ABDPRO #101 - A “Escolha de Sofia” e a taxatividade do agravo de instrumento

04/09/2019

 

Coluna ABDPRO

Para quem não sabe, a “Escolha de Sofia” (Sophie's Choice) é o nome de um filme estadunidense de 1982, dirigido e roteirizado por Alan J. Pakula, tendo por base o romance escrito em 1979 por William Styron.

O filme trata do dilema de "Sofia", uma mãe polaca, filha de pai antissemita, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher um, ambos morreriam. Essa história dramática é contada em 1947 ao jovem "Stingo", um aspirante a escritor e que vai morar no Brooklyn, na casa de "Yetta Zimmerman", onde ele acaba tendo Sofia como sua vizinha.[1]

Assim, a expressão “escolha de Sofia” representa aquilo que, na gíria popular, conhecemos como uma escolha de vida ou morte, uma escolha angustiante, aflitiva.

E o que isto tem a ver com o julgamento do Recurso Especial Repetitivo n.°1.704.520/MT?

Em primeiro lugar, é importante deixar claro que, neste julgamento, o STJ definiu que o rol do agravo de instrumento é de taxatividade mitigada, admitindo a sua utilização quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação.

Hoje, com base neste entendimento que, diga-se de passagem, foi firmado em sede de recurso repetitivo, sendo, pois, um precedente obrigatório (art.  927, inc. III, do CPC), é possível manejar o agravo de instrumento, por exemplo, para atacar uma decisão sobre competência, inclusive foi esta a hipótese discutida no referido recurso especial.

Fala-se ainda no cabimento do agravo nos casos de indeferimento de prova, em especial quando se tratar de prova pericial que pode desaparecer, como no caso de demolição de um prédio ou então, como recentemente decidiu o TJ/SP, da decisão que indeferir pedido de substituição de perito[2].

Com base neste entendimento também é possível recorrer da decisão que indeferir a decretação do segredo de justiça, ou então, de uma decisão sobre arguição de suspeição e impedimento, pois não haverá nenhuma utilidade em aguardar o julgamento da apelação, que, nestes dois casos, se mostrará inútil.

Também é possível sustentar o cabimento do agravo de instrumento para atacar uma decisão judicial que verse sobre a estrutura procedimento a ser observada, seja nos casos em que a lei prevê um determinado procedimento especial em virtude de especificidades do direito material, ou então em decorrência da celebração de negócios processuais sobre procedimento (CPC, 190),  pois não seria viável aguardar o julgamento da apelação para invalidar parte significativa dos atos praticados.

Em resumo, a ratio do julgamento do STJ é a de que se o pronunciamento jurisdicional se exaurir de plano, gerando uma situação de difícil ou impossível restabelecimento, a referida decisão deve ser impugnada imediatamente, pois o reexame futuro não trará nenhuma utilidade ao processo.

Definida algumas hipóteses de cabimento do agravo de instrumento com base no entendimento firmado pelo STJ, temos que retornar ao nosso ponto: O que este julgamento tem a ver com a “escolha de Sofia”?

Pois bem.

Durante o referido julgamento, a rel. Min. Nancy Andrighi, após contextualizar as teorias a respeito do rol do art. 1015 e fixar as bases de seu voto[3], afirmou o seguinte: “ Qualquer que seja a interpretação a ser dada por esta Corte, haverá benefícios e prejuízos, aspectos positivos e negativos, tratando-se de uma verdadeira “escolha de Sofia””.

O ponto que ora se coloca e que representa o cerne deste breve texto é saber se realmente haveria espaço para o Poder Judiciário efetuar esta escolha, ou seja, se haveria campo para decidir pela ampliação das hipóteses de cabimento do agravo?

A respeito dos limites decisórios, que é, sem dúvida, o pano de fundo desta decisão, Eduardo José Fonseca da Costa propõe que o juiz deve observar o princípio da legalidade (plano positivo) que, por sua vez, concretiza a arqui-garantia da não criatividade (plano pré-positivo).[4]

Assim, o juiz deve obediência aquilo que foi aprovado democraticamente, de modo que ele só pode se movimentar dentro das possibilidades semânticas do texto legal, sendo que qualquer movimento fora deste conteúdo semântico consiste em uma criação judicial, o que implica em uma atuação legislativa, em nítida afronta ao regime democrático. [5]

Calcado nestas premissas, não havia espaço para que o Poder Judiciário, no exercício de sua função típica, interpretasse o rol do art. 1015 e, a partir deste exercício, criasse mais uma hipótese de cabimento do recurso, pois ao assim agir o judiciário incorreu em atividade criativa (= legislativa).

