A Progressão de Regime para os delitos hediondos e/ou equiparados após a entrada em vigor da Lei 13964/2019 e suas repercussões na doutrina e jurisprudência  

12/11/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

A Lei 13964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, entrou em vigor no dia 23 de janeiro de 2020 e trouxe inúmeras alterações na legislação penal extravagante, mormente a Lei de Execução Penal.

Para aqueles que labutam na execução penal é forçoso reconhecer que a alteração introduzida no art.112 da Lei 7210/84 significou uma efetiva concretização da individualização da pena executada. O legislador atribuiu percentuais como critérios objetivos para a aquisição da progressão de regime, levando-se em conta a primariedade do sujeito ativo, a natureza hedionda ou não do delito, o modo como este fora praticado, ou seja, com violência ou não e, inclusive, se do mesmo resultou ou não morte da vítima.

O art.112 da Lei de Execução Penal, densamente alterado pela Lei 13964/2019, traz em seu bojo o instituto da progressão de regime. É cediço que a norma exige 2 (dois) requisitos para a obtenção do direito em liça, sendo um subjetivo (comportamento carcerário) e outro objetivo (lapso temporal). No que pertine a este ultimo, a lei previa uma fração de 1/6 (um sexto) para a progressão de regime.

Durante muito tempo houve divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da progressão de regime para os condenados pela prática de crimes hediondos e/ou equiparados, pois havia a imposição legal de cumprimento integral da pena privativa de liberdade em regime fechado pelo texto original do §1º do art. 2º da Lei 8072/90. Na prática, os magistrados que entendiam inconstitucional a norma supra, reconheciam o direito à progressão de regime para tais delitos com o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena privativa de liberdade. Ocorre que em 23 de fevereiro de 2006, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 82959/SP, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o §1º do art.2º da Lei 8072/90, por malferir o princípio da individualização da pena, que também se aplica à individualização do regime prisional.

É sabido que as decisões pretorianas influenciam o legislador, o que resultou na criação da lei 11464/2007 (29/03/2007) que introduziu quóruns diferenciados para a progressão de regime em delitos hediondos, alterando, pois, o §2º do art.2º da Lei 8072/90. A lei sobredita trouxe o quorum de 2/5 para os condenados primários e 3/5 para os reincidentes.

Em síntese, o requisito objetivo para a progressão de regime era alcançado mediante o cumprimento de frações de tempo de pena privativa de liberdade. Tínhamos a fração de 1/6 (um sexto) para os delitos comuns e hediondos (equiparados) praticados antes de 29/03/2007 (Lei 11464/2007). Após a entrada em vigor da Lei 11464/2007, passamos a ter os quóruns de 2/5 (primário) e 3/5 (reincidente) unicamente para os delitos hediondos e/ou equiparados.

Quem lida com execução penal deve ficar atento à cronologia das leis em destaque. Sabemos que a lex gravior não retroage. Logo, o tempo do crime é fundamental para saber qual lei será aplicada no caso concreto. Essa atenção deve ser redobrada após a entrada em vigor do Pacote Anticrime, pois houve um endurecimento da legislação como consectário da real individualização da pena buscada pelo legislador.

Almejamos aqui tecer observações acerca das inovações voltadas para a progressão de regime nos delitos hediondos e/ou equiparados. Após a Lei 13964/2019, afirmamos que atualmente existem as seguintes situações para aqueles que cometem delitos hediondos e/ou equiparados:

fração de 1/6: crimes praticados antes da lei 11464/2007, ou seja, antes de 29.03.2007;

fração de 2/5: primários para crimes praticados depois de 29.03/2007;

fração de 3/5: reincidentes para crimes praticados depois de 29.03.2007;

percentual de 40%: primários para crimes sem resultado morte depois de 23.01.2020

percentual de 50%: primários para crimes com resultado morte depois de 23.01.2020

percentual de 60%: reincidentes para crimes sem resultado morte depois de 23.01.2020

percentual de 70%: reincidentes para crimes com resultado morte depois de 23.01.2020

As alterações destacadas são dignas, a nosso sentir, de aplausos. A individualização da pena é preceito constitucional e o legislador buscou esse desiderato, pois é latente que delitos com resultado morte e os reincidentes devem ser tratados com mais severidade. Todavia, o ponto crucial  da reforma e que é objeto de discussões doutrinárias e jurisprudenciais diz respeito à natureza da reincidência. Em suma, para a incidência do percentual mais gravoso (60% ou 70%) basta a reincidência genérica ou se exige a reincidência específica?

