Por Soraia da Rosa Mendes - 11/07/2016
Distanciando-nos dos suplícios e das fogueiras medievais, os ideais iluministas que consubstanciaram a própria noção de Estado de Direito pretenderam conferir, para o final do século XVIII e início do século XIX , à persecução, assim como à execução penal, um novo modus operandi que, por estar vinculado a direitos e garantias fundamentais, tornar-se-ia uma conquista civilizatória frente ao arbítrio do Estado.
Contudo, se a afirmação da existência da democracia, enquanto regime de governo, na maior parte dos países ocidentais é, no mínimo formalmente, inquestionável, a constatação da compatibilização entre os postulados fundamentais que orientam o ordenamento jurídico e a práxis institucional ainda pende de muitas interrogações. E, especialmente, o campo da execução, é um claro demonstrativo deste descompasso substancial.
Em nosso tempo, talvez nunca tenha sido tão pertinente parafrasear a máxima de Figueiredo Dias[1] e dizer: diga-me como tratas a pessoa encarcerada que te direi a execução penal que tens e o Estado que a instituiu.
Infelizmente, nesta segunda década do século XXI, o que se verifica é que ainda há muito o que conquistar-se para que a afirmação do/a preso/a como sujeito da execução, e não como um objeto de uma inquisição oficial, torne-se real. O que vemos é que, disfarçadamente, vige entre nós uma ideologia de cariz totalitário, legitimada pelo desejo de que somente com a imposição do castigo possa “vingar-se” a sociedade e restabelecer-se a “ordem”.
Vivemos, pois, a despeito do marco da Carta de 1988, mais um momento pouco iluminado de nossa história...
Em meio à escuridão, na qual a jurisprudência parece sucumbir ao sensacionalismo e ao desejo de vingar, envergonhando-se de defender posições favoráveis a uma execução penal com fulcro na dignidade da pessoa humana, uma pequena luz surgiu no Supremo Tribunal Federal com a edição da súmula vinculante n. 56. Em seus termos: “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nesta hipótese, os parâmetros fixados no Recurso Extraordinário (RE) 641320”.
A decisão não mereceu mais comemorações, posto ter chegado com certo atraso e com texto diverso do proposto.
Afinal, cinco anos se passaram desde a proposta de SV n. 57, articulada pela Pastoral Carcerária Nacional e a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF), e apresentada pelo Defensor Público-Geral da União, cuja redação original proclamava que “O princípio constitucional da individualização da pena impõe seja esta cumprida pelo condenado, em regime mais benéfico, aberto ou domiciliar, inexistindo vaga em estabelecimento adequado, no local da execução.”
A modificação no texto original teve por motivador o pedido de vista do Ministro Luís Roberto Barroso, cujo voto, seguido pela maioria dos ministros e ministras, vinculou a proibição de submissão do/a condenado/a a regime mais gravoso, em razão de falta de vagas, ao provimento parcial dado ao RE 641.320 que, nos termos do voto do relator, ministro Gilmar Mendes, fixou parâmetros a serem observados nestas circunstâncias.
Nos termos do RE, com repercussão geral, seriam basicamente três os critérios a serem observados[2], merecendo especial atenção o terceiro e último segundo o qual: “c) havendo déficit de vagas, deverá determinar-se: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado.”
É bem verdade que, como alerta a Pastoral Carcerária, a decisão do STF, além de vir tarde, é tímida ante o potencial desencarcerador de outros tantos temas submetidos à Corte, como a ADPF n. 347, cujas medidas cautelares foram apenas parcialmente concedidas; o RE n. 635.659, capaz de apresentar algum limite à “guerra às drogas” (responsável pelo encarceramento de 28% da população prisional total e de 63% da feminina); o RE n. 580.252, que trata do dever do Estado de indenizar a pessoa presa em condições degradantes; e, digo eu, à recente decisão lançada nos autos do Habeas Corpus (HC) 118.533, que desconsiderou a hediondez para os casos de tráfico privilegiado. Assim como também merece atenção a divergência aberta pelo Ministro Marco Aurélio que, ao votar pela manutenção do texto original da PSV n. 57[3], entendeu que o texto da súmula vinculante não deveria reportar-se a uma lei ou a uma decisão específica, mas estabelecer uma jurisprudência do tribunal, sem incluir dados possíveis de burocratizar a jurisdição.
Sem embargo, tomando a dignidade da pessoa humana como impositiva do dever jurídico constitucional de reduzir o sofrimento e a vulnerabilidade das pessoas encarceradas, a decisão, ainda que não “como” e “quando” idealizada, vai em certo sentido no rumo de uma interpretação progressiva que, tal como dizem Zaffaroni e Nilo Batista, com as devidas cautelas, de um lado almeja evitar que sejam acentuadas as características deteriorantes da prisionalização e, de outro, oferece possibilidades para que os/as presos/as tenham diminuídos os riscos inerentes de ser o polo mais fraco na execução ante à dor infligida pelo Estado[4].
