A sociedade anônima: uma das opções societárias para albergar o modelo de negócio das startups

12/03/2020

O texto da semana anterior, publicado na Coluna de Direito Empresarial e Análise Econômica do Empório do Direito, tratou das perspectivas dos empreendedores em startups quando da escolha de um tipo societário que mais se adapte às suas práticas, tendo-se dado ênfase à sociedade limitada.

O foco deste texto, sem repetir aquelas perspectivas, recai sobre o modelo da sociedade anônima de capital fechado, sob o enfoque das principais características e dos motivos pelos quais é o que mais revela eficiência e consonância com a filosofia do modelo de negócio startup.

As sociedades estatutárias ou institucionais nasceram da necessidade de dar resposta às mobilizações de capital de grande vulto, que objetivavam financiar, naquela época, expedições náuticas, como é o exemplo do fato histórico vinculado à instituição da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, em 1602. Contrapõe-se, portanto, aquela ideia de uma sociedade que teve origem em um negócio plurilateral entre partes determinadas, na esteira do que dispõe o artigo 981 do Código Civil, a exemplo das sociedades limitadas[i].

As sociedades anônimas, disciplinadas pela Lei 6.404/76 (LSA), podem ser abertas ou fechadas, conforme dispõe o artigo 4º da LSA. As companhias abertas têm os seus valores mobiliários registrados no mercado de valores mobiliários e, portanto, negociáveis no respectivo mercado. A negociação depende do prévio registro, sem o qual não há regularidade legal (LSA, art. 4. § 1º e 2º), sendo que, no Brasil, a responsabilidade, inclusive para a classificação das companhias abertas em categorias, compete à CVM (Comissão de Valores Mobiliários).

A CVM é uma entidade autárquica, vinculada ao Ministério da Economia, e foi instituída pela Lei 6.385/76, com o objetivo de normatizar, fiscalizar e desenvolver o mercado de balcão. As características deste mercado e o mapa estratégico da CVM podem ser consultados em sua plataforma on line, que dispõe de muitos elementos e de um sistema que dá prioridade a ações encadeadas para garantir a integridade, estimular a eficiência e promover o desenvolvimento do mercado[ii].

Os tipos societários mais usuais para startups são as sociedades limitadas, as sociedades anônimas e as sociedades em conta de participação, situação esta corrente na advocacia socioempresarial.

A sociedade anônima será sempre empresária (mercantil, segundo o Código Comercial de 1850), sendo que a sua essência está no fato de que seus títulos são negociáveis independentemente da anuência dos demais sócios, sendo facultado o livre ingresso na sociedade[iii].

O capital social é dividido em ações e não em quotas, sendo que os acionistas respondem apenas até o preço de emissão das ações que foram subscritas ou adquiridas (LSA, art. 1º).

Em que pese a legislação especial (Lei 6.404/76), é o Código Civil (artigos 1.160 e 1.161) que trata do nome empresarial da sociedade anônima, que opera sob denominação designativa do objeto social, integrada pelas expressões "sociedade anônima" ou "companhia", por extenso ou abreviadamente. Pode constar da denominação o nome do fundador, acionista, ou pessoa que haja concorrido para o bom êxito da formação da empresa.

A constituição de uma companhia depende da subscrição de todas as ações em que o capital social é dividido, por pelo menos 2 (duas) pessoas (LSA, art. 80, I), ressalvado o caso da subsidiária integral, que admite a incorporação de todas as ações do capital social por uma única empresa (LSA, art. 252). 

O estatuto social dará norte às questões acionárias e operacionais da empresa, sendo que os artigos 83 e 84, ambos da LSA, revelam o que minimamente deverá constar no projeto e prospecto do respectivo estatuto, destacando-se o valor do capital social a ser subscrito, o modo de sua realização e a existência ou não de autorização para aumento futuro; a parte do capital a ser formada com bens, a discriminação desses bens e o valor a eles atribuídos pelos fundadores; o número, as espécies e classes de ações em que se dividirá o capital; o valor nominal das ações e o preço da emissão das ações, dentre outras situações transcritas na referida norma.

