Por Esther Maria de Magalhães Arantes[1] - 16/12/2015
Durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, a prática em relação à criança indígena era a de separá-la de sua família para moldá-la aos costumes ditos civilizados e cristãos, e em relação à criança negra era a de sua incorporação como força de trabalho escrava, tão logo atingisse a idade dos sete anos. Quanto à assistência, limitava-se ao recolhimento de expostos e órfãos em instituições caritativas. Não existia, àquela época, “a criança”, pensada como categoria genérica, em relação à qual se pudesse deduzir algum direito universal, pois não existia o pressuposto da igualdade entre as pessoas, sendo a sociedade colonial construída justamente na relação desigual senhor/escravo[2].
O que existiam eram categorias diferenciadas de crianças como os “filhos de família”, os “meninos da terra”, os “filhos dos escravos”, os “órfãos”, os “expostos”, os “desvalidos”; ou ainda, os “pardinhos”, os “cabrinhas”, os “negrinhos”.
Os “filhos legítimos de legítimo matrimônio cristão” não colocavam problemas à ordem social, pois que, justamente, encontravam-se sob o controle do “pai de família”, que tinha poderes quase ilimitados. Da mesma forma, os meninos da “terra”, contidos nos colégios jesuítas e os “negrinhos”, propriedades do senhor, encontravam-se controlados socialmente através destas relações de posse e assujeitamento. Os “expostos” e os “órfãos”, embora sem o suporte familiar, encontravam nos estabelecimentos mantidos pela caridade, como as Casas da Roda e os Recolhimentos das Órfãs, o seu guardião legal.
Naquela época, as categorias que colocavam problemas à ordem social eram as gentes sem-eira-nem-beira – os “mendigos”, os “viciosos”, os “vadios” – fenômeno tão bem descrito por Laura de Mello e Sousa no livro “Os desclassificados do ouro”. Essa gente desclassificada não tinha como se inserir na estrutura dual da sociedade colonial. Não eram escravos propriamente, porque não haviam sido comprados e também não eram senhores, não podendo ocupar posições na estrutura burocrática e administrativa da Colônia. Existiam como uma espécie de “mão de obra de reserva escrava”, temidos como sendo “a pior raça de gente”, mas ao mesmo tempo reserva útil, objeto de recrutamentos forçados sempre que o Estado necessitasse de milícias para o combate aos quilombolas e aos índios, ou para a construção de estradas, prisões e demais edificações e serviços.
O problema modifica-se inteiramente quando os escravos, a partir da Lei do Ventre Livre (1871) e da Abolição da Escravatura (1888), adquirem a condição de livres e, portanto, de “filhos” e “pais de família”, sem, contudo, adquirirem as condições materiais para o exercício pleno da cidadania. Foi quando crianças pobres passaram a ser encontradas nas ruas brincando, trabalhando, pedindo esmolas ou eventualmente cometendo pequenos furtos.
Não se querendo reconhecê-las como tendo os mesmos direitos e status dos “filhos de família”, situação tradicionalmente reservada apenas aos bem nascidos socialmente, mas ao mesmo tempo não se podendo acusá-las de “criminosas”, por não haverem cometido infração alguma às leis penais, o que teria permitido recolhê-las aos estabelecimentos carcerários, um novo arranjo tutelar terá que ser inventado a partir da identificação destas crianças pobres como “menores abandonados” e potencialmente “perigosos”, ou seja, “órfãos de pais vivos” e “futuros criminosos”. Caberia então ao Estado, neste novo arranjo, assisti-los caritativamente como aos órfãos e expostos e, ao mesmo tempo, corrigi-los e regenerá-los como aos condenados, só que preventivamente e com a justificativa de sua proteção.
