A Síndrome Harvey Dent e o perigo do espetáculo midiático no Processo Penal    

09/05/2019

 

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Em tempo de monografia jurídica sobre Batman – O cavaleiro das trevas, um outro personagem, da mesma história, precisa também ser lembrado.

Na atualidade, não raras vezes as pessoas ingressam para um determinado cargo público sem vocação específica. O intuito do “concurseiro”, em alguns casos, é achar uma forma de estabilizar a vida, ganhar dinheiro e ter um bom padrão de vida. Alguns planejam ficar ricos através de um cargo público, mas o serviço público não é o meio adequado para alguém que busca ser um milionário! Quem vislumbra um padrão de vida “AAA” deveria se arriscar na iniciativa privada.

Mas vão perguntar, qual o objetivo de falar disso? É simples. Essa ideia produz no serviço público, em especial no Judiciário e Ministério Público, o que pode ser chamado de síndrome de Harvey Dent.

Mas quem é Harvey Dent? Harvey Dent[1] é o Promotor público, que se tornará o vilão Duas Caras, respeitado em Gotham City, inclusive pelo grande herói Batman, aquele da monografia.

Antes de sua transformação no vilão “Duas Caras”, Harvey Dent, visto pela população como um herói, era o Promotor na cidade de Gotham, proficiente em quase todos os assuntos relativos ao Direito Penal, conhecido também como o “cavaleiro branco”. Porém, para os membros da polícia, Harvey Dent tinha o apelido de Duas Caras, um Promotor muito rigoroso com os desvios policiais, conhecido por combater bandidos e expulsar policiais da corporação. Também por isso ficou com esse pseudônimo, após o acidente que o fez abandonar sua carreira.

O que se percebe hoje é uma comum falta de vocação de uma parcela dos Promotores e Juízes que confundem condenação com Justiça e Justiça com Vingança estatal ou pessoal. Há ainda, para os que pensam ser justo um Processo que tenha apenas objetivo condenatório, sem preocupar em proteger o réu, grave vício no discurso de eficiência no Processo Penal.

Nesse sentido, as palavras de Alexandre Morais da Rosa:

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho há muito denuncia a maneira pela qual o discurso da eficiência, inclusive Princípio Constitucional (CR, art. 37), para os incautos de plantão, embrenhou-se pelo processo penal em busca da sumarização dos procedimentos, da redução do direito de defesa, dos recursos, enfim, ao preço da democracia. A razão eficiente que busca a condenação “fast-food” implicou nos últimos anos na “McDonaldização” do Direito Processual Penal: sentenças que são prolatadas no estilo “peça pelo número”. A “standartização” da acusação, da instrução e da decisão. Tudo em nome de uma “McPena-Feliz”. Nada mais cínico e fácil de ser acolhido pelos atores jurídicos, de regra, “analfabetos funcionais”. (ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 1, ênfase acrescida).

O Processo Penal do espetáculo tem, cada vez mais, propiciado este ambiente no qual é mais importante superar garantias individuais em prol de uma suposta “resposta à sociedade”. Os tribunais dizem “estarem ouvindo a sociedade”, mas não ouvem o próprio acusado e se esquecem do verdadeiro propósito do Processo Penal: proteger o réu! Regimentos Internos são mais importantes que a própria Constituição, aqueles devem ser observados rigorosamente, já esta...

E mais! Como disse Juarez Tavares, “quando a política entra nos tribunais, a Justiça sai pela porta dos fundos”. Pode-se completar: quando se ouve a sociedade também.

Neste sentido, nem o Judiciário nem o Ministério Público devem se preocupar com o que a sociedade pensa, em sintonia com a opinião de Rômulo de Andrade Moreira. Ora, quem tem que ouvir a sociedade é o Legislativo e o Executivo. Os demais devem atuar com base na lei, na doutrina e na jurisprudência. Em tempo, aquele que deveria ser o fiscal da lei, muitas vezes se esquece disso e utiliza provas evidentemente ilícitas em busca de condenação[2]. Em outros casos, chama-se de parecer uma fala de 02 (duas) linhas em um caso complexo.

