A velocidade frenética que consome as garantias processuais

24/03/2015

 Por Alexandre Morais da Rosa - 24/03/2015

Fórum de uma grande cidade. Tarde quente. Ar condicionado recém ligado. Gente se apertando na sala de espera. Audiências atrasadas. Pauta com 10 audiências de instrução. Dezenas de testemunhas. Apenas 4 horas para a realização. Pressa de todos. Rápidos cumprimentos. Corrida para que a testemunha se acomode, responda às perguntas telegráficas. Assinada a assentada. Sair correndo. Claro que isto se trata da regra. Se for caso de gente bacana e/ou advogado conhecido, a coisa pode mudar. Um processo frenético, num dia de fúria. Conferir agenda, dirigir, atender o celular, conferir os e-mails, realizar as atividades profissionais, dar atenção à família, pagar contas, atender clientes, ler os jornais, conferir as últimas notícias na internet, ler os informativos, realizar exercícios físicos, ler, enfim, um sem número de atividades da vida cotidiana leva ao muro das lamentações de todos os dias. Não sobra tempo para mais nada. O dia termina sem que se tenha conseguido realizar o básico. Não se pretende, antecipe-se, dar qualquer receita de como fazer o dia ter mais horas ou mesmo de uma reengenharia do tempo. A reflexão que se pretende fazer é: como esta aceleração (culto à velocidade) se reflete no processo. Há uma compulsão para se julgar mais rápido, e mais eficiente, para sobrar um resto de tempo para o lazer, para outras atividades. Há o-pressões por julgamentos. A ideologia da estatística: dos números. Isto cobra um preço na vida dos sujeitos espremidos pelas diversas atividades de uma agenda lotada. Quem não é veloz é perdedor, improdutivo e, atualmente, ineficiente. Mas, para se realizar um processo democrático é preciso de tempo. Nem sempre se pode acelerar como se pretende, sob pena de se perder a própria possibilidade de compreensão. Em alguns casos, pois, é preciso desacelerar, em nome da Democracia.

A pretensão deste escrito, pois, é justamente discutir sobre a aceleração no mundo contemporâneo e, especialmente, os impactos no processo, a partir de uma crítica ao modelo neoliberal, claro, a saber de “custos e benefícios”, na linha da “Law and Economics” (Posner). É impossível, atualmente, procurar entender a dinâmica do processo brasileiro sem uma leitura dos custos, ou da “Análise Econômica do Direito”. Não para se concordar com estes sicários, mas para poder os criticar desde onde falam. Não sem razão disse Milton Friedman que o Direito é muito importante para ficar nas mãos dos juristas. Isto porque os “custos” dos processos judiciais acabam se constituindo como “externalidades” prejudiciais ao “Mercado” e sua ilusória “auto-regulação”: “geração espontânea”. Partindo da proteção da “propriedade privada” e da “autonomia dos contratos”, em nome da liberdade e autonomia dos sujeitos, o modelo de Poder Judiciário Neoliberal pretende que a Jurisdição seja o garante de seus pressupostos, desprezando qualquer pretensão de “Justiça Social”, como apontou Hayek. O Documento 319 do BID descreve o projeto de Justiça ideal para a América Latina e o Caribe a partir de um modelo formal capaz de garantir a prevalência dos dogmas neolibeais – propriedade privada e autonomia dos contratos – com o menor custo possível

Nesta perspectiva neoliberal o processo “como procedimento em contraditório” (Fazzalari), constitucionalmente garantido (CR/88, art. 5o, LV), resta aterrado pelo “tsunami” da eficiência, a saber, um movimento silencioso de abortamento de garantias processuais, rumo a um “Judiciário Eficiente”. Este Novo Judiciário deixa de lado os aspectos “qualitativos” para se prender à lógica “quantitativa”, na qual as estatísticas de julgamento e a uniformidade decisória possa direcionar para uma maior previsibilidade das decisões e assim contribuir – dizem os neoliberais – positivamente para o pleno desenvolvimento do Mercado, e do País. Este discurso sedutor acaba enganando os incautos de sempre, dado que impede qualquer possibilidade de realização do Estado Democrático de Direito e a implementação de “Direitos Fundamentais” (Ferrajoli). Sua lógica parte, de um lado, pelo fomento de métodos alternativos de resolução de conflitos (mediação e arbitragem) e, por outro, da “McDonaldização” do Poder Judiciário. Neste último aspecto acontece uma “verticalização” decisória concentrada no Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ), os quais passam a ser a “maestros” da “Grande Orquestra”, metáfora do Poder Judiciário. De logo, os sentidos acabam sendo colonizados e diante da ausência de ânimo – quiçá preguiça – dos atores jurídicos, o campo da Jurisdição, ligada indissociavelmente ao Poder, acaba sendo “pasteurizada” politicamente. Enfim, há uma “despolitização política do campo jurídico” em fórmulas prontas acopladas ao paradigma da “Filosofia da Consciência” prevalecente no Brasil, como bem denuncia Lenio Streck. A “quantidade” não implica em “qualidade”. Claro que se a “qualidade” já está previamente dada e a decisão nada mais é do que a colagem de um rótulo (imagem) no produto decisão, a qualidade já vem aprovada pela matriz e não se pretende mesmo que se faça qualquer reflexão.