Assim e retrospectivamente, até os anos 1870, nenhuma problematização ou inquietação em relação a menores ditos abandonados é encontrada nos documentos oficiais do Império[3]. O que traz preocupação, por um lado, é a situação dos órfãos e dos expostos, objetos da assistência caritativa, e por outro, a situação dos menores nas prisões, quando sujeitos às leis penais. “Menor”, como aparece nos documentos, é apenas uma variável de identificação nas estatísticas policiais, que separavam os presos e os réus entre homens e mulheres, livres e cativos, nacionais e estrangeiros, casados e solteiros, maiores e menores de idade. Quando muito, os documentos lembravam que os condenados menores de idade não deveriam ficar presos juntos com os condenados maiores de idade, da mesma forma que as mulheres deveriam estar em prisões distintas dos homens.
A categoria “menor abandonado” só emergirá no Brasil no bojo da discussão sobre a reforma das prisões e após a Lei do Ventre Livre e não, como se poderia supor a princípio, pelo viés da caridade. Os estabelecimentos caritativos, à época, não se preocupavam com os menores condenados, dedicando-se apenas aos órfãos e expostos. Essas categorias de crianças, inclusive, são tratadas em Relatórios Ministeriais distintos: as estatísticas e considerações sobre os órfãos, expostos e desvalidos são apresentadas nos Relatórios do Ministério do Império sob a rubrica “instituições de caridade”, e as considerações sobre os menores de idade sujeitos à lei penal, nos Relatórios do Ministério da Justiça, sob a rubrica “polícia” ou “prisões”.[4] Órfãos e expostos apenas são tratados nos Relatórios do Ministério da Justiça quando vítimas: o órfão, quando sua educação for negligenciada ou sua herança mal administrada ou surrupiada pelo tutor, e o exposto, quando encontrado na via pública, sujeito às intempéries do tempo, morto ou podendo vir a falecer, ou quando jogados ao mar forem devolvidos às praias.
O que se constata, ao longo de todo o Império, é uma preocupação constante com as mudanças na legislação penal e com a reforma do sistema carcerário que deveria advir como conseqüência dessas mudanças, uma vez que a penalidade mais comum passa a ser a privação da liberdade e não mais as penas de morte, degredo e galés. Ao mesmo tempo em que se elogia o progresso civilizatório que as novas leis representam, equiparando-se o Brasil aos países do primeiro mundo, tais leis são constantemente combatidas, na medida em que se acredita que elas atrapalham o trabalho da polícia, servindo mais para proteger os malfeitores que os cidadãos honrados, além de que, com as prisões superlotadas, pela primeira vez depara-se o Estado com uma massa carcerária a ser administrada, passando as prisões a serem definidas como “escolas do crime”.
É neste contexto - em que se discute a situação das prisões e a criação de um sistema penitenciário em virtude das novas leis penais e do processo, onde o acusado adquire o direito de se defender e impetrar recursos, e a pena deixa de ter o caráter de vingança e adquire a função de regeneração, e apenas após as leis abolicionistas, quando cresce o número de pessoas pobres vivendo e trabalhando nas ruas das grandes cidades - que a justificativa para a apreensão da criança pobre será formulada, definindo-a como “abandonada”, passando a ser voz comum a idéia de que deveriam ser encaminhadas às “instituições preventivas”.
A dificuldade de se administrar a questão prisional passa a decorrer diretamente do “problema do menor abandonado”, o que servirá como justificativa “científica” para que os “menores criminosos”, mas não sujeitos à lei penal por não terem agido com discernimento e os menores que nenhum crime haviam cometido mas eram considerados “mendigos”, “ociosos” e “vadios” pudessem ser encaminhados às escolas correcionais e de reforma mediante a suspensão ou destituição do pátrio poder, ou a pedido dos próprios pais, por serem os filhos considerados “desobedientes” ou “incorrigíveis”, ou a pedido da mãe viúva, por se sentir incapaz de sustentar os filhos ou de proteger a honra da filha. Ao serem recolhidos nas ruas pela polícia e levados à presença do Juiz de Órfãos para receberem “destino”, a grande maioria destes menores foi encaminhada ao trabalho, mediante soldada.
