A segurança como produto eleitoral - Por Clécio Lemos

21/09/2016

Por Clécio Lemos - 21/09/2016

Dia 16 de agosto foram oficialmente autorizadas as propagandas dos candidatos a prefeito e vereador, para as eleições do dia 02 de outubro. Com as campanhas, a costumeira disputa em torno da pauta de “segurança pública”, produto privilegiado na corrida por votos no território brasileiro.

No site do TSE é possível encontrar um espaço destinado à “Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais”, nela se verifica dados sobre cada candidato e suas “propostas de governo”. Tive a curiosidade de analisar as propostas dos candidatos à prefeitura de uma cidade pela qual tenho especial afeto e, como já era esperado, constatei que o setor de “segurança” é destaque em todas elas.

A partir dos estudos de Ciências Criminais, podemos notar três grandes motivos para essa valorização da questão penal nas disputas dos cargos públicos: 1) a primazia do Estado sobre o crime; 2) a oferta ilimitada de crimes; 3) o consenso punitivista.

A história demonstra que o ente “Estado” só obteve sucesso em se situar como maior instância de poder no mundo ocidental a partir do século XVIII (Foucault, 2015, p. 129). Sua soberania como aparato que paira sobre determinado território e população, seu monopólio sobre o uso da força oficial, só foi alcançado após cerca de cinco séculos de disputas entre grupos de poder. É perfeitamente possível indicar que a centralização do uso da violência legal, a despeito das constantes “fugas de legalidade” pelos agentes públicos, se deveu principalmente ao surgimento da noção de “segurança pública”. (Foucault, 2002)

Em todos os países ocidentais o sucesso em concentrar poder nas mãos do governo foi produto da noção de que a conflitividade social só pode ser reduzida a partir de um órgão central. A ideia do “crime” como um ícone essencialmente público, ato que não ofende apenas à vítima, mas a toda a sociedade (traduzida na autoridade do Estado), foi justamente a invenção mais importante para que o Estado conseguisse seu papel de protagonista na regulação das relações sociais. A história da constituição do Estado como órgão máximo de poder se confunde com a história da “segurança” (pretensão de ausência de crimes).

O Estado criou o seu próprio alimento, cunhou para si seu produto de legitimação. Criando a etiqueta “crime”, o discurso penal conseguiu fazer com que condutas graves como um assassinato ou um estupro passassem a ter o Estado como vítima principal, afastando as vítimas reais do conflito e retirando delas a possibilidade de decidir o que fazer diante do ocorrido. O Estado atua sobre a “segurança” da forma que bem entende, cria suas agências (polícias, guardas, judiciário, penitenciárias), escolhe por conta própria sobre o que quer atuar (é o próprio Estado que indica o que é crime) e define sozinho suas ferramentas (controle, punições). Mas não resolve.

O suposto caráter “público” dos crimes molda a exclusividade do Estado sobre a cessação dos mesmos, e isso é o seu maior instrumento de concentração de poder. Logo, melhor cumpre seu papel de gestor público (e ganha mais votos) aquele que se vincula ao compromisso de redução da “criminalidade”, pois esta é justamente a promessa primordial de abafar a guerra geral da agressividade humana. A mitologia antropológica hobbesiana continua sendo a matriz máxima da sustentação da soberania estatal, a despeito da recente expansão do mercado multimilionário da segurança privada (agentes/aparatos de vigilância e proteção particular). (Caldeira, 2000)

O segundo ponto é a oferta ilimitada de crimes, segurança como “recurso natural ilimitado” (Christie, 2011, p. 29). Vejam, a percepção social atual sobre “criminalidade” está completamente enviesada, e podemos dizer que seu valor político depende profundamente disto. Enfim, o que significa “criminalidade”? Por acaso alguém conseguiria indicar o que há em comum entre os crimes de homicídio (art. 121 do Código Penal), venda de drogas (art. 33 da lei 11.343), comercialização de produtos falsificados (art. 184 do CP) e o molestamento de um cetáceo (art. 2º da lei 7.643)?

O fator “violência” não pode ser, pois apenas a primeira das quatro indica tal característica. Também não pode ser a existência de conflito humano, pois no comércio ilegal de drogas as pessoas envolvidas estão em consenso (um quer comprar, outro quer vender). Igualmente não é a rejeição social, seja porque muitas vezes há aceitação pública com relação a certos atos oficialmente criminosos (todos compramos conscientemente produtos “piratas”, certo?), seja porque outras vezes sequer desconfiamos que o ato seja criminoso (afinal, o que é mesmo um cetáceo?)

É claro que existem condutas as quais repudiamos e são socialmente danosas, mas este não é o ponto que indica o que é “criminalidade” ou seu oposto “segurança”. Ao delimitar o objeto da “segurança pública” em suas mãos, o Estado cria para si o poder de manejar o que deve ser negativo, e consequentemente o que deve impunizar (por acaso sonegação fiscal é caso de segurança pública?), num jogo de discursos e práticas não necessariamente coerentes com a boa convivência social.