Em outras palavras, o que o STJ fez foi criar mais um inciso no rol do art. 1015, que agora deve ser interpretado à luz dos seus 13 incisos legais, sendo que um deles foi vetado, e de um inciso judicial, consistente no cabimento do recurso quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação, o que, diga-se de passagem, tem causado alguns problemas de ordem prática, pois não se sabe o que o Poder Judiciário vai entender como urgente, o que acarreta o risco de, lá na frente, vir uma decisão judicial dizendo que aquela matéria era urgente e, como não houve agravo, encontra-se preclusa.[6]

O curioso disso tudo é que a própria Min. Nancy Andrighi [7], durante o seu voto, disse que a opção feita pelo legislador foi pela taxatividade das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento. Ora, se o próprio julgador reconhece esta taxatividade, como é possível que ele próprio ignore esta realidade? Como é possível que o Poder Judiciário decida que o rol do art. 1015 não é taxativo se ele mesmo entende que a opção legislativa foi o contrário, cuja lei foi aprovada democraticamente e não padece de inconstitucionalidade?

 

Não há dúvidas de que a opção do Código de 2015 de retornar ao sistema de 1939 foi ruim, ainda mais sabendo que este sistema não deu certo. [8] No entanto, não pode o Poder Judiciário usurpar de uma competência que não é sua e, por vias indiretas, alterar o CPC, quando o correto é sua alteração através do devido processo legislativo, competindo ao Congresso Nacional aprovar uma nova lei para alterar o rol e prever outras hipóteses de cabimento do agravo que não àquelas previstas no referido dispositivo.

Enfim, apesar de concordamos com a Min. Nacny Andrighi quando diz que “o estudo da história do direito também revela que um rol que pretende ser taxativo raramente enuncia todas as hipóteses vinculadas a sua razão de existir, pois a realidade normalmente supera a ficção,  não nos parece possível que o Poder Judiciário crie outras hipóteses de cabimento do recurso de agravo, ainda que se tenha em mente suas normas fundamentais, pois esta opção, como já dito, foi feita pelo Legislador, não podendo o Poder Judiciário exercer este papel corretivo quando, na verdade, está a exercer uma função criativa (=legislativa).

 

Para finalizar, esta “escolha de Sofia” foi feita pelo Legislador, de modo que só compete a ele proceder esta correção através do devido processo legislativo. Foi ruim a escolha? Sim, pois a história do CPC/39 deixou isto claro, mas, mesmo assim, optou-se por retornar à esta sistemática que, como dito, não acompanha a realidade dos casos em que a decisão necessita ser atacada imediatamente. Logo, o único caminho constitucional é através da mudança do art. 1015, o que demanda observância do devido processo legislativo. Do contrário, o que se verifica é o exercício de atividade legislativa por parte do tribunal, ao arrepio dos próprios limites objetivos do direito e da própria separação de poderes, tão caro em um Estado Democrático de Direito.

 

Notas e Referências

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Escolha_de_Sofia_(filme)

[2] Agravo de instrumento. PROPRIEDADE INDUSTRIAL. SUBSTITUIÇÃO DE PERITO. Recurso que deve ser admitido em virtude da subsunção ao conceito de urgência adotado pelo STJ, no julgamento do REsp n. 1.704.520/MT. Mérito. Hipótese em que a perita nomeada afirmou sua expertise no fato de ter atuado em outros feitos e informou que a realização dos trabalhos será acompanhada por engenheiro. Formação jurídica que não é suficiente para satisfazer a exigência de conhecimento técnico ou científico especializado no objeto da perícia. Requisito que não pode ser suprido pelo auxílio de terceiros. Substituição que se impõe, nos termos do art. 468, I, do CPC. Decisão reformada. Recurso provido.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2230587-60.2018.8.26.0000; Relator (a): Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 03/04/2019; Data de Registro: 03/04/2019).

[3] “Trecho do voto da Min. Nancy Andrighi: “(i) A controvérsia limita-se, essencialmente, à recorribilidade das interlocutórias da fase de conhecimento do procedimento comum e dos procedimentos especiais, exceto o processo de inventário, em virtude do que dispõe o art. 1.015, parágrafo único, do CPC, que prevê ampla recorribilidade das interlocutórias na fase de liquidação ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário. (ii) A majoritária doutrina se posicionou no sentido de que o legislador foi infeliz ao adotar um rol pretensamente exaustivo das hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento na fase de conhecimento do procedimento comum, retornando, ao menos em parte, ao criticado modelo recursal do CPC/39. (iii) O rol do art. 1.015 do CPC, como aprovado e em vigor, é insuficiente, pois deixa de abarcar uma série de questões urgentes e que demandariam reexame imediato pelo Tribunal. (iv) Deve haver uma via processual sempre aberta para que tais questões sejam desde logo reexaminadas quando a sua apreciação diferida puder causar prejuízo às partes decorrente da inutilidade futura da impugnação apenas no recurso de apelação. (v) O mandado de segurança, tão frequentemente utilizado na vigência do CPC/39 como sucedâneo recursal e que foi paulatinamente reduzido pelo CPC/73, não é o meio processual mais adequado para que se provoque o reexame da questão ventilada em decisão interlocutória pelo Tribunal. (vi) Qualquer que seja a interpretação a ser dada por esta Corte, haverá benefícios e prejuízos, aspectos positivos e negativos, tratando-se de uma verdadeira “escolha de Sofia”. (vii) Se, porventura, o posicionamento desta Corte se firmar no sentido de que também é cabível o  agravo de instrumento fora das hipóteses listadas no art. 1.015 do CPC, será preciso promover a modulação dos efeitos da presente decisão ou estabelecer uma regra de transição, a fim de proteger às partes que, confiando na absoluta taxatividade do rol e na interpretação restritiva das hipóteses de cabimento do agravo, deixaram de impugnar decisões interlocutórias não compreendidas no art. 1.015 do CPC.”