Os empreendedores da nova economia têm à disposição diversas formas de constituição para as suas startups. Não se pretende tratar de todas as possibilidades societárias para este segmento (startups), encampando-se, aqui, como principal foco, a S/A fechada, até porque o MEI (Microempreendedor Individual), a Empresa Individual, a EIRELI, a Sociedade Unipessoal e a Sociedade Limitada já foram objeto de abordagem, nesta mesma coluna do Empório do Direito, em 30/01/2020[iv] e 05/03/2020[v], respectivamente, oportunidade em que também se abordou a respeito dos critérios e faixas de faturamento para o enquadramento em Microempresa (ME) e Empresa de Pequeno Porte (EPP).  

Ao contrário das sociedades anônimas de capital aberto, as de capital fechado não submetem ou têm previamente registrados os seus valores mobiliários na CVM, pois seus títulos não são ofertados publicamente, em que pese circularem de forma circunscrita. Aproximam-se, portanto, nos aspectos vinculados à sua composição, das sociedades intuito persona, diante de um relacionamento mais estreito entre os sócios/acionistas.

Como dito em outras ocasiões, a forma mais indicada para a formalização depende das características de cada negócio, alinhadas aos objetivos da sociedade e à especificidade do produto ou serviço a ser ofertado. É importante levar em conta que algumas atividades são privativas de certos tipos societários, como, por exemplo, determinados serviços financeiros que requeiram, por força legal, a tipificação de Sociedade Anônima. Sendo assim, os instituidores de cada startup devem estar atentos quanto à escolha vinculativa por definição legal, considerando-se a estrutura de maior envergadura exigida, já nos seus aspectos fundacionais.

O conceito de startup pode parecer um tanto antagônico, pois as perspectivas sobre ela pressupõem a agilidade dos pequenos negócios e a escala dos grandes, ou seja, quer-se unir o que os dois tipos de negócios têm de melhor. Isto aponta para um conflito filosófico entre o que é a startup e o que ela quer ser, trazendo traços utópicos revelados no texto anterior, datado de 05/03/2020. É o próprio reflexo da evolução da gestão empresarial.

Afirmar que existe um tipo societário ideal para todas as startups não parece ser possível, porém é possível afirmar que existe um que melhor se adapta a mais fases do ciclo de vida delas. Para entender a afirmação, observe-se a figura a seguir, que mostra com bastante simplicidade as fases do ciclo de vida das startups, as curvas de investimentos, risco e vendas e os tipos de fontes de capital mais usuais em cada fase (caixa em azul).

Fonte: MaRS (2020) [vi].

Na observação da figura percebe-se que cada fase da vida da startup é, na maioria dos casos, marcada por um tipo de capital que a sustenta. No início, o capital próprio, da família, dos amigos e de alguns fundos de fomento públicos é o que predomina e a iniciativa é somente dos sócios. Logo que o negócio ganha alguma forma e a fase de arranque começa, assim como as vendas, normalmente outros capitais se apresentam, já que o risco, ainda elevado, começa a diminuir. Neste ponto de entrada de ‘investidores’ é que se mostra necessário o cuidado com o tipo societário (que já pode estar planejado). Qual é o papel esperado desse capital ou dos novos sócios? Somente financiar os investimentos? Ou ele é do tipo smart money, que auxilia na gestão? Se essas respostas já existem, certamente a startup tem um plano para a sua capitalização. E justamente esse pode ser o diferencial entre ganhar ou perder um investimento.

É demasiado importante o plano de governança, sem exageros, desde o início. O plano melhora bastante as chances de a empresa acertar o alvo. Mas acima de tudo demonstra para o investidor a preocupação com o planejamento e com a definição prévia do que se espera de cada sócio ou do capital. Isso demonstra mais profissionalismo e transparência, o que cria maior sensação de segurança para o investidor e até mesmo para os sócios fundadores, prevenindo desgastes futuros.

Para a empresa que pretende ser grande, a limitação de faturamento e do número de empregados do MEI obrigará a alteração do tipo societário no futuro. Além disso, o formato limita a captação formal de recursos, trazendo insegurança para o investidor, e sobrecarrega a responsabilidade do sócio. Desta forma, em que pese ser o meio mais rápido de formalização, não é aconselhado o respectivo tipo.

O tipo Empresa Individual (EI), apesar de não apresentar limite de faturamento e de empregados para a maioria das atividades, traz as mesmas desvantagens do MEI em função da confusão patrimonial entre empresa e empresário e de não admitir mais de um sócio.

