ABDPRO #116 - DECISÕES DE EFEITO VINCULANTE NO CPC/15: REVISÃO X SUPERAÇÃO

12/02/2020

Coluna ABDPRO

O Código de Processo Civil foi tímido ao prever mecanismos de superação das teses jurídicas às quais atribuiu efeito vinculante.

Ao tratar sobre os recursos repetitivos, o artigo 927, § 2º, do CPC dispõe que “a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese”. O artigo 927, § 4º, por sua vez, determina que “a modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”.

Quanto ao incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), a previsão de modificação está disposta nos artigos 986 e 987, § 2º do CPC, que determinam, em síntese, que “a revisão da tese jurídica firmada no incidente far-se-á pelo mesmo tribunal, de ofício ou mediante requerimento dos legitimados”. O incidente de assunção de competência (IAC), por sua vez, apenas menciona a previsão de revisão da tese jurídica, sem, contudo, indicar, minimamente, qual seria o procedimento para tanto, ao prever, no artigo 947, § 3º, do CPC que o “acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese”.

Merece destaque, no entanto, a previsão de superação de tese jurídica disposta no artigo 489, § 1º, VI do CPC, que impõe ao magistrado que deixar de aplicar “enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte”, o ônus de “demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

A leitura das referidas normas desperta as seguintes dúvidas: (i) qual órgão jurisdicional tem competência para revisar tese jurídica vinculante? (ii) qual o procedimento necessário para sua revisão? (iii) e, por fim, a hipótese contemplada no artigo 489, § 1º, VI do CPC seria distinta das demais hipóteses de revisão de teses jurídicas elencadas nos artigos 927, §§ 2º e 4º, 947, § 3º e 986 do Código de Processo Civil?

A superação de uma tese jurídica firmada em decisão judicial é algo inerente ao sistema. Afinal, tal como uma lei, que pode tornar obsoleta-se e imprestável a resolver conflitos de uma determinada sociedade, uma decisão judicial dotada de efeito geral e vinculante – como pretendem ser os “precedentes” brasileiros – , por igual, poderá tornar-se ultrapassada e deixará de ser aplicada.

Considerando que a vinculatividade do “precedentes” brasileiros depende da observância ao procedimento de “criação” de teses jurídicas previsto no CPC/15, impõem-se, logicamente, as seguintes consequências: (i) as teses de direito firmadas em recursos repetitivos, IRDR e IAC somente podem ser revisadas pelos tribunais que as criaram; (ii) a revisão da tese, com a fixação de uma nova, também dotada de efeito vinculante, demanda o cumprimento do mesmo rito previsto para fixação da tese original.

Ademais da revisão da tese jurídica, meio pelo qual uma decisão de efeito vinculante é substituída por outra, o Código de Processo Civil também prevê a hipótese na qual o magistrado identifica, no julgamento de um caso concreto, que determinada tese jurídica encontra-se superada. Esta é a hipótese prevista pelo artigo 489, § 1º, VI do Código de Processo Civil.

A topografia da norma, localizada no capítulo destinado à sentença, deixa inequívoco que o comando se dirige a qualquer magistrado, não apenas a determinados órgãos dos tribunais que detém competência para firmar teses vinculantes. E a sua redação, por igual, evidencia que a superação do “precedente” tem efeito restrito ao caso em julgamento.

O nosso sistema, como se vê, permite a coexistência dos dois fenômenos: a revisão de uma tese jurídica (substituição de tese jurídica por outra, com igual efeito vinculante) e a superação da tese no caso concreto. Explica-se: enquanto aquela, conforme destacado, demanda procedimento qualificado promovido por tribunal específico, esta pode ser realizada por qualquer magistrado, atendido o necessário ônus da fundamentação, por meio da demonstração analítica das razões pelas quais a tese estaria superada.

Nesta última hipótese, consoante destacam Julio Rossi e Diego Crevelin[1], “o precedente só não é aplicado no caso concreto, mas continua existindo e, em princípio, vinculando outros juízes nas soluções de outros casos (inclusive aquele mesmo juiz na solução de outros casos, que só poderá afastar o precedente expondo as razões da sua contrariedade ao direito positivo)”.