Recebendo como “destino” o trabalho em casas de família, fábricas ou fazendas, ou encaminhados às escolas de aprendizes de Guerra ou Marinha, sofrendo muitas vezes abusos de todas as espécies, constituía este aprendizado do trabalho uma modalidade de “servidão das crianças” ou “seqüestro da infância pobre” em tempo de pós-abolição e mão-de-obra escassa - só lhes restando a alternativa da fuga do cativeiro, o que muitos realizaram, sendo recapturados e novamente evadidos. Outros foram devolvidos ao Juiz, por “não aprenderem o trabalho” ou por não aprenderem a “disciplina do trabalho”, por apresentarem alguma doença ou incapacidade, por terem sido acusados de furto ou de maus hábitos, por terem sido defloradas, porque não mais desejavam o trabalho ou aquele trabalho. Alguns outros tiveram filhos, que foram colocados na Casa dos Expostos. Outros ainda foram enviados para o Hospício Nacional dos Alienados, ou faleceram.
A República, longe de mudar o foco desta discussão e reverter este processo, o aprofundou, buscando instituir uma legislação específica para os ditos menores, visando, sobretudo, o controle daqueles considerados “moralmente abandonados”. Assim, o Código Penal de 1890, apenas um ano após a Proclamação da República (1889), regulamentou a idade da imputabilidade penal em nove anos, permitindo o envio de crianças e adolescentes para as casas de detenção. Ao não abolir, mas apenas regulamentar a idade para o trabalho infantil, a República também permitiu que crianças e adolescentes ficassem fora da escola regular.
Construiu-se, desta forma, sobre a base da regulamentação da idade penal e da regulamentação do trabalho infantil, da possibilidade de destituição do pátrio poder em relação a alguns menores e da internação dos mesmos menores em estabelecimentos correcionais e de reforma, um sistema dual no atendimento às crianças, uma vez que, enquanto o Código Civil de 1916 tratava dos “filhos de família”, o Código de Menores de 1927[5] tratava dos menores “abandonados” ou “delinqüentes”, entre os quais: “expostos”, “mendigos”, “vadios”, “viciosos” e “libertinos”.
Embora não se possam estabelecer apenas rupturas entre estes dois modelos de assistência – coexistindo muitas vezes o mesmo propósito de controle social e o mesmo método de confinamento - podemos afirmar, no entanto, que o sistema caritativo, de natureza religiosa e asilar, ocupava-se basicamente da pobreza, motivado principalmente pelo dever de salvação das almas. Já a filantropia dita esclarecida, de natureza cientificista e favorável a uma assistência estatal, tendeu sempre a uma gestão técnica dos problemas sociais, ordenando os desvios a partir de um modelo de normalidade que definia a criança pobre quase sempre como “carente”, “anormal”, “deficiente”, “perigosa” ou “delinqüente”.
Tal a abrangência deste sistema dito de proteção à infância que, praticamente, cobria todo o universo de crianças e adolescentes pobres, pois que à existência do “menor” correspondia uma suposta família “desestruturada” - por oposição ao modelo burguês de família tomado como norma - à qual a criança pobre sempre escapava: seja porque não tinha família (“abandonada” ou “órfã); porque a família não podia assumir funções de proteção (“carente”); porque não podia controlar os excessos da criança (“conduta anti-social”); porque os comportamentos e envolvimentos da criança ou do adolescente colocavam em risco sua segurança, da família ou de terceiros (“infratora”); seja porque a criança era dita portadora de algum desvio ou doença com a qual a família não podia ou sabia lidar (“deficiente”, “doente mental”, com “desvios de conduta”); seja ainda porque, necessitando contribuir para a renda familiar, fazia da rua local de moradia e trabalho (meninos e meninas “de rua”); ou ainda porque, sem um ofício e expulsa/evadida da escola ou fugitiva do lar, caminhava ociosa pelas ruas, à cata de um qualquer expediente (“perambulante”)[6].