Já a EIRELI mitiga a responsabilidade do sócio, mas ainda não permite a participação de outro sócio sem alteração do tipo societário (transformação), o que limita a captação de recursos ao mútuo simples, ainda que com alguns condicionantes contratuais, ficando o investidor sem acesso à garantia que poderia ser dada pelos bens do sócio. Igual raciocínio se aplica à sociedade limitada unipessoal, criada pela Lei 13.874/2019 (Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica), que alterou o artigo 1.052 do CC, passando a permitir que a sociedade limitada possa ser constituída por apenas 1 (uma) pessoa, com capital social inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País, ao contrário da EIRELI.

A Sociedade Simples (SS) nem mesmo se caracteriza como sociedade mercantil/empresária, já que está atrelada a sócios ‘industriais’, que, em vez de bens ou dinheiro, ingressam na sociedade com seu trabalho, o que dificulta a entrada de sócios investidores e confunde a sociedade com os sócios. Hipótese, portanto, descartada.

Já a sociedade LTDA está livre do problema da não admissão de novos sócios, permitindo, então, os mútuos simples e os conversíveis em quotas, dando mais opções ao investidor, além de manter a segregação entre o patrimônio da sociedade e dos sócios. Também permite o estabelecimento de acordos parassociais (a respeito de desempenho, de condições de saída da sociedade, de preferências na compra e venda de quotas, liquidação, valuation e de propriedade intelectual, assim como acordos do tipo vesting). Pode-se afirmar que é um bom tipo societário para startups, pelas amplas possibilidades, conforme foi destacado por ocasião do artigo anteriormente dedicado às sociedades limitadas. Entretanto, a necessidade de registro de seus acordos em órgãos governamentais e a necessária concordância desses órgãos com os termos dos acordos acarreta desvantagem frente ao tipo aqui contextualizado, que é ainda mais flexível. Outra desvantagem da LTDA também se apresenta no momento de captação de recursos, não podendo ela emitir títulos de dívida, como por exemplo, debêntures, mesmo que em circulação mais restrita (sem oferta pública), como é o caso das sociedades anônimas de capital fechado.

As sociedades anônimas, então, são a tipologia mais indicada às empresas da nova economia, em função da flexibilidade de instrumentos à disposição. Apesar de existir certo mito a respeito das S/A, que diz terem mais custos administrativos que os outros tipos societários (o que só é verdade para as S/A de capital aberto), ainda assim, cabe reiterar que a sociedade anônima de capital fechado é o mais adequado para o caso da maioria das startups, ressalvando-se que, em qualquer hipótese, a escolha se submete à prévia avaliação das estratégias, vinculadas aos produtos e serviços que serão colocados no mercado.

Além das vantagens apontadas para a tipologia LTDA, que também estão presentes na S/A, acrescentam-se mais algumas: a) facilitação da celebração, alteração e registro dos acordos parassociais, ficando as S/A desobrigadas de seu registro na Junta Comercial ou órgão equivalente, bastando arquivar na sede da sociedade; b) possibilidade de divisão das ações em classes distintas (ordinárias e preferenciais), o que pode resguardar o controle da sociedade mesmo com a entrada de novos acionistas, o que é mais complexo quando a sociedade é do tipo LTDA. Neste ponto em particular, em que pese a Instrução Normativa sob nº 38/17 do DREI (Departamento de Registro Empresarial e Integração), desde que o contrato social da sociedade limitada contemple expressamente a regência supletiva da LSA, permita a adoção de classes distintas para a formação de quotas, há, ainda, resistência nesta admissão, o que importa em dificuldades de interpretação e divergências jurisprudenciais, especialmente quanto à limitação de voto ao sócio quotista; c) maior variedade de meios de captação de recursos externos em função da flexibilidade garantida por lei e da possibilidade da emissão de títulos de dívida conversíveis (ou não) em ações (preferenciais ou ordinárias); d) mais segurança para o investidor, reduzindo-se a assimetria informacional, tanto em função dos níveis mais elevados de transparência, como em função da própria regulação deste tipo societário pelos órgãos de controle, como é o caso da CMV; e) mais opções para o investidor, que pode participar da sociedade por diversos meios e em até mais de um ao mesmo tempo (direta ou indiretamente); f) limitação de acesso a alguns fundos de investimento, cujos aportes são vedados para empresas com tipologia societária diversa da S/A.

