A CONSTRUÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL A PARTIR DA COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA

07/08/2019

Os cursos de direito ensinam a técnica da sentença judicial, as etapas de sua elaboração, o que deve constar no relatório, na fundamentação e no dispositivo.

Aprende-se quais as leis devem balizar a sentença, que ela deve estar na medida do que foi pedido, que não há hierarquia entre as provas, as quais o juiz irá valorar de acordo com seu entendimento, a partir do princípio da livre apreciação da prova legalmente produzida.

Nos concursos necessários para o ingresso nas carreiras da judicatura, ao candidato novamente é exigido o conhecimento da técnica jurídica e dos dispositivos legais para a elaboração da sentença.

Já no exercício da função jurisdicional, passa a elaborar decisões com um olhar muito voltado ao tecnicismo, deixando de observar-se enquanto humano com desejos e necessidades naturais de qualquer humano e o quanto isso pode interferir na decisão a ser proferida.

A CNV foi proposta por Marshall Rosenberg, a partir do livro Comunicação Não-Violenta. Segundo o autor, a CNV se baseia “em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a capacidade de continuarmos humanos, mesmo em condições adversas”.[1]

Para ele, a CNV

nos ajuda a reformular a maneira pela qual nos expressamos e ouvimos os outros. Nossas palavras, em vez de serem reações repetitivas e automáticas, tornam-se respostas conscientes, firmemente baseadas na consciência do que estamos percebendo, sentindo e desejando.[2]

Em suma, a CNV “nos ensina a observarmos cuidadosamente (e sermos capazes de identificar) os comportamentos e as condições que estão nos afetando. Aprendemos a identificar e a articular claramente o que de fato desejamos em determinada situação. A forma é simples, mas profundamente transformadora”.[3]

Ela está alicerçada em quatro componentes: OBSERVAÇÃO, SENTIMENTO, NECESSIDADE e PEDIDO.

Explica Rosenberg que

primeiramente, observamos o que está de fato acontecendo numa situação: o que estamos vendo os outros dizerem ou fazerem que é enriquecedor ou não para nossa vida? O truque é ser capaz de articular essa observação sem fazer nenhum julgamento ou avaliação - mas simplesmente dizer o que nos agrada ou não naquilo que as pessoas estão fazendo.[4]

É o movimento de observar sem julgar.

Na sequência, devemos identificar “como nos sentimos ao observar aquela ação: magoados, assustados, alegres, divertidos, irritados etc.”[5]

O(s) sentimento(s) lhe geram, naturalmente, uma necessidade, a qual precisa ser compreendida. Por exemplo, a mágoa pode gerar um desejo de vingança, o medo uma necessidade de fuga, a tristeza o desejo de chorar ou de reparar a dor do outro, ou até mesmo um simples pedido de desculpas. Segundo Rosenberg, as “necessidades estão ligadas aos sentimentos que identificamos aí”.[6]

O último componente é o pedido. Muitas vezes a raiva, que desencadeou uma necessidade de vingança, pode ser expressada a partir de um pedido: O que você fez me causou muita raiva e um desejo de me vingar, por isso lhe peço que não faça mais isso.

Veja que este pedido é uma expressão verdadeira do que o sujeito sente, necessita e quer. Se estas etapas forem internalizadas e praticadas, muitos atos de violências são evitados, pois a maioria das agressões, que se iniciam pela forma verbal, só ocorrem por que não há uma comunicação clara entre os interlocutores. Por não conseguir expressar ao outro claramente o que desejo, acabo, quase sempre, o ameaçando, o que gera uma crise na comunicação e, muitas vezes, o conflito.

Caso no exemplo acima eu tivesse elaborado o pedido da forma como tradicionalmente fizemos - se você fizer isso novamente eu te mato, ou eu te bato -  haveria uma ameaça, um enfrentamento a motivar o outro a repetir a agressão, com fins que podemos imaginar qual seria.

A CNV pode ser utilizada para me observar na comunicação com o outro, mas também observar o outro quando se comunica comigo, ocasião em que eu observo o fato, verifico qual o sentimento isso gerou nele (para isso preciso pedir a ele para se observe), qual a sua necessidade (também em forma de pergunta, para fazer com que ele expresse a sua necessidade) e, por fim, o que ele deseja de mim (fazendo com que ele elabore o pedido de forma clara e objetiva).[7]

Convenhamos que não é algo fácil de ser feito. Precisa de muita prática, equilíbrio, autoconhecimento e hábito, pois naturalmente voltamos a nos comunicar de forma violenta após algumas tentativas de se praticar a CNV.

Pois bem. Compreendido superficialmente o que seria a CNV, o que não nos isenta de estudá-la mais detalhadamente, vamos procurar incorporá-la à sentença judicial.

Quando o juiz recebe uma inicial, seja na área cível ou criminal, após elaborar sua leitura, é natural tenha uma impressão dos fatos apresentados, os quais, se forem graves, podem já lhe chamar uma atenção para sua veracidade. Imagine-se uma denúncia de estupro, um homicídio, ou uma ação de divórcio com guarda do filho, onde se relata agressões ou alienação parental por parte de um dos pais.

Por mais que não admitamos, é natural que um juiz, já na leitura da petição inicial, estabeleça seu convencimento, mesmo que provisório. Muitas vezes esse convencimento não será afastado com a contraprova da parte contrária. Há, bem sabemos, um pré-julgamento no íntimo do julgador, que só será expressado ao final, após o devido processo legal, o qual, muitas vezes, não servirá para mudar o convencimento firmado no início do processo.

E isso só acontece com ele? Logicamente que não. Acontece com qualquer um de nós. Basta observar nossos julgamentos diários sobre fatos que nos chegam de forma unilateral. Somos seres que pré-julgamos com a maior naturalidade e com a mais pura certeza de estar fazendo a coisa certa.