A possibilidade de superação da tese jurídica vinculante no caso concreto, por magistrado de hierarquia inferior ao tribunal que a criou não é aceita de forma unânime na doutrina brasileira. Dentre os doutrinadores que não admitem a possibilidade de superar por órgão diverso daquele que fixou a tese jurídica, Daniel Mitidiero[2] defende que “é evidente que apenas a corte que é responsável pela formação do precedente pode dele se afastar legitimamente”.

No mesmo sentido, Ravi Peixoto[3], ao delimitar o alcance do artigo 489, § 1º, VI do CPC, defende que a aplicação da referida norma estaria restrita às seguintes hipóteses: (i) superação pelo próprio tribunal que firmou a tese jurídica; (ii) aplicação por magistrado ou tribunal de hierarquia inferior se a tese já tiver sido revisada pelo tribunal que a firmou ou por lei posterior; (iii) aplicação da superação antecipada (anticipatory overruling[4]).

O entendimento acima exposto, no entanto, impõe restrições que não foram previstas pela norma em referência. Ao contrário, ela é clara ao permitir que, cumprido o ônus da fundamentação, a tese jurídica poderá deixar de ser aplicada na hipótese de encontrar-se superada, ainda que essa superação não tenha sido sinalizada pelo tribunal que fixou a tese.

Importa destacar que o entendimento ora proposto não conflita com a vinculação que parte da doutrina atribui à redação do artigo 927 do CPC, ao contrário, corrobora para a salutar oxigenação do sistema. A revisão de teses jurídicas firmadas em recursos repetitivos, IAC e IRDR encerra procedimento de difícil aplicação prática, por conta da existência de diversos dispositivos previstos no código que fomentam a aplicação dos “precedentes” como técnica de diminuição de acervo, a exemplo dos artigos 332, II e III[5], 932, VI e V[6] e 1.030, I[7] do CPC. Todos colaboram para a manutenção da tese firmada, sendo necessário, portanto, que a oxigenação do sistema seja permitida em qualquer instância.

É natural, inclusive, que os primeiros sinais de inadequação de uma tese jurídica a um novo contexto social, político e econômico apareçam em casos futuros cuja apreciação será realizada pelo magistrado em primeira instância, aquele que possui maior contato com os fatos e provas e que perceberá, eventualmente, que a tese jurídica fixada pelo tribunal (ordinário ou superior) já se encontra obsoleta para a solução do caso.

Não se pode perder de vista, ainda, que o movimento de revisão de uma tese jurídica é lento e gradual e deve naturalmente começar de baixo para cima, de modo que a controvérsia, surgida nas instâncias inferiores, chegue, em um momento posterior, aos tribunais ordinários ou superiores. Do contrário, negando-se a possibilidade de qualquer magistrado reconhecer a superação de uma tese jurídica vinculante, teríamos que contar que o tribunal que a firmou tivesse uma espécie de iluminação para decidir reabrir o debate da questão.

Nesse sentido, Eduardo José da Fonseca Costa[8] destaca que, se a interpretação do direito ficasse apenas ao encargo dos tribunais superiores, eles “trabalhariam imunes a um controle objetivo-racional da marcha que os leva do texto normativo à norma jurídica”. E completa, ainda, o autor “eles encerrariam não só as condições de possibilidade de conhecimento do direito [“o direito somente pode ser conhecido em seu momento conflitivo-judicial”], mas seriam a própria condição de possibilidade do direito [“o direito é o que os tribunais dizem que ele é”]. Todo o direito seria resolvido no interior dos tribunais, como se eles fossem o próprio mundo do direito; só a partir deles se discutiriam autenticamente os problemas da juridicidade”.

Quanto à necessidade de fundamentação para afastamento da tese jurídica em razão da sua superação Lenio Streck e Georges Abboud[9] esclarecem que “Para se afastar dessa decisão, o juiz deve, obrigatoriamente, proceder a exaustiva fundamentação, a fim de evidenciar que para aquele caso concreto não deve ser mantida aplicação do precedente”. E esse dever de fundamentação será cumprido se o magistrado demonstrar a existência de modificações sociais, políticas, econômicas ou normativas acerca da matéria, a demandar a não aplicação da tese jurídica por não mais se coadunar com a realidade jurídica ou social[10].

O comando previsto no artigo 489, § 1º, VI do CPC, portanto, dirige-se a qualquer magistrado que, verificando que a tese jurídica se encontra superada, mediante imprescindível fundamentação, poderá afastar a sua aplicação.

