A Revolução Pernambucana e a Lei Orgânica de 1817

15/08/2017

Por João Paulo Allain Teixeira – 15/08/2017

Comemoramos em 2017 o bicentenário da Revolução Pernambucana, momento crítico da dominação portuguesa no Brasil. As razões fundamentais para o movimento, que ultrapassou a fase da conspiração, estabelecendo efetivamente um governo provisório no Nordeste do Brasil, vincula-se a um conjunto de insatisfações com a condução da dominação lusitana e o desejo de afirmação de um novo modelo de organização política e social. Deste movimento resulta a Lei Orgânica de 1817, um projeto de Constituição, consagrando valores republicanos em voga na Europa e nos Estados Unidos e cuja ressonância em Pernambuco, acabou por viabilizar a primeira experiência republicana no Brasil, antes mesmo da Independência.

A Lei Orgânica de 1817, apesar de negligenciada pela historiografia constitucional brasileira, é documento que se reveste de significativa importância para a compreensão das vicissitudes a que historicamente estamos submetidos. Trata-se de iniciativa pioneira de consagração entre nós, de um regime republicano, comprometido com valores que contribuem para o estabelecimento de uma cidadania a partir da configuração de uma esfera pública nacional autônoma e independente. Foi a partir da Revolução de 1817 que apareceram pela primeira vez “uma nascente consciência de direitos sociais e políticos” (Carvalho, 2013: 25) Contudo, decorridos dois séculos da pioneira experiência pernambucana, permanecem na prática institucional brasileira quase que como atavismo indelével, um acervo de dificuldades que impedem a plenitude do desenvolvimento de uma democracia constitucional.

No Brasil, durante o período colonial um conjunto difuso de movimentos questionaram e desafiaram a Coroa Lusitana. Muitos desses movimentos adotavam um discurso emancipatório e republicano, inspirados pelas transformações políticas e econômicas ocorridas sobretudo no continente europeu. Os ideias libertários circulavam também no Brasil tornando o debate político colonial francamente suscetível a apropriações e reinterpretações pela institucionalidade local. No contexto das transformações que modificaram decisivamente a cena política externa destacamos as tensões entre os privilégios estruturais consagrados pelo regime monárquico e o crescente protagonismo da burguesia europeia, em decorrência da expansão do capitalismo. O progresso econômico experimentado pela burguesia possibilitou o desenvolvimento de uma ideologia própria, especificamente voltada aos interesses individualistas, não exatamente coincidentes com aqueles cultivados pela Monarquia. O Iluminismo, orientado pela valorização do conhecimento e da razão exigia assim uma nova postura e uma nova forma de dar sentido ao mundo. A força do Iluminismo, enquanto matriz ideológica fundamental da Revolução Francesa, atravessou o Atlântico, alcançando as colônias europeias na América. A contestação da submissão à autoridade inglesa que resultou no processo de Independência das treze colônias na América do Norte sofreu forte influência Iluminista, culminando com a Declaração de Independência dos Estados Unidos.

No final do século XVIII o debate europeu e as ideias Iluministas circulavam amplamente no Brasil, inspirando movimentos libertários e republicanos como a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817).

A Revolução Pernambucana, também conhecida como Revolução dos Padres, eclode no contexto da contestação ao sistema colonial lusitano na Capitania de Pernambuco. Os problemas econômicos na Capitania de Pernambuco decorrem de um conjunto de fatores que, reunidos, acabaram por motivar uma grande insatisfação e mobilização contra o colonialismo português.

Dentre os fatores que provocaram o declínio econômico da Capitania de Pernambuco podemos destacar a) a ascensão econômica da Inglaterra e França reduzindo espaços de negociação dos produtos portugueses (e brasileiros) no mercado externo; b) o desenvolvimento da produção de açúcar a partir das Antilhas Holandesas, aumentando a concorrência com o produto pernambucano; c) com a vinda de D. João VI ao Brasil, a instalação da Corte lusitana no Rio de Janeiro e a crescente disponibilização de recursos para a viabilização de infraestrutura para a Corte. Com isso, muitos recursos saíam de Pernambuco, destinados ao financiamento de obras de modernização da estrutura urbana do Rio de Janeiro.

