A postura cartesiana na ciência tem se tornado cada dia mais frágil, não sendo diferente na ciência jurídica. O modelo de justiça voltado unicamente aos interesses do sujeito vem sendo superado por uma visão sistêmica, que exige a análise do fato jurídico além da relação parte x parte, compreendendo que tanto os efeitos, como as possíveis causas dos variados litígios, judicializados ou não, se estendem para além dos indivíduos envolvidos diretamente na questão.
A importância que se tem dado às relações não aparentes que motivam, quase sempre, as desavenças, é uma superação do pensamento simplista de que a sentença resolve o conflito, quando, na verdade, apenas o processo, enquanto instrumento burocrático, tem um termo final com o pronunciamento judicial, o qual é ineficaz na solução ou transformação da questão nevrálgica que originou a demanda.
Edgar Morin sustenta que “quando um sistema é incapaz de tratar seus problemas vitais”, como acontece com o nosso sistema de justiça, “ou ele se degrada, se desintegra, ou se revela capaz de suscitar um metasistema apto a tratar de seus problemas: ele se metamorfoseia”.[1]
O divórcio da ideia dualista de certo e errado, justiça e injustiça, culpado e inocente está a caminho e passa pela compreensão de que a nova justiça é transpessoal, no sentido de que as relações litigiosas, judiciais ou extrajudiciais, transpassam os interesses individuais, se estendendo aos interesses relacionais da família, de grupos e da sociedade, em um movimento que nos remete à ideia de retorno a tribo, proposto por Maffesoli.
Nesse ponto não se deve confundir o retorno a tribo com a vida em guetos, os quais, para Bauman, querem “dizer impossibilidade de comunidade”. Para ele o gueto não possui sentimentos comunitários, mas, ao contrário, se apresenta como um laboratório de desintegração social, de atomização e de anomia.[2]
O conceito de transpessoal, trazido pela psicologia, propõe a superação do ego, do eu, por meio da vivência de diferentes estados de consciências, sendo uma teoria que busca a integração do cognitivo, emocional, sensorial e intuitivo, enquanto modelo de aprendizagem significativa.[3]
Aqui utilizamos a expressão transpessoal enquanto exercício de compreensão das motivações e efeitos dos conflitos sociais para além do indivíduo, a partir de um olhar que supere o racional e o individualismo, privilegiando o pensar e o sentir complexo e sistêmico.
Explica Vera Saldanha que o “ego rígido, que alimenta uma auto-imagem forte, por melhor que seja tornará o indivíduo robotizado, uma pessoa que se identifica com a ideia de si mesmo e não com a realidade dos seus sentimentos, experiências e ações”.[4]
Esse movimento já vem sendo realizado no judiciário e fora dele, por meio de práticas humanísticas e sistêmicas, tais como a Justiça Restaurativa[5] e as Constelações Sistêmicas[6], ambas ramificadas no pensamento sistêmico, numa abordagem transcendente que “gera sinergia, relações mais cooperativas e harmoniosas em direção à unidade”.[7]
A ficha que cai, aos poucos, é de que o judiciário não detém o monopólio sábio da transformação ou solução dos conflitos sociais, assim como o direito não possui essa capacidade. Pensar que por meio do direito penal ou do direito civil iremos compreender e pacificar as relações pessoais, interpessoais, comunitárias e sociais é ingenuidade.
O conflito é complexo e necessita ser observado por meio de uma transdisciplinaridade de saberes, que, por sua vez, exige uma reforma do conhecimento, em que o pensamento possa “religar os conhecimentos entre si, religar as partes ao todo, o todo às partes, e que possa conceber a relação do global com o local, do local com o global”.[8]
A transdisciplinaridade é uma “nova abordagem científica, cultural, espiritual e social. Como o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito àquilo que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. O seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento”.[9]
É por meio da transdisciplinaridade que se demarca um ideal de justiça apoiada no pensamento sistêmico e com olhar transpessoal para o conflito, transpondo a relação entre as partes processuais, com utilização de caminhos restaurativos, humanizadores e transformadores.
Esse modelo, que denomino de Justiça Atópica, “é um lugar sem lugar”,[10] que não se preocupa apenas com o processo, mas transcende numa busca verdadeira pela harmonização das relações, tanto quanto seja possível, através do empoderamento das partes e do coletivo, para a auto responsabilização e auto solução dos conflitos.
Isso exige, também, uma mudança de postura dos construtores do Direito (juízes, promotores, advogados, polícia), que precisam buscar uma formação que transpasse a lógica burocrática da legislação e leve em conta a complexidade humana e relacional.[11]
É imperioso a compreensão de que o conflito é sempre uma oportunidade de mudança, contudo ele precisa ser transformado, movimento que “vê o problema que se apresenta como uma oportunidade de abordar o contexto mais amplo, de explorar e compreender o sistema de relacionamentos e de padrões que geraram a crise”.[12]
Não se está dizendo que o direito deva ser flexibilizado, com a não observância das regras estabelecidas. O movimento de ”justiça”, não no sentido de justo, mas de um sistema de aplicação de regras, não pode estar visível apenas em um específico local - sentença. Deve permear as relações dos atores jurídicos, que precisam ter um olhar menos mecanicista e mais transpessoal para o conflito alheio e, principalmente se perceberem como humanos em constante conflito interno e externo, o que não os diferencia, quase sempre, dos litigantes. Também deve transitar pelas relações das partes entre si e deles com seus próximos, numa ampliação da visão relacional.
Portanto, uma ideia de justiça atópica pode ser compreendida por uma justiça que transita por todas as relações sociais e individuais, não se limitando ao judiciário. Contudo, quando ali se apresenta, não deve se limitar à sentença, na aplicação da lei abstrata ao caso concreto, movimento mecanicista e superficial. Deve, mais que isso, buscar realizar-se a partir das reais necessidades dos conflitantes.
Notas e Referências
[1] MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013, p. 37.
[2][2] BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 111.
[3] SALDANHA, Vera. Psicologia transpessoal. Ijuí: ed. Unijuí, 2008, p. 31.
[4] SALDANHA, Vera. Psicologia transpessoal. Ijuí: ed. Unijuí, 2008, p. 171.
[5] Ver OLDONI, Fabiano; OLDONI, Everaldo Luiz; SARUBBI, Márcia Lippmann. Justiça Restaurativa Sistêmica. Joinville: Manuscritos Editora, 2018.
[6] Ver OLDONI, Fabiano; SARUBBI, Márcia Lippmann; GIRARDI, Maria F. G. Direito Sistêmico. 2 ed., Joinville: Manuscritos Editora, 2018.
[7] SALDANHA, Vera. Psicologia transpessoal. Ijuí: ed. Unijuí, 2008, p. 147.
[8] MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013, p. 184.
[9] NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999, p. 46.
[10] NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999, p. 119.
[11] Sobre a utilização da Comunicação não-violenta nas sentenças judiciais, veja artigo meu em https://emporiododireito.com.br/leitura/a-construcao-da-decisao-judicial-a-partir-da-comunicacao-nao-violenta.
[12] LADERECH, John Paul. Transformação de conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2012, p. 45.
Imagem Ilustrativa do Post: DSC_5457.jpg // Foto de: Robert // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/rrachwal/26017459914/
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/