[4] COSTA, Eduardo José da Fonseca. As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. In: http://emporiododireito.com.br/leitura/as-garantias-arquifundamentais-contrajurisdicionais-nao-criatividade-e-imparcialidade.

[5] COSTA, Eduardo José da Fonseca. As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. In: http://emporiododireito.com.br/leitura/as-garantias-arquifundamentais-contrajurisdicionais-nao-criatividade-e-imparcialidade .

[6] Muito pertinente a observação feita por Ana Tereza Basílio e Paula Menna Barreto, apontando o elevado risco que agora se tem sobre a definição da urgência para fins de cabimento do agravo, que, ao final, ficará à mercê dos tribunais: “Assim, a aferição do requisito de urgência para o cabimento ou não da interposição de agravo de instrumento traz consigo o risco elevado de preclusão da decisão desfavorável à parte; ou seja, passou a ser imprescindível definir quais questões seriam, de fato, consideradas urgentes e, portanto, capazes de mitigar a regra do rol taxativo, sob pena de preclusão. Ficam as partes e seus patronos, pois, à mercê da avaliação subjetiva da jurisprudência dos Tribunais, aos quais caberá definir os casos em que seria possível ou não a interposição de recurso de agravo de instrumento. Acaso a parte decida por não interpor imediatamente o recurso, por entender pelo seu não cabimento, o causídico poderá estar deixando precluir relevantes questões jurídicas, se as invocar apenas em apelação ou contrarrazões e o julgador de segundo grau de jurisdição considerar que se tratava de matéria urgente. Ad cautelum, a praxe forense poderá, então, diante da taxatividade mitigada, concluir que seria sempre mais seguro interpor o agravo de instrumento para que o Tribunal, entendendo que não seria o caso da recorribilidade imediata, defina que a decisão poderá ser objeto de discussão futura, por meio da apelação ou contrarrazões. Apesar de redundar em verdadeiro confronto aos nobres princípios de simplificação do processo que nortearam o novo diploma processual, essa seria a conduta mais cautelosa. Caberá ao Tribunal, nestes casos, realizar o imprescindível distinguish entre o julgamento paradigma e o caso concreto para, decidindo pela existência de diferenças de direito capazes de afastar o precedente, determinar que a decisão deverá ser objeto de questionamento posterior à sentença, em novo recurso a ser interposto.” (A taxatividade mitigada no agravo de instrumento: juízo de conveniência e instabilidade jurídica. Disponível em: https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/707516478/a-taxatividade-mitigada-no-agravo-de-instrumento-juizo-de-conveniencia-e-instabilidade-juridica)

[7] “A despeito de ter havido, ao que tudo indica, uma consciente e política opção do legislador pela taxatividade das hipóteses de cabimento do recurso de agravo de instrumento na fase de conhecimento do procedimento comum e dos procedimentos especiais, exceção feita à ação de inventário, estabeleceu-se, na doutrina e na jurisprudência, uma séria e indissolúvel controvérsia acerca da possibilidade de recorrer, desde logo, de decisões interlocutórias não previstas no rol do art.  1.015 do CPC e que pode ser sintetizada nas seguintes posições: (i) o rol é absolutamente taxativo e deve ser interpretado restritivamente; (ii) o rol é taxativo, mas comporta interpretações extensivas ou analogia; (iii) o rol é exemplificativo.” (grifo nosso)

[8] Decisões interlocutórias agraváveis (rol fechado). O Código claramente pretendeu estabelecer rol fechado para as hipóteses passíveis de justificar a interposição do agravo de instrumento. O ideal subjacente à lista dos casos de agravo de instrumento foi a diminuição na utilização de tal via recursal, como pretendido desafogo ao Poder Judiciário. Voltou-se ao regime do CPC de 1939 (art. 842), historicamente reconhecido como desastroso (por isso alterado no CPC de 1973), na medida em que o legislador não consegue represar a realidade em seus esquemas formais. Como o rol apresentado pelo art. 1.015 é manifestamente insuficiente, não prevendo, para ficarmos apenas em um exemplo, agravo de instrumento contra decisão versando sobre competência, não tardaram entendimentos a propugnar uma interpretação ampliativa do rol estipulado. (...) Nada obstante, considerado o direito posto, não se pode ampliar o rol do art. 1.015, sob pena inclusive de comprometer todo o sistema preclusivo eleito pelo Código. (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar. Execução e recursos: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2017, p. 1070).

 

 

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