Mas não basta apenas optar pela tipologia da S/A para, de fato, possuir as vantagens proporcionadas pelo modelo. É preciso que a startup lance mão das ferramentas disponíveis e use a governança a seu favor, priorizando os bem-sucedidos acordos entre os acionistas, o estatuto social e acordos de vesting (se for o caso), dentre outros, o que vai dar mais segurança ao investidor e à investida, trazendo transparência para o processo. Cabe especial destaque ao acordo de acionistas, que deve conter cláusulas sobre as condições de entrada e saída da sociedade, de preferências na compra e venda de ações, valuation, gestão de propriedade intelectual, acordos de vesting, condições para M&A, liquidação, venda de ativos, transparência, remuneração de sócios e administradores, tag e drag along e criação de conselhos consultivos, dentre outras normas capazes de dar transparência aos atos da sociedade e segurança para stock e stakeholders.

Por fim, não se aconselha que startups comecem ou tenham em suas fases iniciais o formato de S/A de capital aberto em função das dificuldades burocráticas e dos custos de transação elevados desde o início, o que vai tomar recursos e tempo demasiado dos acionistas e desfocar do principal objetivo que é o crescimento do negócio.

Neste contexto, bem desenvolvida a estrutura jurídica inicial da startup, fica mais factível tratar com investidores-anjo, fundos de investimentos, crowdfunding de investimentos e aceleradoras, além de propiciar, com maior clareza a opção de venda ou abertura de capital. De igual modo, haverá mais segurança jurídica em todas as pontas (pluralidade de lados), para formatação de outros instrumentos jurídicos muito comuns, destacando-se os contratos de mútuo conversível em ações, os contratos de participação em decorrência dos investimentos, as sociedades em conta de participação, eventualmente pertinentes, em algumas situações-hipóteses, os memorandos, as cartas laterais (side letters), dentre outras opções de incentivo e impulsionamento, considerando-se cada uma das fases do ciclo de vida das startups, explicitadas no corpo deste texto.

Depois de refletir sobre esses diversos termos e perspectivas, certamente chega-se à conclusão de que muito vale planejar a estrutura a ser adotada para a empresa. Contar com a ajuda de especialistas, nesse momento inicial, é fundamental para a escolha correta, já que todos os tipos societários possuem pontos positivos e negativos, vantagens e desvantagens, obrigações e direitos específicos, que devem ser levados em consideração no planejamento da forma societária da startup para que não tragam efeitos negativos no futuro.

 

Notas e Referências

[i] MAMEDE, Gladson. Direito Empresarial Brasileiro — Direito Societário, Sociedades Simples e Empresárias. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 259.

[ii] CVM. Plataforma on line. Disponível em < http://www.cvm.gov.br/menu/acesso_informacao/institucional/sobre/cvm.html>. Acesso em 10/03/2020.

Para entender o tamanho deste mercado, é importante descrever a abrangência do conceito de valores mobiliários, nos termos do disposto no artigo 2º da Lei 6.385/76, segundo o qual, são valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:   I - as ações, debêntures e bônus de subscrição;  II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II; III - os certificados de depósito de valores mobiliários;  IV - as cédulas de debêntures;  V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos; VI - as notas comerciais;  VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários; VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e  IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros

[iii] NEGRÃO, Ricardo. Curso de Direito Comercial e de Empresa. 15ª. ed São Paulo: Saraiva, 2019, p. 409-420. 

[iv] Plataforma Empório do Direito. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/leitura/a-empresa-individual-pessoa-natural-a-empresa-individual-de-responsabilidade-limitada-eireli-pessoa-juridica-e-a-sociedade-limitada-unipessoal-aspectos-fundamentais>. Acesso em 10/03/2020.

[v] Plataforma Empório do Direito. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/leitura/a-sociedade-limitada-uma-das-opcoes-societarias-para-albergar-o-modelo-de-negocio-das-startups>. Acesso em 10/03/2020.

[vi] MaRS. Stages of company development: Angel, seed and venture capital investors. Disponível em: <https://www.marsdd.com/mars-library/angel-investors-seed-or-venture-capital-investors-that-depends-on-your-stage-of-company-development/> . Acesso em: 10 jan. 2020.

 

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