Para este projeto a noção de velocidade é uma questão fundamental porque se constitui numa ameaça tirânica (Virilio). O condicionamento mercadológico opera uma impossibilidade de crítica impulsionada pela velocidade da intervenção, segundo a qual a possibilidade de assimilação, reflexão e resistência acabam, por básico. É impossível continuar aderindo ingenuamente a esta obscena aceleração. A velocidade implica, no caso jurídico, no estabelecimento de padrões, procedimentos cada vez mais uniformes, daí a Súmula Vinculante, baluarte do discurso da eficiência, atender, com folga, à demanda de velocidade total. A decisão judicial acaba se transformando em opções ba(na)lizadas, no estilo peça pelo número; “MacDecisões” impostas pela matriz (STF e STJ).

De outro lado, a publicidade das decisões modernas, atuais, geradas por informativos on-line, sites de consulta rápida, implicam em novos produtos consumíveis escopicamente, fast-foods de sentido. A velocidade, como meio, precisa, na lógica neoliberal, ser reduzida, suprimida, no agora: já. Decisão relâmpago. Daí o perigo de uma decisão sem compreensão, no ritmo da velocidade total, sem contextualização histórica, isto é, sem fracionamento temporal.

Esta relação de direito com a velocidade é imposta sub-repticiamente pelo poder, então do Estado, e hoje entregue a uma nova casta mercadológica, a saber, por grandes conglomerados econômicos – multinacionais e bancos – que congregam o poder de decisão, utilizando-se, para tanto, parafraseando, às avessas, Althusser, dos “aparelhos ideológicos do mercado”, no dito “Direito Reflexivo”, já criticado por Lyra Filho e Jeanine Nicolazzi Philipi. Logo, o estudo da economia da velocidade – dromologia – é algo que não pode ser deixado a latere (Décio Gomes), sob pena de se encobrir o significante mestre da sociedade contemporânea (Virilio e Ost). De alguma forma é preciso perceber as conseqüências da aceleração dos mercados, da internet, na lógica dos processos judiciais. A “Justiça da velocidade” não respeita os tempos mortos, as limitações de compreensão, exigindo sempre e sempre um resultado mais eficiente, vinculado à lógica dos custos.

Pensar as diversas velocidades dos processos é o desafio. Perceba-se que não se está defendendo a demora, a vadiagem de alguns magistrados deste país. Não se está particularizando. A ideia é que se pense a estrutura, como aponta Salah Khaled Jr (aqui). Evidentemente que a lentidão aparente do processo clássico recebeu os influxos das novas tecnologias. Entretanto, longe de reflexos, o padrão de velocidade é incompatível com as possibilidades de construção de verdades (desubstancializadas, claro). O processo que era a garantia de construção de verdades de maneira intersubjetiva, no tempo, se transforma em um transtorno a ser superado em nome da eficiência. Nesta lógica, uns pretendem abreviar, outros mais fogosos, eliminar (Basta ver o inconstitucional art. 285-A do Código de Processo Civil, por violar do devido processo legal). Existe a ilusão de que a velocidade é salvadora na busca de uma inalcançável, por básico, Verdade e/ou felicidade perene. Esta ilusão embala os bem intencionados atores jurídicos, cobrando, todavia, o preço da Democracia.