Enquanto Aury Lopes Jr, Gustavo Henrique Badaró e Geraldo Prado produzem muitas páginas naquilo que verdadeiramente é um parecer, já houve caso em que o parquet redigiu 02 (duas) linhas para contrapor uma peça de 04 (quatro) páginas! E, surpreendemente, o Judiciário manteve uma pessoa presa com base nessas poucas linhas...

Como diria Harvey Dent: “Ou se morre herói, ou se vive o suficente para ver a si mesmo tornar-se o vilão”.

A falta de vocação para determinado cargo público ou mesmo a falta de sensibilidade por parte destes atores é cruel para o sistema de justiça criminal. O dano é irreparável!

É perceptível para quem atua junto a estas instituições que, muitas vezes, funcionários públicos afirmam não haver prejuízo o fato de o réu ter que ficar preso só mais um dia aguardando um cumprimento de alvará, ou só mais uma semana porque um Desembargador está de férias, mesmo já tendo votado concedendo a ordem de Habeas Corpus.

A sensação é de que tais atores desconhecem a realidade do cárcere e imaginam que o indivíduo, que possui o status de inocente, está em um hotel de luxo, ou que devia ficar feliz por sair da cadeia, ou, ainda, que “bem feito, quanto mais tempo preso melhor!?”. Devem estar seguindo o senso comum teórico, como diz Lenio Streck.

Existem casos em que a acusação, em especial na primeira fase do Júri, pede a pronúncia ou requer a manutenção de prisão preventiva em um parecer(?) de 02 (DUAS!) linhas. E, o pior, com manifestações “permeadas de argumentos genéricos, daqueles que servem para qualquer caso e, portanto, para nenhum” (STJ. RHC 49631/MG. Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe 09/10/2014).

Em muitos casos falta seriedade, respeito ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa, ou seja, às regras do jogo! E, aqueles que deveriam ser os principais atores, heróis na busca do verdadeiro sentido da palavra Justiça, se transformam, como Harvey Dent, no vilão[3] “Duas-Caras”. São aqueles que não permitem um processo justo, em busca da verdade possível[4].

Teriam medo de que? Qual o prejuízo de um processo justo, devido, com apenas provas lícitas? A quem interessa uma condenação ilegal ou midiática? Na dúvida decretam-se prisões cautelares ou condenam, a depender do caso. E aqui jaz o in dubio pro reo, ou como diz Alexandre Morais da Rosa, pro hell!

Naturalmente, existem muitos Promotores de Justiça e Magistrados vocacionados. Estes são homenageados com a dedicatória deste artigo. Na esperança de que, aqueles que há muito se esqueceram do justo sejam, cada vez mais, menos!

 

 

Notas e Referências

[1] Duas-Caras (Two-Face, no original em inglês) é um personagem fictício dos quadrinhos, um vilão e inimigo do Batman. Sofre de dupla personalidade. A identidade verdadeira de Duas-Caras é Harvey Dent, promotor público de Gotham City e aliado próximo de Batman. Entretanto, Dent enlouquece depois que o chefe da máfia Sal Maroni joga ácido nele durante um julgamento, desfigurando o lado esquerdo do seu rosto, assim se tornando o vilão. Já em histórias mais recentes, mostrada no filme O Cavaleiro das Trevas, Harvey é vítima de uma emboscada arquitetada pelo Coringa, que resulta em seu rosto queimado, já que estava coberto por gasolina.

[2] No sentido de Rui Cunha Martins, aquilo que é evidente dispensa qualquer prova. A ilicitude, por violação à Constituição, em alguns casos é tão notória que salta aos olhos e causa perplexidade, quando aquele que deveria zelar pela regularidade do processo é, justamente, aquele que admite utilizar dessas mesmas provas.

[3] Neste texto a palavra “vilão” não é utilizada no sentido de “bandido”, mas sim de alguém que deixa os reais valores da justiça de lado para, desconsiderando o réu como sujeito de direitos e o tratando como mero objeto do cárcere (PAVARINI, Massimo; MELOSSI, Dario. Cárcere e Fábrica – as origens do sistema penitenciário. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014), buscar uma condenação independente do devido processo legal.

[4] Evita-se a indesejável expressão “verdade real”, em benefício da verdade possível, aquela produzida sob o teste de fogo do contraditório. Expressões que serão objeto de futuro artigo.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Mirrors // Foto de: Andrea Kirkby // Sem alterações

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