Em outras palavras, a “segurança” é uma quimera. Uma invenção arbitrária do Estado que funda a grande “necessidade” dos seus aparatos de controle e, portanto, a grande “necessidade” do rigor punitivo. O “crime” não tem natureza, não tem cara, pode ser qualquer coisa que o Estado queira, a ponto de um levantamento ter chegado à constatação de que havia em 2009 no Brasil a cifra assustadora de 1688 tipos penais distintos (Machado et al, 2009). Sequer nós penalistas conhecemos todos os crimes existentes na legislação, apesar de sabermos muito bem que a perseguição penal concreta funciona seletivamente sempre contra os mesmos grupos marginalizados.

Portanto, é fácil perceber que elaborar estatística sobre “criminalidade” é hoje algo absolutamente impossível em nosso país. As já escassas informações sobre números de inquéritos, processos e condenados não fazem mais do que informar acerca dos selecionados pelo sistema penal, nunca os números reais de práticas delituosas. Também não há registros de relevantes pesquisas sobre vitimização em nosso país, o que poderia ajudar a encontrar números mais aproximados dos índices criminais. Simplesmente não temos como saber.

Não se pode então ter um mínimo de certeza se em nosso país vivemos um aumento ou diminuição de crimes, nunca tivemos tal conhecimento. As especulações midiáticas sobre aumento da criminalidade que ganham larga difusão social não fazem mais do que jogar livremente com o sensacionalismo que o discurso do medo possui, sempre privilegiando certos crimes (patrimoniais, drogas) e ignorando outros (colarinho branco). A sensação de medo e a ocorrência real de vitimizações são dois vetores que estão completamente dissociados, pode-se produzir aumento da sensação de insegurança sem que tenha havido qualquer aumento de delitos (e vice-versa).

Enfim, diante da obscuridade completa em torno do que é “criminalidade” (e seus números reais) e do aumento da difusão midiática do medo, a “segurança” se habilita como produto preferencial a ser ofertado em troca de votos. É uma promessa deliciosamente fácil, pois todos desejam e de fato não há como ter seu fracasso comprovado. O sucesso é garantido, entendem?

Por fim, o terceiro maior elemento para explicar a centralidade da “segurança pública” nas disputas eleitorais está no fato de que o “punitivismo” virou unanimidade, o horizonte das políticas públicas está encerrado e definido. O caminho para sua “solução” é muito bem conhecido e possui um enorme consenso popular: vigilância e punição. Portanto, prometer repressão penal é um ponto fácil de sucesso eleitoral, sem grandes riscos de rejeição nas urnas.

Todos parecem discutir sobre a questão criminal com grande desenvoltura, como se nela não houvesse nada a ser descoberto ou questionado. Desde sua primeira expressão histórica, o sistema penal se sustenta na crença profunda de que punir é a melhor solução que já se inventou, discurso do mal necessário, e os “especialistas” não cansam de sustentar tal premissa. O mantra do penalismo conseguiu se tornar o pensamento único sobre “resolução” de conflitividade humana, constituindo o ponto máximo de uma ampla sociabilidade autoritária (Passetti, 2003, p. 217).

A escalada de punições aumenta incessantemente, todos sabem que nos últimos 25 anos o Brasil assistiu um aumento de aproximadamente 7 vezes de seu sistema prisional (hoje o quarto maior do mundo), mas ninguém vê pacificação social. Continuam acreditando num remédio que nunca curou, e o hospital está cada vez mais superlotado. A demanda por repressão é incrementada, mesmo sem qualquer comprovação de que ela pode trazer “segurança”. (Batista, 1998, p. 88)

Enquanto a ladainha a favor do aumento de controle e repressão continuar pautando o ideal de organização social, continuaremos sem capacidade de sair desse ciclo vicioso na escolha de nossos representantes, e as campanhas pelos votos de 2016 voltam a nos despertar para essa realidade. Vale mencionar, por fim, que dentre os candidatos da cidade que analisei, o apontado em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto compõe justamente o fenômeno político que se convencionou chamar de “bancada da bala”, pois sua imagem pública foi produzida como apresentador de um desses programas televisivos “contra a bandidagem”, comprovando que a “segurança pública” é o produto eleitoral prioritário também nestas eleições.


Notas e Referências:

BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Discursos Sediciosos, ano 3, nº 5 e 6. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1998.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução de Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: Ed. 34 / Edusp, 2000.

CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

__________. A verdade e as formas jurídicas. 3. Ed. Rio de Janeiro: NAU editora, 2002.

MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; MACHADO, Maíra Rocha; ANDRADE, Fábio Knobloch de. SISPENAS - Sistema de Consulta sobre Penas, Crimes e Alternativas à Prisão – Série Pensando o Direito, nº 6/2009.

PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez, 2003.


clecio-lemos. . Clécio Lemos é Mestre em Direito pela UERJ. Professor de Ciências Criminais. Coordenador do IBCCRIM no Espírito Santo. E-mail: cleciojus@gmail.com . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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