Enquanto a pena privativa de liberdade permanecer sendo, como um símbolo de nossas imperfeições, o mecanismo adotado para lidar com o fenômeno criminal de forma seletiva e estigmatizante, o que tem restado a nós defensores e defensoras de sua radical diminuição (ou mesmo extinção) é buscar meios para minorar seus efeitos, em uma tentativa de redução de danos. O que me leva a pensar que, em um país como o nosso, onde 622.202 pessoas encontram-se presas; onde o déficit no sistema penitenciário beira as duzentos e quarenta mil vagas; e onde o número de pessoas encarceradas cresceu em 80% nos últimos dez anos; a súmula vinculante seja um aceno ante a barbárie em curso.
Por outro lado, quem sabe a pequena luz vinda desta decisão, que, ao fim e ao cabo, só aparentemente aponta para a responsabilidade do Executivo quanto à inexistência de vagas, também acenda nos ministros e ministras o desejo de revisar a própria jurisprudência e o entendimento consolidado na Súmula Vinculante n. 26[5], responsável por manter em uma morosa “fila de espera” muitos homens e mulheres em regime mais gravoso, em que pese presentes elementos objetivos e subjetivos favoráveis para a progressão e outros direitos a que fariam jus se observados os estritos termos da lei[6].
Quem sabe seja repensada a “jurisprudencial” possibilidade de exigência de realização de exame criminológico, fundado, no mais das vezes, na tão só aferição do “periculosômetro” que muitos juízes e juízas imaginam possuir...
Quem sabe a luz que se acenda possa ser mais do que uma simples vela... Quem sabe...
[1] "Diz-me como tratas o argüido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu" in: FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Direito Processual Penal. Coimbra: Ed. Almedina, 1974, p. 428.
[2] Nos termos do decidido no RE 641320, com repercussão geral, em 11 de maio deste ano o Plenário seguiu o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, e fixou a tese nos seguintes termos: a) a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso; b) os juízes da execução penal poderão avaliar os estabelecimentos destinados aos regimes semiaberto e aberto, para qualificação como adequados a tais regimes. São aceitáveis estabelecimentos que não se qualifiquem como “colônia agrícola, industrial” (regime semiaberto) ou “casa de albergado ou estabelecimento adequado” (regime aberto) (art. 33, parágrafo 1º, alíneas “b” e “c”); c) havendo déficit de vagas, deverá determinar-se: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado.
[3] Eis o texto original da PSV n. 57: “O princípio constitucional da individualização da pena impõe seja esta cumprida pelo condenado, em regime mais benéfico, aberto ou domiciliar, inexistindo vaga em estabelecimento adequado, no local da execução”.
[4] Conforme Ferrajoli, baseado em um ensaio de Salvatore Natoli (Dal potere caritatevole al Welfare State), são fecundas para a análise do direito as noções de dor sofrida e dor infligida. Segundo Ferrajoli podemos afirmar que todos os direitos fundamentais são configuráveis como direitos à exclusão ou a redução da dor. E que: “Precisamente, los derechos de libertad, junto con el derecho a la vida y a la integridad personal – consistentes todos en expectativas negativas o en inmunidades de lesión – son interpretables como derechos dirigidos a prevenir el dolor infligido, o sea, el mal provocado por los hombres, a través del derecho penal y la regulación y minimización de la reacción punitiva al delicto.”. Ver: FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. Madrid: Trotta, 2010. Pp. 202-207.
[5] A partir das modificações determinadas pela Lei 10.792/2003, a realização do exame criminológico, apesar de não mais considerada obrigatória, permanece viável, nos casos em que justificada sua relevância para melhor elucidação das condições subjetivas do apenado na concessão do benefício. O Supremo Tribunal Federal, por jurisprudência consolidada, admite que pode ser exigido fundamentadamente o exame criminológico pelo juiz para avaliar pedido de livramento condicional ou progressão de regime nestes casos. E, muito especialmente, destacando os crimes hediondos, editou súmula vinculante (n. 26), Segundo a qual “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.”
[6] Bom que se ressalte que em decisão da Primeira Turma do Supremo, nos autos do HC 115212, de relatoria do Min. MARCO AURÉLIO (por sinal o único voto divergente à edição da SV n. 26), julgado em 10/11/2015 foi decidido que, in verbis: PENA – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – EXAME CRIMINOLÓGICO – INEXIGIBILIDADE. A previsão de exigência do exame criminológico, para a análise relativa aos benefícios a que tem jus o custodiado, foi excluída do artigo 112 da Lei de Execuções Penais mediante a Lei nº 10.792/2003. (HC 115212, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 10/11/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-237 DIVULG 24-11-2015 PUBLIC 25-11-2015).
. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.. . .
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