Esta compulsão por velocidade torna impossível a visão. Permite apenas que se veja o que se quer, ou se pode. Do cinema e da televisão restaram os resquícios de uma possibilidade de representação (também ultrapassada, por primário), mas que mantinha um resto de reflexão. Em nome da transparência tudo se transforma em possível, situação própria do “Homem sem Gravidade” de que nos fala Charles Melman. O processo, pois, é um campo de percepção em que a velocidade acelerada impede a aquisição dos significantes necessários ao debate democrático das pretensões de validade. A compreensão do “processo como procedimento em contraditório”, nos moldes de Fazzalari, possui um custo de tempo, dinheiro, incompatível com a lógica da eficiência. Em nome da salvação eficiente, justifica-se a exclusão da defesa, dos testigos, ressuscitando-se uma compreensão de Verdade Substancializada, até então enterrada. Mas esta velocidade em excesso precisa de um limite, aliás, pouco aceito pelo discurso cientificista e adubado ideologicamente.

Retoma-se, aqui, pois, o que se enunciou no livro “Decisão Penal: a bricolage de significantes”, publicado pela Lumen Juris, 2006, fruto de minha tese de doutorado. Nele procurei demonstrar que a epistemologia dedutiva não se sustenta filosófica e epistemologicamente, discutindo, também, os próprios limites da epistemologia diante da reviravolta lingüística, ou seja, do aterramento da distância entre sujeito e objeto – “Filosofia da Linguagem” (Streck). A decisão muitas vezes pretende ser uma fotografia instantânea do momento da conduta ou um filme. Para ambas é preciso saber que existe um fotógrafo e um diretor de cinema, os quais escolhem as perspectivas... Enfim, a trama discursiva é que articula o sentido, sem que haja metalinguagem salvadora (Aroso Linhares).

A pretensão de construir uma Teoria do Direito Positiva, de caráter exclusivamente formal, não mais se sustenta, embora seja instrumentalmente útil. A postura formalista recorre à Teoria para atribuir sentido ao mundo da vida, distanciando-o paulatinamente da realidade, coisificando os sujeitos e os conflitos existentes no âmbito social. A abstração lógico-formal trata os conflitos jurídicos como meras hipóteses de incidência das normas jurídicas, manejadas através de conceitos, classificações e categorias, por certo para servir ideológica e retoricamente (CunhaWarat) de ‘mecanismo paliativo de desencargo’ (Miranda Coutinho). Em outras palavras, os conflitos são adequados em standarts dogmáticos, cuja atribuição de sentido é formulada pelo senso comum teórico. Ao se buscar a resolução dos conflitos pelo modelo lógico formal, a atividade dos atores jurídicos é a de alcançar o sentido correto das normas jurídicas, capaz de ser desvelado mediante métodos interpretativos adequados, formulados, todavia, pelo senso comum teórico. Longe de ser o verdadeiro sentido, nada mais é do que o da fala prevalente. De sorte que o sentido já vem pré-dado pelo discurso jurídico autorizado, cabendo ao ator jurídico, vinculado à praxis, encontrar a melhor doutrina ou a jurisprudência consolidada pelos Tribunais, renunciando, assim, ao seu papel de compreender. Dito de outra maneira: compete ao ator jurídico aderir (pretensamente sem culpa) aos limites de sentido anteriormente estabelecidos pelos intérpretes autorizados pelo senso comum teórico. O trabalho deixa de ser hermenêutico para se circunscrever à escolha das significações mostradas, como que numa vitrina, no melhor modelo da sociedade de consumo. Os limites do território de sentido, suas respectivas fronteiras (Rui Cunha Martins), são estabelecidas, como diz Warat, pelo senso comum teórico como instrumentos de poder, instalados no cenário político, sob o manto falso da ‘ciência neutra’ do Direito.

Esta postura, contudo, não transparece. Fica escamoteada por meio de recursos retóricos, maquiados como metodológicos e epistemológicos do paradigma hegemônico. Isto porque o poder somente se desnuda para quem sabe que ele existe, mas ‘Eles não sabem o que fazem’, responde Zizek. O discurso da ciência jurídica encobre as fantasias da “Filosofia da Consciência” ao transferir a discussão dos fundamentos do discurso para o método hermenêutico a ser aplicado, tudo – diz Legendre – em nome da segurança jurídica, justiça e verdade, claro. O mimetismo e o ‘efeito deslumbre’ é perfeito para quem não se atém aos seus pressupostos. Resultado disso é que o mundo lógico das abstrações perfeitas prepondera sobre a realidade, transformada em discurso juridicamente dizível. Um enclausuramento na segurança lógica, prenhe de pré-conceitos, pré-noções, ficções e estereótipos, escamoteados em nome da segurança jurídica, por padrões de significação impostos. Enfim, os atores jurídicos, na sua maioria, são incapazes de conceber um caminho próprio. Precisam andar na garupa da motocicleta guiada pelos condutores da fala e/ou jurisprudência autorizada. Todavia, é justamente do conflito de sentido, do antagonismo de posições, que se torna fecundo o processo hermenêutico. Sem isso, objetiva-se a realidade, perdendo-se a referência do mundo da vida.

