Por Marta de Oliveira Torres – 19/04/2016
Primeira pergunta: um voto proferido por um Deputado Federal, que é um servidor público (agente político), deve conter os elementos do ato administrativo? - Lembrando que estes estão previstos no art. 2º da Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular – LAP), que determina serem nulos os atos nos casos de a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade.
Segunda pergunta: ao ser manifestada uma vontade real, esta deve ter sua validade analisada em um “ato administrativo-jurídico-político”, ou não se aplica aos atos dos servidores públicos do Legislativo a teoria da vinculação aos motivos determinantes?
Terceira pergunta: um "ato político" deve ser considerado "ato jurídico" ou um "ato-fato jurídico", ou seja: a validade da vontade humana é relevante?
Inicialmente, sobre a teoria da vinculação aos motivos determinantes, esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello:
"De acordo com esta teoria, os motivos que determinaram a vontade do agente, isto é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato. Sendo assim, a invocação dos “motivos de fato” falso, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando, conforme já se disse, a lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato. Uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto essa obrigação de enunciá-los, o ato será válido se estes realmente ocorreram e o justificavam." (MELLO, 2009, p. 398).
Assim, mesmo quando não seja requisito do ato administrativo sua motivação, quando esta for publicizada, a análise de validade do ato administrativo perpassa pela verificação de sua compatibilidade com os requisitos legais, dentre estes, a congruência entre a vontade manifesta e o resultado do ato. Vejamos:
ADMINISTRATIVO. ATO ADMINISTRATIVO. VINCULAÇÃO AOS MOTIVOS DETERMINANTES. INCONGRUÊNCIA. ANÁLISE PELO JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. DANO MORAL. SÚMULA 7/STJ.
1. Os atos discricionários da Administração Pública estão sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo observar que os motivos embasadores dos atos administrativos vinculam a Administração, conferindo-lhes legitimidade e validade.
2. "Consoante a teoria dos motivos determinantes, o administrador vincula-se aos motivos elencados para a prática do ato administrativo. Nesse contexto, há vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele contido" (MS 15.290/DF, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, julgado em 26.10.2011, DJe 14.11.2011).
Embora os Deputados Federais não precisassem fundamentar seu voto na plenária da votação para o Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff ocorrido no dia 17 de abril de 2016, eles o fizeram. Numa votação que comportava somente o “sim” ou o “não”, todos os Deputados Federais (exceto os sete que se abstiveram) revelaram o motivo de seu voto. Mesmo que não conste no relatório do então Presidente da Câmara dos Deputados, o fato é que foi televisionado e visto simultaneamente em todo o mundo. Maior publicidade ao ato público de votação não poderia haver.
Voltemos à primeira pergunta. Não há previsão constitucional ou legal, ainda que exemplificativa, que diferencie o ato administrativo estrito do ato político. Há inclusive várias teorias criadas na época da Ditadura Militar no Brasil, fazendo inúmeras classificações para criar privilégios (além dos já previstos constitucionalmente) aos “agentes políticos”, porém todos os agentes políticos, seja os investidos em um cargo público decorrente de escolha por voto popular, ou por concurso público, ou ainda aqueles que ocupam uma função pública decorrente das tradicionais e constitucionais indicações políticas, todos devem respeito à supremacia do interesse público.
Mas o que é interesse público? É fácil responder, só procurar nos primeiros artigos da Constituição Federal. Somente para lembrar os que foram escancaradamente violados, temos: a soberania popular (art. 1º, I), os valores sociais do trabalho (art. 1º, II), a vedação ao preconceito e qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV), a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II), o combate à tortura ou tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), a função social da propriedade (art. 5º, XXIII ), a valorização da pequena propriedade rural (art. 5º, XXVI). Vamos ficar pelos primeiros em ordem de inscrição na Constituição, porque senão cansaria enumerar todos os artigos violados. Talvez analisando voto a voto para identificar todos com mais clareza.
Desta forma, utilizando a "teoria dos motivos determinantes" do ato administrativo, os votos que não foram fundamentados em razões previstas na Constituição Federal devem ser anulados, afinal não foi positivada a defesa do interesse da própria família em detrimento dos interesses do povo brasileiro, dentre estes, a soberania do voto popular. O ato de um agente político é um ato administrativo e, como tal, deve ter preenchido todos os requisitos legais, dentre eles o de atender ao interesse público, o que restou nítido inexistir na motivação declarada pela maioria dos Deputados a favor do impeachment.