No entanto, em que pese o artifício de transformar pobreza em abandono, o problema da assistência à infância permaneceu sempre por ser devidamente equacionado, na medida em que ao definir este abandono de maneira abrangente a legislação fazia com que a rede de atendimento tivesse por objetivo abarcar todos os efeitos da pobreza, subsumindo funções de abrigo, casa, escola, hospital e prisão. Se isto, por um lado, sempre permitiu a seus agentes um poder muito grande sobre os menores pobres e suas famílias, por outro, tal empreitada sempre esbarrou não apenas nos minguados recursos disponíveis para a assistência como também em dificuldades de natureza ética e política, e mesmo jurídica. Aquilo que se tornava visível pela atuação técnica como “desestruturação familiar” (crianças nas ruas ou separadas em diferentes lares e internatos; mães solteiras ou distantes geograficamente de seus companheiros; pais ou mães desempregados ou internados em hospitais gerais, psiquiátricos ou encarcerados em presídios; pais mortos ou desaparecidos; crianças pequenas cuidadas por irmãos apenas um pouco mais velhos; etc.) era, na grande maioria das vezes, a própria condição de existência e sobrevivência das famílias pobres no Brasil.
Desta forma, o que se encontrava em jogo na assistência à infância no Brasil, ao longo de quase todo o século XX, não era a noção científica (ou supostamente científica) de criança e nem mesmo o seu correlato jurídico menor de idade, mas a constituição de uma dupla infância ou de um duplo estatuto de menoridade (a criança e o menor) - forjados em relações de exploração e violência existentes na sociedade, mas sempre em nome de sua proteção.
Foi para romper com esta lógica e com estas práticas que os movimentos sociais e demais organizações da chamada sociedade civil, no bojo da mobilização pelo fim da Ditadura Militar e pela democratização do Brasil, iniciaram ampla mobilização em torno dos direitos humanos e de cidadania dos diferentes grupos marginalizados da população brasileira, entre os quais os chamados “menores”. À medida que se pode efetivamente questionar o modelo de assistência até então vigente, tornou-se possível a emergência de novas proposições. Na redação do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou não apenas a Declaração Universal dos Direitos da Criança, como também o pré-texto da Convenção destes mesmos direitos, que, naquela data, ainda não havia sido apresentado à Assembléia Geral das Nações Unidas. Ao assim proceder, aboliu o Código de Menores de 1979 e, em seu lugar, em 13 de julho de 1990, promulgou o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Federal 8.069, que dispõe sobre a Proteção Integral à criança e ao adolescente, conforme seu Art. 1º.
A Proteção Integral, de que trata o Estatuto, se organiza em torno de três fundamentos ou princípios básicos, sem os quais não existe tal Proteção Integral: crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, são prioridades absolutas. É condição para esta Proteção Integral que estes três princípios venham juntos e nunca separados, não se devendo opor, por exemplo, “proteção especial” e “responsabilização”, no caso do adolescente autor de ato infracional, bem como não se devendo opor “sujeito de direitos” e “pessoa em condição peculiar de desenvolvimento”, particularmente em situações de vulnerabilidade, quando, mais do que nunca, estes princípios devem vir juntos[7].
Este é o desafio posto para todos nós: o de entendermos o caráter ético, jurídico, político e social do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que esta Lei assegura à criança e ao adolescente a condição de sujeito de direitos sem abolir a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Não se trata, evidentemente, de infantilizar as crianças e os adolescentes e de reduzi-los à condição de objeto que por tanto tempo lhes foi imposta, numa retomada do chamado “menorismo”, mas apenas de assegurar, ao mesmo tempo e no mesmo movimento, a condição da criança e do adolescente como sujeito de direitos, pessoa em desenvolvimento e prioridade absoluta.
Dado este caráter inovador do Estatuto da Criança e do Adolescente, sua aprovação gerou intenso otimismo nos militantes de Direitos Humanos, depositando-se grande esperança nos Conselhos de Direitos e Tutelares, principalmente pelo princípio da participação popular, também estabelecido no Estatuto.