As possibilidades hermenêuticas dependem de um deslocamento a ser efetuado no campo da linguagem, no que resta, suplantando-se as velhas maneiras de significar desde dentro da jaula do senso comum teórico. É preciso assumir a autonomia do ator jurídico no processo de atribuição de sentido, enfim, enunciar. Fundamental para os fins desta abordagem, é que há um rompimento com o essencialismo, trazendo-se a linguagem para o centro da compreensão. Ganha importância, nesse contexto, novamente, a viragem lingüística, segundo a qual a linguagem deixa de ser vista como mero instrumento de transmissão do real para ser seu co-constituinte. Abre-se caminho para a superação do essencialismo. A realidade só existe quando vertida em linguagem. A linguagem passa a ser condição de possibilidade do conhecimento e o sentido deixa de ser uma descoberta da realidade, mas passa a ser construído, operando, assim, no mundo da vida lingüística. Conseqüência disso é que se não pode atribuir significado sem se recorrer às práticas sociais. Falar do mundo é falar de linguagem que nasce indissociável com o ser-aí interpretante. A relação não é mais sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. O Direito, portanto, constitui-se em significantes, sem metalinguagem. E o conhecimento jurídico, por sua vez, só se realiza neste registro, eis que o Direito como objeto construído é forjado em face de significantes. Streck, após abordar as contribuições de Heidegger e Gadamer, arremata: “Conseqüentemente, o intérprete do Direito não contempla o objeto (o Direito, os textos jurídicos, o fenômeno social, etc.), para, assim, (re)construí-lo. É ilusão pensar – e aqui parafraseio Heidegger quando fala da obra de arte – que é a nossa descrição, enquanto atividade subjetiva, que faz figurar as coisas, para depois projetá-las. A partir do linguistic turn, o intérprete é alguém já inserido – desde sempre – na linguagem, da qual o objeto inexoravelmente faz parte.” Assim, se o mundo é linguagem, o Direito é linguagem e se esta é repleta de vagueza e ambiguidade, impossível a construção de discursos unívocos, mas cheios de manhas, chicanas e ainda atravessados pelo inconsciente, que escapa à consciência plena do sujeito da Modernidade. A linguagem deixa de ser vista, então, como instrumento de mediação entre o essencial dado e a realidade, passando a ser indissociável do próprio processo de compreensão. O ator jurídico faz parte do mundo tanto quanto o Direito, e, esse mundo se concebe pela linguagem. A realidade do Direito, portanto, é co-criada e não descrita como objeto.

Um colega juiz, de boa-fé, disse-me que não adianta remar contra a maré. É preciso diminuir os custos do processo: Alexandre, se o STF ou o STJ já decidiu, para que dar falsas esperanças para o jurisdicionado? A resignação deste meu colega me tocou fundo. O que poderia dizer? Ele é feliz ao julgar conforme dizem para julgar. Se acha e, como muitos, que está contribuindo para construção de um “Judiciário Eficiente”. Esta “Hermenêutica do Conforto”, pois, acontece neste universo descolado, longe de qualquer intersubjetividade, mas somente de aderência consumista aos ‘julgados da moda’. Até quando viverão felizes para sempre?

Talvez uma das formas de resistência seja fazer com que haja enunciação ao invés de amontoados de enunciados, nas quais o ator jurídico possa se fazer ver, rejeitando os avanços da “decisão fácil” e “eficiente”, em nome de um resto de Democracia que precisa, enfim, resistir. Seria pedir muito? A resposta está aberta. Democraticamente.


Alexandre Morais da Rosa

Doutor em Direito. Professor de Processo Penal na UFSC e do Mestrado e Doutorado da UNIVALI. Juiz de Direito (TJSC). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. email alexandremoraisdarosa@gmail.com, facebook aqui e twitter aqui                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        


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