O movimento, forjado, de um lado, partindo da crítica à dominação portuguesa, e de outro lado, pelos ideais republicanos de valorização da autonomia política, começa a ganhar corpo com a convergência de atores estratégicos, tais como a elite econômica pernambucana, os padres oriundos do Seminário de Olinda, e a Maçonaria, sociedade secreta em cujas reuniões o debate liberal europeu tinha grande espaço e prestígio.

A sobrelevação tem como estopim a iniciativa do Capitão-General Caetano Pinto de Miranda de enfrentamento do clima tenso estabelecido na Capitania.  Sabedor da ambiência conspiratória, determinou aos comandantes da tropa que lhe apresentasse o nome dos conjurados, determinando a sua imediata prisão.  Alguns civis chegaram a ser presos, mas a medida se mostrou inócua para alguns oficiais, que ofereceram resistência. A reação do Capitão José de Barros Lima, o “Leão Coroado” ante a determinação de sua prisão foi imediata. Sacando da espada, matou no pátio do próprio quartel, o Brigadeiro Antônio Joaquim Barbosa de Castro, a quem incumbia o cumprimento da medida. (Calmon, 1971: 1460).

A notícia ganha as ruas do Recife e provoca ampla e imediata adesão à causa revolucionária: “Viva a pátria, morra marinheiro”[1] era a palavra de ordem.

Com a bem sucedida tomada do poder, um Governo Provisório assume o comando da Capitania, estabelecendo uma Lei Orgânica, documento que apresentava as principais características de um verdadeiro texto constitucional, consagrando uma estrutura de poder formalmente estabelecida além da enunciação de um conjunto de direitos fundamentais...

A Lei Orgânica (Constituição da República de Pernambuco) instituída pelo Governo Provisório da República de Pernambuco, é vertida em 28 artigos, consagrando uma organização político-institucional que consagrava distintas esferas de atribuições, estabelecendo funções executivas, legislativas e jurisdicionais. A Lei Orgânica estabelece que “Os poderes de execução estão concentrados no Governo Provisório, enquanto não se conhece a Constituição do Estado, determinada pela Assembleia Constituinte que será convocada assim que se incorporarem as comarcas que formavam a antiga capitania e ainda não têm abraçado os princípios da independência” (Art. 1º). Para o exercício da função legislativa a Lei Orgânica criou um “Conselho permanente composto de seis membros, dentre os patriotas de mais probidade e luzes em matérias de administração pública, e que não sejam parentes entre si, até segundo grau canônico” (Art. 2º) A Lei Orgânica se preocupou ainda com a estruturação primária do Poder Executivo, criando “duas secretarias, uma para o expediente dos negócios do Interior, Graça, Polícia, Justiça e Cultos. Outra para o expediente dos negócios da Guerra, Fazenda, Marinha e Negócios Estrangeiros” (Art. 8º). Para a Justiça, a Lei Orgânica estabelece níveis jurisdicionais distintos, com a previsão de juízes de primeira instância (Art. 13) e um Colégio Supremo de Justiça, situado na capital do governo e com competência para decidir em última instância as causas cíveis e criminais (Art. 15). Para os crimes militares, havia previsão de Comissão Militar, presidida pelo General das Armas. (Art. 20).

Do ponto de vista da enunciação de direitos, o texto da Lei Orgânica trouxe ainda disposições referentes à liberdade religiosa e à liberdade de imprensa.[2] No que se refere à liberdade religiosa, a despeito de estabelecer a religião Católica Romana como “religião do Estado”, entende como “toleradas” todas as demais seitas cristãs de qualquer denominação (Art. 23). A Lei Orgânica proclama no Art. 25 a liberdade de imprensa, determinando contudo limites ao seu exercício, ficando “o autor de qualquer obra e seu impressor sujeito a responder pelos ataques feitos à Religião, à Constituição, bons costumes e caráter dos indivíduos na maneira determinada pelas leis em vigor.”