Decorridos 18 anos de sua aprovação, no entanto, forçoso reconhecer que as mudanças até agora obtidas não têm correspondido aos sonhos e esperanças de todos aqueles que lutaram para que a Doutrina da Proteção Integral fosse incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro. Em nome do equilíbrio fiscal e do cumprimento de metas pactuadas com organismos internacionais, a partir da década de 1990, o Brasil diminuiu consideravelmente os gastos com as políticas sociais básicas, inviabilizando, na prática, o cumprimento da Constituição e do Estatuto. A crise que se instalou, a partir daí, combinou desemprego, desesperança e violência, onde os jovens pobres do sexo masculino tem sido as maiores vítimas, sendo que grande parte das mortes nesta faixa etária acontece por motivação externa: acidentes e assassinatos[8]. Há que se ressaltar, no Rio de Janeiro, a letalidade dos confrontos a partir da chamada “guerra às drogas”, sendo que também os presídios e unidades do sistema sócio-educativo encontram-se organizados pela lógica das “facções”.
Nesta conjuntura, onde faltam recursos para a garantia dos direitos sociais ou onde tais recursos não são priorizados frente às exigências de controle fiscal, cresce o número de pessoas favoráveis a um endurecimento da legislação e do rebaixamento da idade penal, divulgando-se insistentemente, como causa do aumento da violência, uma suposta impunidade proporcionada pelo Estatuto, cuja única finalidade seria a de “proteger bandidos” – criando na população uma indiferença face ao trágico destino de milhares de jovens pobres, tanto dos que são executados sumariamente quanto dos que se encontram privados de liberdade.
Quanto a esses argumentos, talvez a história possa ainda nos ajudar. Interessado em estabelecer as bases da Assistência Pública, o Ministro da Justiça e Negócios Interiores J. J. Seabra incumbiu, em 1905, o então secretário da Escola Correcional Quinze de Novembro, Franco Vaz, posteriormente seu Diretor, de estudar o assunto e apresentar a tal respeito um trabalho, no prazo de seis meses. Franco Vaz apresentou um longo relatório intitulado “A infância abandonada”, dividido em duas partes: a primeira trata do que denomina “abandono material”, na qual estuda a mortalidade infantil, suas causas e remédios; na segunda, trata do “abandono moral”, onde se ocupa das crianças consideradas vadias, delinqüentes, viciosas que “enchem, dia a dia, as cadeias e os sítios lúgubres”.
Para confeccionar o seu Relatório[9], Franco Vaz visitou os diversos estabelecimentos onde havia crianças e jovens no Rio de Janeiro. Em visita à Casa de Detenção, constatou a presença de 18 menores com idade entre 10 e 18 anos, cujos motivos da detenção foram: ter atirado uma pedra num comerciante que o agredira, ter sido apanhado perambulando ou dormindo na rua à espera de trabalho, estar à noite em companhia de uma mulher em um bar, estar perdido e confuso mentalmente sem saber o caminho de volta para casa ou ainda ser encontrado nas ruas vendendo jornais.
Se dizendo profundamente magoado com a situação daqueles “pobres irresponsáveis”, mas assinalando não ser possível banir a miséria da face da terra, nem democratizar a democracia, nem abolir as diferenças sociais ou mesmo propor a escola pública para todos, propõe então que sejam tomadas medidas enérgicas contra a desordem familiar, o jogo, o alcoolismo, a prostituição, e também que fossem autorizadas medidas mais duras como processo rápido e sumário, supressão da fiança, reclusão em colônias correcionais e prisão celular para nacionais e deportação para estrangeiros, propondo, ainda, que a penalidade para os menores passasse a ser indeterminada, para que pudessem permanecer nos estabelecimentos correcionais pelo tempo que fosse preciso para sua regeneração. Propôs, finalmente, que o Estado assumisse a tutela de todos os menores moralmente abandonados, anulando, se necessário fosse, o poder paterno; e que a criança, quando encaminhada pela autoridade à Detenção, deveria ser colocada inicialmente em regime celular, sendo a cela um remédio eficaz contra o desregramento infantil, preparando o organismo da criança para receber os efeitos benéficos da escola de reforma e preservação.
