A SÉTIMA ONDA DE ACESSO À JUSTIÇA E A DESIGUALDADE DE GÊNERO NO SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO

02/06/2024

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

É conhecida a exposição sobre as ondas de acesso à justiça, expostas na obra seminal “Acesso à Justiça”, de Mauro Cappelletti e Bryant Garth.

Em uma síntese bem breve, a primeira onda trata da assistência judiciária gratuita; a segunda, da representatividade dos direitos difusos e coletivos; a terceira onda, denominada pelos referidos autores de “enfoque do acesso à justiça”, relaciona-se a uma visão mais ampla do fenômeno judicial, no sentido de se efetivar reformas nos procedimentos e na estrutura dos tribunais, além de visualizar outros métodos de resolução de conflitos.

É oportuno colacionar a seguinte passagem, extraída do início do livro:

Uma tarefa básica dos processualistas modernos é expor o impacto substantivo dos vários mecanismos de processamento de litígios. Eles precisam, consequentemente, ampliar sua pesquisa para mais além dos tribunais e utilizar os métodos de análise da sociologia, da política, da psicologia e da economia, e ademais, aprender através de outras culturas[i].

Passadas quatro décadas o então “Projeto Florença”, que originou o texto em referência, foi “reativado” para atualizar as ondas de acesso à justiça na contemporaneidade global.

Daí que se criou o “Global Access to Justice Project”, assim descrito pelos seus coordenadores, dentre os quais um dos autores do primeiro livro, Bryant Garth, além de Alan Paterson, Cleber Francisco Alves, Diogo Esteves e Earl Johnson Jr.:

Quarenta anos se passaram desde a publicação do resultado final do Projeto Florença, e muitos avanços (mas também alguns retrocessos) foram feitos no campo do acesso à justiça. No entanto, esse amplo processo de desenvolvimento ainda não foi devidamente estudado e compreendido, dificultando a busca por soluções promissoras que possam estimular discussões e contribuir para futuras reformas.

Curiosamente, o mundo hoje parece atravessar novamente por outro ciclo de expansão e contração dos modelos de assistência jurídica. O movimento atual, entretanto, não provém apenas de países com elevado nível de desenvolvimento econômico, sendo identificadas experiências e perspectivas inovadoras em muitas nações subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, criando novas ondas – e até mesmo contra-ondas – no movimento mundial de acesso à justiça. As filosofias, modelos e técnicas que evoluem em vários países são hoje extremamente diversificados e, por vezes, contraditórios; todavia, temas comuns estão começando a emergir e novas tendências podem ser discernidas no horizonte.

O Global Access to Justice Project procura identificar, mapear e analisar essas tendências emergentes, realizando uma nova pesquisa global. Nossa pesquisa se revela oportuna e eclética, adotando uma abordagem teórica e geográfica abrangente no mapeamento e estudo do diversificado movimento mundial de acesso à justiça na África, Ásia, Oriente Médio, América Latina, América do Norte, Europa e Oceania[ii].

As mencionadas tendências emergentes estão consubstanciadas em mais quatro ondas de acesso à justiça:

Quarta onda: “ética nas profissões jurídicas e acesso dos advogados à justiça”.

Quinta onda: “o contemporâneo processo de internacionalização da proteção dos direitos humanos”

Sexta onda: “iniciativas promissoras e novas tecnologias para aprimorar o acesso à justiça”

Sétima onda: “desigualdade de gênero e raça nos sistemas de justiça”.

A Coluna de hoje traz situação ocorrida recentemente no Brasil, que demonstra e comprova a tempestividade da comunidade jurídica mundial se debruçar sobre problemas do acesso à justiça, em seus variados contextos do século XXI: ético, de proteção dos direitos humanos, dentro do processo tecnológico e, ainda, político-social, relacionado à desigualdade de gênero e de raça.

Particularmente, este texto pretende apenas fazer a interligação da sétima onda do “Global Access to Justice Project” com o ocorrido no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na aplicação da Resolução do Conselho Nacional de Justiça n. 525/2023, que dispõe “sobre ação afirmativa de gênero, para acesso das magistradas aos tribunais de 2º grau”[iii].

Colhe-se de notícia veiculada pelo CNJ:

A resolução busca combater uma realidade na Justiça brasileira: a ausência sistemática de mulheres nos cargos mais altos. Embora constituam cerca de 51% da população brasileira, atualmente elas correspondem a 38% da magistratura, sendo 40% no 1º grau e apenas 21,2% no 2º grau[iv].

Nada obstante, a primeira aplicação da Resolução CNJ 525/2023 pelo maior tribunal do país não se deu sem percalços, já que foi objeto de impugnação judicial a promoção por merecimento de uma juíza por magistrados (homens) que se sentiram vilipendiados em seus direitos de progressão funcional.

Tal impugnação judicial, vem a reflexão, seria diferente em uma sociedade machista?

Ao final, o resultado do julgamento foi pela falta de competência do tribunal paulista, considerando a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar a constitucionalidade de atos normativos do CNJ. De modo que se possibilitou, pela primeira vez na história jurisdicional brasileira, a concretização do princípio da igualdade, estatuído a décadas no texto constitucional.

A sétima onda de acesso à justiça, portanto, relativamente à análise de desigualdade de gênero, tem mais um exemplo a ser citado, com os embaraços e contratempos, ou melhor contra-ondas, já de séculos conhecidos pelas mulheres no sistema de justiça, infelizmente.

Oxalá seja a primeira de incontáveis aplicações desta ação afirmativa de gênero nos tribunais brasileiros!

Fica, por fim, uma última reflexão, no sentido de se aplicar, de igual modo, nos tribunais superiores, já que ausente tal disciplinamento na norma administrativa do Conselho Nacional de Justiça.

 

Notas e referências

[i] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça, trad. Ellen Gracie Northfleet, 1988, reimpressão de 2002, p. 13.

[ii] Disponível em: https://globalaccesstojustice.com/historical-background/?lang=pt-br . Acesso em 31.mai.2024.

[iii] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5277 . Acesso em 31.mai.2024.

[iv] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tjsp-promove-a-primeira-desembargadora-por-regra-da-paridade-de-genero/ . Acesso em 31.mai.2024.

 

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