O ideal seria que todas as comunicações fossem alinhadas a partir da CNV, até mesmo a decisão judicial, que não deixa de ser uma comunicação, por meio da qual o judiciário se expressa às partes e à sociedade sobre o fato litigioso.

Então, já pensou como seria uma decisão formatada a partir da CNV?

Ao receber a inicial ou tomar conhecimento dos fatos, o magistrado deveria observar todo o ocorrido que lhe foi trazido, sem exercer qualquer tipo de pré-julgamento em seu íntimo.

Após conhecer os fatos, mesmo que unilateralmente apresentados, o magistrado deve observar quais sentimentos lhe geram. É possível que o fato seja semelhante a algum por ele já vivenciado, que ele despreze aquele tipo de conduta, ou que considere inexplicável o ser humano agir daquela forma, enfim, há uma infinidade de razões que pode fazer com que o fato observado promova sentimentos no juiz.

Conhecido esse sentimento, deve o juiz buscar identificar qual seria a necessidade que lhe surge. A desaprovação de um estupro, pode fazer emergir sentimentos de raiva e lhe sugerir uma necessidade de vingança. A partir desta constatação, estaria ele apto a sentenciar o caso com a imparcialidade que a função exige? Seria ele um juiz que iria decidir com base nos fatos concretos ou já estaria com uma tendência a dar determinada decisão, para satisfazer uma necessidade pessoal?

Uma ação de guarda, onde a mãe apresenta acusações graves contra o genitor. Imagine-se o juiz já tendo vivenciado, em sua relação conjugal, uma situação semelhante, onde a mãe de seu filho tivesse feito acusações parecidas, ou até mesmo com algum familiar, em que, por exemplo, tivesse acompanhado a disputa da guarda do neto, entre sua filha e o pai da criança.

Quais os sentimentos que esses fatos lhe trariam? Quais as necessidades que isso lhe geraria? Estaria em condições de julgar este processo sem que estes sentimentos e necessidades o influenciassem?

Veja que não estamos a dizer que o juiz decidiria contra uma das partes, de forma leviana, apenas por que se identificou com a parte contrária. Estamos a afirmar que ele poderá agir assim inconscientemente, pois por desconhecer os sentimentos que o fato lhe gerou, sua decisão, muito provavelmente, seria no sentido de satisfazer as necessidades vindas deles.

Ao se deparar com duas provas, iria ter que valorar uma mais do que a outra e, neste momento, muito provável que aceite a prova que lhe autorize a decidir no sentido a satisfazer suas necessidades enquanto humano, surgidas a partir dos sentimentos gerados pelo fato analisado.

O juiz que consiga observar o fato, sem pré-julgar, perceber quais sentimentos esse fato lhe causa e quais as necessidades que disso advém, está mais consciente para decidir com base no que lhe foi apresentado e não no que ele deseja.

Claro que se o juiz tiver que conceder ou negar uma antecipação de tutela ou uma prisão cautelar, irá se pronunciar a partir das provas que lhe são apresentadas de início, contudo não poderá fechar questão sobre os fatos, em um pré-julgamento.

A observação dos fatos, nesta situação, é possível sem que para isso o juiz, em seu íntimo, se convença sobre a procedência ou improcedência do pedido. Sabemos que isso é muito difícil, que há um limite muito tênue entre o decidir sem pré-julgar, mas é algo a ser buscado pelo magistrado, cuja função exige, além do domínio da técnica, o domínio das suas emoções e necessidades, pois “um tipo de comunicação alienante da vida é o uso de julgamentos moralizadores que subentendem uma natureza errada ou maligna nas pessoas que não agem em consonância com nossos valores”.[8]

Em síntese, o exercício da CNV é um hábito que exige o autoconhecimento, um “olhar amorosamente para dentro de si, com essa consciência de incompletude”, o que nos tornará “mais lúcidos com o que em nós encontramos ou reencontramos, e nos tornar mais humanos” para compreender o mundo do outro.[9]

Essa reflexão não pode ser vista como uma crítica ao julgamento feito pelo juiz. O ato de julgar é o exercício de uma função jurisdicional dentro do ordenamento jurídico, perfeitamente legal e esperado pelos que buscam o litígio.

O que se pontua é a qualidade emocional do juiz ao julgar. Está conseguindo separar o que é das partes e o que é seu? As decisões proferidas estão a refletir realmente as provas dos autos ou o que o juiz deseja que seja? Até que ponto seus sentimentos e necessidades estão influenciando a tomada de suas decisões?

Esses pontos precisam ser refletidos. Ninguém está a dizer que é fácil se comunicar a partir da CNV, que dirá fazer uma sentença.

Porém impossível também não é e para isso necessário que o ser-juiz compreenda a importância de fazer o caminho do autoconhecimento, oportunidade que passará a perceber os sentimentos e as necessidades gerados pelos fatos que lhe chegam para julgar, pois a aplicação mais decisiva da CNV, “talvez seja na maneira que tratamos a nós mesmos”.[10]

 

 

Notas e Referências

[1] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 21.

[2] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 21-22.

[3] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 22.

[4] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 25.

[5] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 25.

[6] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 25.

[7] “O outro aspecto dessa forma de comunicação consiste em receber aquelas mesmas quatro informações dos outros. Nós nos ligamos a eles primeiramente percebendo o que estão observando e sentindo e do que estão precisando; e depois descobrindo o que poderia enriquecer suas vidas ao receberem a quarta informação, o pedido” (ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 26).

[8] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 37.

[9] OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi; OLDONI, Everaldo Luiz. Justiça Restaurativa Sistêmica. Joinville: Manuscritos Editora. 2018. p. 48.

[10] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 179.

 

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