A revisão de uma tese vinculante pelo mesmo tribunal que a criou, por outro lado, não gera polêmica na doutrina. Afinal, somente o tribunal que criou o padrão decisório de efeito vinculante poderá determinar, também com efeito vinculante, a sua superação definitiva. Repita-se que as teses jurídicas vinculantes alcançam esse status por força de lei, mediante procedimento qualificado. A sua revisão, portanto, com a fixação de novo padrão decisório, demanda a observância do mesmo rito de “criação” do “precedente”, razão pela qual, inclusive, o manejo de reclamação para realização de revisão de tese jurídica não se afigura adequado.

Conclusão

Ao final, é possível concluir que o Código de Processo Civil não tratou da temática referente à superação de teses jurídicas vinculantes de maneira organizada e sistemática, sobrecarregando doutrina e jurisprudência que tentam, ainda sem qualquer posicionamento predominante, interpretar o que está “dito” pela atual legislação.

Afigura-se mais razoável, entretanto, concluir que a atual legislação previu duas hipóteses distintas para a questão: (i) a superação da tese no caso concreto, possível de ser feita por qualquer magistrado, desde que cumprido o ônus da fundamentação; (ii) a revisão da tese jurídica pelo tribunal que a criou, mediante procedimento qualificado, substituindo-a por outra dotada do mesmo efeito vinculante.

Essa dupla possibilidade é necessária para oxigenação do sistema, e colabora para a construção de uma jurisprudência íntegra e coerente.

 

Notas e Referências

[1] SOUSA, Diego Crevelin de; ROSSI, Julio César. Precedente: na dúvida... Não aplico! A dura saga dos precedentes no Brasil. O exemplo privilegiado da presunção de inocência. Disponível in https://emporiododireito.com.br/leitura/precedentes-na-duvida-nao-aplico-a-dura-saga-dos-precedentes-no-brasil-o-exemplo-privilegiado-da-presuncao-de-inocencia. Acesso em 8.3.2019.

[2] MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 107. Esse também é o entendimento sustentado por Luiz Guilherme Marinoni, segundo o qual “após a definição da Corte Suprema, os tribunais de apelação não mais podem negar a aplicação do sentido definido no precedente, embora possam continuar a colaborar mediante a apresentação de ‘opiniões dissidentes’, ou seja, de razões que demonstrem a necessidade de revogação do precedente”. MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto Corte de Precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 160.

[3] PEIXOTO, Ravi. A superação de precedentes (overruling) no Código de Processo Civil de 2015. Revista de Processo Comparado, São Paulo, vol.3/2016.

[4] Sobre o alcance do anticipatory overruling, Zulmar Duarte esclarece que a “técnica da superação antecipada deve ser utilizada em casos extremos, quando se verifique que o próprio tribunal competente, ou seus órgãos componentes, vem decidindo de forma diferente daquela propugnada pelo precedente. Também quando o tribunal que editou o precedente dá sinais de que irá superá-lo no futuro, haja vista sua inadequação atual (technique of sinaling)”. (DUARTE, Zulmar. O juiz e a superação do precedente: anticipatory overruling. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/novo-cpc/juiz-e-a-superacao-do-precedente-antecipatory-overruling-16102017. Acesso em 11.2.2020).

[5] Art. 332.  Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:

[...]

II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

[6] Art. 932.  Incumbe ao relator:

IV - negar provimento a recurso que for contrário a:

a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;

b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:

a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;

b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

[7] Art.  1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá:

I – negar seguimento:

a) a recurso extraordinário que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral;

b)  a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos;  

[8] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Os tribunais superiores são órgãos transcendentais? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-dez-03/eduardo-costa-tribunais-superiores-sao-orgaos-transcendentais. Acesso em 11.2.2020.

[9] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 40.

[10] A respeito de possíveis critérios para aferir a superação de uma tese jurídica, Patrícia Perrone Campos Mello assinala que esse fenômeno ocorre quando se verificar a sua incongruência social, ou seja, a “relação de incompatibilidade entre as normas jurídicas e os standards sociais; [...] um vínculo negativo entre as decisões judiciais e as expectativas dos cidadãos”, bem como a sua inconsistência sistêmica (MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 237).

 

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