Apesar do discurso libertário, o movimento de 1817 não conseguiu enfrentar o tema da escravidão. A manutenção dos direitos sobre a propriedade e sobre os escravos parece ter sido condição para a ampliação do apoio ao movimento[3]. Não por acaso, a Abolição só viria a acontecer em 1888, mais de meio século depois da própria Independência.

O Governo Provisório durou 75 dias, sucumbindo depois de forte repressão pela Coroa, havendo seus principais líderes sido fuzilados.

José Murilo de Carvalho aponta as dificuldades históricas para o estabelecimento do republicanismo no Brasil, muitos deles decorrentes das “marcas duradouras” do passado colonial (Carvalho, 2013:17). O extermínio indígena pelo colonizador português, a permanência da escravidão, a forte presença do latifúndio como protagonista das relações econômicas, e todo o aparato social que se desenvolveu para garantir uma estrutura de poder elitista e excludente, expressam de forma eloquente os impasses institucionais a que o Brasil esteve submetido desde a sua origem.

Também merece destaque o fato de um dos primeiros atos do Governo Provisório ter sido a determinação do tratamento “Vós” e “Patriota” para marcar a identidade social do movimento (Calmon, 1971: 1463).  Apesar do desejo implícito de sedimentação de uma igualdade horizontalmente estabelecida, chama a atenção a pouca força discursiva da ideia de “cidadania”, indicativa de uma esfera pública plural no Brasil[4]. O patriotismo seria assim, muito mais um forte indicativo de aspectos identitários regionais, essencialmente pernambucanos, do que propriamente a manifestação de uma cidadania nacionalmente forjada

Mesmo assim, a despeito dos limites impostos pelas circunstâncias históricas, os rebeldes pernambucanos de 1817 conseguiram estabelecer, ainda que pelo breve período de pouco mais de dois meses, um marco fundamental para a compreensão das bases e fundamentos do republicanismo no Brasil.


Notas e Referências:

[1] Lembra Pedro Calmon que os europeus eram conhecidos à época como "marinheiros", em referência ao fato de sempre chegarem pelo mar. (Calmon,1971: 1461)

[2] A imprensa começou a funcionar em Pernambuco em 10 de março de 1817, com a aquisição pelos revolucionários de tipografia a um comerciante inglês (Calmon, 1971:1463).

[3] “A escravidão é o grande bode na sala da Revolução Pernambucana. Seus documentos defendiam ideais republicanos e liberais, inspirados pela Revolução Francesa, e propunha que todos os seres humanos nasciam livres e com direitos iguais. Apesar disso, em momento algum as proclamações de 1817 sugerem o fim do tráfico negreiro ou a abolição. O motivo é bem simples: alguns dos principais líderes do movimento eram senhores de engenho. Pertenciam, portanto, à mais fina flor da aristocracia rural escravagista da época. Um dos filhos do líder revolucionário Domingos José Martins, homônimo do pai, se tornaria alguns anos mais tarde o maior traficante de escravos na costa do Benin, na África, onde até hoje existe uma numerosa família de descendentes dele. Havia, claro, gente com simpatias abolicionistas no movimento, mas o tema era explosivo demais para ser defendido publicamente” destaca o jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor do livro “1808” sobre a chegada da família real portuguesa ao Brasil. (Guedes e Balbino, 2017)

[4] "E o patriotismo era pernambucano mais que brasileiro. A identidade pernambucana fora gerada durante a luta com os holandeses, no século XVII. Como vimos, guerras são poderosos fatores de criação de identidade." (Carvalho, 2013: 25)

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

CALMON, Pedro. História do Brasil. Vol. 4.  Século XVIII: Riquezas e Vicissitudes –

GUEDES, Diogo, BALBINO, Marcela. 1817, Revolução com as Cores de Pernambuco. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/noticia_print.php?id_noticia=294039&id_secao=11


João Paulo Allain Teixeira. João Paulo Allain Teixeira é Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro e líder do grupo de pesquisas REC CNPq – Recife Estudos Constitucionais.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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