Uns dirão que não cabe revisão jurídica dos atos dos membros do Legislativo, porque seriam considerados “atos políticos” e não “atos administrativos ‘strictu senso’”. Ainda assim, se pergunta: seriam ao menos considerados atos jurídicos, e, como tais, caberia ao Supremo Tribunal Federal analisar a coerência com a Constituição Federal?
Seguindo a teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda, o voto de cada um dos Deputados Federais, por ter entrado no mundo jurídico, é um fato jurídico, independente de sua licitude. De acordo com sua classificação, os atos que decorrem de uma ação humana ou são tidos como atos jurídicos, quando o fato decorrer de uma vontade, ou atos-fatos, quando a vontade não estiver presente.
“Se esvaziamos os atos humanos de vontade (= se dela abstraímos = se a pomos entre parênteses), se não a levamos em conta para a juridicização, o actus é um factum, e como tal é que entra no mundo jurídico. É de tratar-se, então, como aqueles fatos que, de ordinário, ou por sua natureza, nada têm com a vontade do homem (MIRANDA, 1999, p. 422).
Assim, conclui-se que, como a vontade humana é inerente ao voto, o voto de um membro do Congresso Nacional é um ato jurídico. Em qualquer ato jurídico, a vontade deve estar em sintonia com a Constituição Federal, sob pena de não atender ao requisito da validade. Pode existir e até produzir efeitos, mas é ilícito, contrário ao Direito. Há regras do jogo que precisam ser jogadas, até porque qual seria a legitimidade de um ato praticado por um servidor público, agente político ou não, que não tenha como fundamento de validade o interesse público?
Resta saber se os representantes do legislativo têm carta branca para fazer o que quiserem sob o argumento de ser um ato político. É como se estivessem eternamente em um poder constituinte originário. O mandato seria uma procuração com poderes especiais ilimitados?
Continuamos criando teorias jurídicas para negar a realidade. Contra fatos, só há argumentos. Afinal, não é porque não consta do relatório as declarações prestadas pelos parlamentares que estas não existiram e todos viram e ouviram a fundamentação dos votos dos deputados. E se o voto de um deputado não é um ato que possa ser analisado juridicamente porque é um ato político, não vislumbramos qualquer serventia a ser dada aos "freios e contrapesos" inerentes à separação de poderes, ensinados nos livros de Direito Constitucional.
A fisionomia de indiferença de alguns Deputados diante daquele circo armado lembrou o cinismo brilhante do ator e diretor José Mojica Marins ao interpretar Zé do Caixão em "Encarnação do Demônio". Seus filmes foram proibidos na época da ditadura militar no Brasil, possivelmente porque revela a naturalidade com que alguns homens torturam e matam por prazer. Os que o fizeram "em nome da lei", e, pior, "lei de Deus" na época da ditadura, acabaram sendo louvados em um voto que teve até fogo de artifício para comemorar. É para ter medo de viver nesse país se nada for feito contra esse posicionamento público de um servidor público cujo salário é pago com dinheiro público. A realidade é muito pior que a ficção. A propósito, o personagem de Zé do Caixão mostra como era uma sessão de tortura "a la ditadura brasileira", para quem tiver curiosidade e quiser entender a gravidade de ter um ícone tenebroso da ditadura militar sendo reverenciado por políticos que se dizem representantes do povo. "Nem os mortos, nem a própria loucura me impedirão de gerar meu filho", assim concluiu Zé do Caixão naquele filme – possivelmente a mesma fala do torturador ao se ver sendo louvado no voto de um dos mais sórdidos e macabros membros do Congresso Nacional.
Está na hora de começarmos as petições jurídicas contra essa cena grotesca e brincadeira de mau gosto comandada por um sádico como presidente. Embora eu não acredite que o Direito tenha alguma valia para defesa de direitos humanos nesse país, vale sempre à pena argumentar, só pra não deixar passar sem luta.
Notas e Referências:
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 57, de 18.12.2008. São Paulo: Malheiros, 2009.
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, Tomo II, 1999.
. Marta de Oliveira Torres é Defensora Pública do Estado da Bahia, atriz no Teatro Fórum Rui Barbosa, fotógrafa, poetiza, mestra em Relações Sociais e Novos Direitos pela UFBA. . .
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