega a partir da análise do quanto legislado sobre o procedimento da execução por quantia certa (art. 523 e seguintes e art. 824 e seguintes do CPC).
O artigo 824/CPC é bastante expressivo quando dispõe que “(a) execução por quantia certa realiza-se pela expropriação de bens do executado, ressalvadas as execuções especiais”. A regra é a expropriação de bens.
Ademais, vale destacar o curioso exemplo citado no acórdão para justificar o posicionamento adotado: os meios executivos no procedimento para recebimento de obrigação alimentícia. Ou seja, em um parágrafo, a ministra relatora enuncia uma regra geral da execução e para justificá-la exemplifica lançando mão de um procedimento específico, que justamente goza dessa característica, porque tem por finalidade forçar o cumprimento de uma obrigação relativa a um direito material que o legislador buscou proteger de forma mais incisiva.
Comparar o procedimento da execução de alimentos com o de uma execução de pagar quantia qualquer é um equívoco que torna a exceção uma regra, na exata contramão do previsto no ordenamento.
Estabelecidas estas três premissas, vai-se além.
Como se viu da narrativa acima, a relatora do recurso fez extensa análise de disposições constantes do CPC/2015 e concluiu que houve, por parte do juiz, desrespeito ao contraditório e à fundamentação das decisões judiciais, diretamente, e, indiretamente, ofensa à boa-fé e à cooperação.
Além disso, entendeu haver, por parte do executado, desrespeito à regra do parágrafo único do art. 805/CPC, que estabelece a necessidade de indicação de meio executivo menos gravoso, que implicou em ofensa à cooperação processual.
Enfrentando as desobediências às normas, concluiu o tribunal que, embora o desrespeito ao contraditório e à fundamentação das decisões cometido pelo juiz fosse prévio àquele cometido pelo executado em relação à cooperação, este superaria aquele.
Pela fundamentação da decisão do STJ, não ficam claros os critérios interpretativos que levaram à conclusão, apesar da extensão do voto, já que as normas são interpretadas separadamente, mas, diante do conflito, os critérios de resolução não são expostos. O que, inclusive, nulifica a própria decisão do STJ, na medida em que configura desrespeito ao disposto no art. 489, §2º/CPC[3].
A relatora reforça a importância do devido processo legal, do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais, mas quando estas normas são colocadas diante da cooperação, sucumbem aquelas e prevalece esta.
Entretanto, a previsão da cooperação processual é de ordem infraconstitucional (art. 6º/CPC), enquanto que o devido processo legal, o contraditório e a fundamentação, além de terem assento infraconstitucional (arts. 9º, 10 e 11/CPC), estão textualmente previstos na Constituição Federal (art. 5º, LIV, LV e art. 93, IX, respectivamente).
Fazendo-se a devida interpretação constitucional, seria facilmente perceptível que uma decisão judicial que desrespeita o contraditório e a exigência de fundamentação não se sustentaria de modo algum. Há um defeito gravíssimo de constituição do ato processual decisório.
Sendo o processo uma garantia das pessoas em face do poder do Estado-Juiz, o desrespeito aos limites garantidores deslegitima cabalmente o ato de poder e não merece ele qualquer sobrevida quando submetido à apreciação das instâncias superiores.
E aqui se fala do que Calmon de Passos já explicava ser a efetividade do processo. Não se trata tão-somente da efetividade da decisão e, sim, de efetividade do devido processo legal, como fator de legitimação do poder estatal jurisdicional e de promoção da cidadania:
(...) advogar pura e simplesmente a efetividade do processo como equivalendo a efetividade da sentença nele proferida mascara, pérfida e perversamente, mesmo quando esta não seja a consciente intenção dos que o fazem, o propósito de se instituir o magistrado como um tirano, como o déspota que tantos séculos de luta e resistência procuraram, exatamente, de uma vez por todas, eliminar da vida política. Em resumo – equiparar a efetividade do processo à efetividade do decidido pelo magistrado é propugnar a inefetividade da cidadania.[4]
Isso tudo quer dizer que, identificada a nulidade da decisão por ofensa ao contraditório e à exigência de fundamentação, não convém que se tergiverse a respeito de posterior desobediência a outra norma por parte daquele que foi prejudicado pela decisão que é ilegal, ilegítima e inconstitucional.
Além disso, é necessário que se faça a análise pelo peso de cada norma. Não se equiparam normas constitucionais e normas infraconstitucionais. A norma constitucional prevalece. A regra da cooperação não tem assento na Constituição e, por isso, sequer se trata de eventual colisão de normas de mesma estatura.
Logo, a desobediência, pelo executado, da regra da cooperação jamais poderá legitimar uma decisão anterior que tenha ofendido o contraditório, a exigência de fundamentação e, de consequência, o âmago do devido processo legal.
Em sendo assim, a forçosa conclusão é de que o procedimento executivo não pode ser encarado, pelo juiz, como um vale-tudo. Ainda que se possa tratar da exigência de cooperação e que ela se impõe para partes e juiz, é inegável que as normas constitucionais hão de prevalecer.
E aqui resgata-se a ideia lançada no início deste tópico: o processo é instituição de garantia. Esta visão contraria o entendimento do STJ no caso, justamente porque a premissa utilizada no julgamento foi no sentido oposto, de que o processo é instrumento da jurisdição.
Sendo instrumento, o desrespeito às “formalidades” do contraditório prévio e da exigência de fundamentação pode ser superado porque o executado também desrespeitou outra formalidade, a necessidade de indicação do meio executivo menos gravoso para si.
E nesse embate de desrespeitos prevaleceu, como mais grave, aquele cometido pela parte, exatamente porque encarou-se o processo como instrumento da Jurisdição e não como garantia da parte e, de consequência, limite ao Estado-Juiz.
É mais grave o desrespeito AO dono do processo do que o desrespeito DO dono do processo. Assim entendeu o STJ e assim entende o autor deste artigo, mas ambos partimos de visões opostas.
Daqui se vê o processo como garantia, em que o dono do processo é o cidadão. De lá, se enxerga o processo como instrumento, em que o dono é o Estado-Juiz.
Notas e Referências
[1] “Perquirir pelo ‘ser constitucional’ do processo é revelar — tal qual uma clareira — a institucionalidade garantística que a Constituição lhe estabelece e que nele vem sendo encoberta pela obscura doutrina instrumentalista. É aclarar que o legislador deve estruturar o processo como instituição de garantia, não como instrumento de poder. É elucidar, enfim, que a) a função da jurisdição é aplicar imparcialmente o direito e que b) a função do processo é garantir que essa aplicação não se faça com desvios e excessos” (COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia. Acessado em 26/03/2019).
[2] SOUSA, Diego Crevelin de. O caráter mítico da cooperação processual. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-10-o-carater-mitico-da-cooperacao-processual-por-diego-crevelin-de-sousa. Acessado em: 26/03/2019.
[3] Art. 489, § 2º. No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
[4] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Cidadania e efetividade do processo. In: Ensaios e Artigos, vol. I. Salvador: JusPodivm, 2014, p, 393.
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