Não se lembrou Franco Vaz, no entanto, de abrir as portas da cadeia, pois os meninos nenhum crime haviam cometido.
Notas e Referências:
[1] Para a confecção deste texto utilizou-se de material que já vem sendo pesquisado há 20 anos, em diferentes arquivos, como parte de um projeto sobre a História da Assistência à Infância no Brasil. Alguns destes achados de pesquisa já encontram-se disponíveis em publicações diversas, conforme indicado nas notas. Parte desta pesquisa foi apoiada pelo edital de Direitos Humanos da FAPERJ.
[2] Um dos objetivos da catequização dos povos indígenas foi justamente o de salvá-los de um suposto estado de inferioridade humana, civilizatória e espiritual: povos “sem Rei, Lei e Fé”. O “próximo” não era, portanto, qualquer outro humano, mas um súdito do Rei de Portugal e um cristão temente a Deus.
[3] Exceção é feira ao Decreto N. 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecendo casas de asilos para os meninos encontrados em estado de pobreza. No entanto, apenas em 1875, justamente após a Lei do Ventre Livre, foi inaugurado no Rio de Janeiro o Asilo de Meninos Desvalidos.
[4] Esta situação se modificará na República, quando as atribuições do Ministério do Império forem repassadas ao Ministério da Justiça, unificando as duas pastas.
[5] Decreto Nº 17943-A, de 12 de outubro de 1927 – Consolida as leis de assistência e proteção a menores (Código de Menores de 1927).
[6] Ver: ARANTES, Esther Maria M.. Rostos de Crianças no Brasil. In: A Arte de Governar Crianças. RIZZINI, Irene e PILOTTI, Francisco (organizadores). Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Niño; Editora Universitária Santa Úrsula; AMAIS Livraria e Editora, 1995.
[7]Ver: Nogueira Neto, Wanderlino. Direitos Humanos. In: Justiça Juvenil sob o marco da proteção integral. Caderno de textos. São Paulo: ABMP, 2008.
[8] Vide Mapa da Violência.
[9] Sobre Franco Vaz, consultar a importante Dissertação de Mestrado de Maria de Fátima Bastos Menezes Migliari, intitulada “Infância e adolescência pobres no Brasil. Análise social da ideologia”. Defendida no Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em novembro de 1993.
ARANTES, Esther Maria M. Rostos de Crianças no Brasil. In: PILOTTI, Francisco e RIZZINI, Irene (Orgs.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Niño, Editora Universidade Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995.
______. (Coord.); BRITO, Leila Maria Torraca; RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Adolescente, ato infracional e cidadania no Rio de Janeiro: 1900-2000. A construção do jovem “perigoso”. Relatório de pesquisa/Edital Direitos Humanos/FAPERJ, 2008.
BRASIL. Relatórios Ministeriais do Império. Center for Research Library. Brazilian Government Document Digitization Project.
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html
MIGLIARI, Maria de Fátima Bastos Menezes. Infância e adolescência pobres no Brasil. Análise social da ideologia. Dissertação de Mestrado, defendida no Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em novembro de 1993.
NETO, Wanderlino Nogueira . Direitos Humanos. In: Justiça Juvenil sob o marco da proteção integral. Caderno de textos. São Paulo: ABMP, 2008.
Esther Maria de Magalhães Arantes é Normalista, pelo Instituto de Educação de Goiás (1967); Bacharel em Psicologia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971); Formação de Psicólogos, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972), Mestrado em Educação, pela Boston University (1976); Doutorado em Educação, pela Boston University (1981) e Pós Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). Professora do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3876442600525617
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