A Lei nº 11.464/2007 trouxe nova redação à lei dos crimes hediondos, fazendo com que os apenados que fossem condenados por crimes hediondos ou equiparados cometidos em data posterior ao dia 28/03/2007 somente tivessem direito à progressão a regime menos gravoso após o cumprimento de 2/5 da pena, se primários, ou 3/5, se reincidentes; não trazendo redação no que se refere à especificidade dos delitos anteriormente praticados, ou seja, se cometesse crime comum, havendo o trânsito em julgado, e posteriormente cometesse crime hediondo ou equiparado, aplicar-se-ia fração mais rigorosa ao segundo delito. Exemplificando: um cidadão condenado por furto (155) e estupro (213) que era reincidente (mesmo não específico). Para o segundo delito (hediondo) deveria incidir o quórum de 3/5 (três quintos) – isso após a Lei 11464/2007 (29.03.2007). Era assente na jurisprudência a não exigência da especificidade para incidir o quórum mais gravoso atinente à reincidência.

De acordo com a nova redação do artigo 112, incisos VII e VIII, a exigência de lapso correspondente a 60%  (sessenta por cento) ou 70% (setenta por cento) da pena para progressão de regime somente se aplica ao reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado, ou seja, reincidente específico:

“Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:

(...)

VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado”;

VIII – 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional.

Analisando a legislação agora vigente, resta-nos claro que somente será considerada a porcentagem de 60% ou 70% aos reincidentes em crime hediondo ou equiparado, diferente do que trazia a Lei 11.464/07. Ou seja, parece-nos que a Lei 13964/2019 exige a reincidência específica. Quais seriam os reflexos práticos dessa exigência?

Bem, vendo a novel lei sob esse prisma, concluímos que a mesma se trata de uma lei mais benéfica (lex mellius), devendo, destarte, retroagir para se aplicar às situações anteriores à sua vigência. Na prática, implicará no agitamento de pedido de retificação dos cálculos penais em prol do executado. Se tomarmos o mesmo exemplo, ou seja, furto e estupro, com esteio no entendimento ora esposado, defendemos a aplicação do percentual de 40% (quarenta por cento) para o delito hediondo, mesmo não se tratando de apenado primário. Em suma, aplicar-se-ia o percentual de primariedade para um indivíduo reincidente. A priori, pode soar desarrazoado esse entendimento, mas é a interpretação mais favorável ao condenado face à lacuna legal. Pura aplicação do PRINCÍPIO DO FAVOR REI.

Aliás, essa é a vontade da lei, uma vez que houve revogação expressa do artigo 2º, § 2º da Lei dos Crimes Hediondos, que previa prazo mais rigoroso ao reincidente simples (2/5 para primários e 3/5 para reincidentes).

A lei não contém palavras inúteis, de modo que se revogou um dispositivo que só exigia a reincidência simples, para inserir outro que exige expressamente a reincidência específica, não há margens para interpretação diferente do que aqui se defende.

A jurisprudência nacional mais recente tem apresentado o entendimento por nós defendido, como demonstram as decisões abaixo referidas:

“RECURSO DE AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. INSURREIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PROGRESSÃO DE REGIME. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. PACOTE ANTICRIMES. LEI Nº 13.964/2019. NORMA MAIS FAVORÁVEL. RETROATIVIDADE PERMITIDA. CONDENADO NÃO REINCIDENTE ESPECÍFICO EM DELITO HEDIONDO OU EQUIPARADO. INTERPRETAÇÃO LITERAL. APLICAÇÃO DE NORMA DESFAVORÁVEL DE FORMA AMPLA. VEDAÇÃO. RECURSO MINISTERIAL DESPROVIDO.1. Ainda que a lei posterior tenha recrudescido ou agravado o tratamento para alguns delitos, como foi com a nova legislação conhecida como "Pacote Anticrime", é vedado pelo ordenamento jurídico de fazer-se interpretação ampla e desfavorável em desfavor das pessoas já sentenciadas ao amparo de preceitos e normas anteriores mais favoráveis, pois, a Lei dos Crimes Hediondos, certamente ela não é somente processual.2. Havendo previsão expressa da necessidade de cumprimento de 40% (quarenta por cento) da pena imposta pela condenação referente a crime equiparado a hediondo, caso o réu não seja, reincidente na prática de referido tipo de crime, para progredir de regime (inciso V do artigo 112 da Lei de Execuções Penais), inviável a adoção de entendimento que aplicaria a nova exigência de cumprimento de 60% (sessenta por cento), nos termos trazidos no inciso VII do mesmo regramento penal.3. Negado provimento ao recurso do Ministério Público.” (AGRAVO DE EXECUÇÃO PENAL 0707794-64.2020.8.07.0000.MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. AGRAVADO(S) RODRIGO ALVES DE SOUSA. Relator Desembargador JOÃO TIMÓTEO. Acórdão Nº 1250891. Julgado em 21/05/2020).

“AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL – CÁLCULO DE PENAS – PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL – PRETENSÃO DE ELABORAÇÃO DE NOVO CÁLCULO, SOB O FUNDAMENTO DE QUE, AUSENTE REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA, NÃO SE APLICA O LAPSO TEMPORAL DE 3/5 PARA A PROGRESSÃO – ADMISSIBILIDADE – ARTIGO 2º, § 2º, DA LEI Nº 8.072/90, REVOGADO PELA LEI Nº 13.964, DE 24 DE DEZEMBRO DE 2.019 – INAPLICABILIDADE DO INCISO VII, DO ART. 112, DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL, COM A NOVA REDAÇÃO DADA PELA NOVEL LEI, NAS HIPÓTESES EM QUE, EMBORA O APENADO SEJA REINCIDENTE, ESTEJA AUSENTE REITERAÇÃO CRIMINOSA ESPECÍFICA EM CRIME HEDIONDO – AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL ESPECÍFICA QUE DEVE SER INTERPRETADA IN BONAN PARTEM – PREVALÊNCIA DA APLICAÇÃO DO PERCENTUAL DE 40% PREVISTO NO INCISO V, DO REFERIDO ARTIGO – DECISÃO CASSADA – RECURSO PROVIDO.” (TJSP, AgEx. 0003746-49.2020.8.26.0041, Rel. Des. Amaro Thomé, 2ª Câmara de Direito Criminal, julgado em 06/05/2020).

Destacamos que o Superior Tribunal de Justiça já apresenta decisão acolhendo a tese por nós reivindicada, como abaixo demonstraremos:

“(...) não deve incidir o percentual de 60%, previsto no art. 112, VII, da LEP, introduzido pela Lei 13.964/2019, uma vez que lá o executado deve ser reincidente específico (reincidência em crime hediondo): Lei de Execuções Penais: Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos: [...] VII - 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado; Também não deve incidir a fração de 3/5, do anterior art. 2º, § 2º, da Lei de Crimes Hediondos (8.072/1990): Art. 2º [...] § 2º A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal). (Redação dada pela Lei nº 13.769, de 2018) (Revogado pela Lei nº 13.964, de 2019) Para a progressão de regime, então, em razão do crime de tráfico de drogas praticado, considerado hediondo pela Lei de Tráfico de Drogas, deve incidir a fração de 2/5 sobre a pena, acima mencionada, porque embora revogada pela nova lei (13.964/2019), é equivalente ao novo percentual (40%), previsto na Lei de Execuções Penais, introduzido pela nova lei citada. (...)” (STJ, HC nº 533.016/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, publicação em 31/03/2020.

Na doutrina parece existir uma tendência em aceitar que seria exigível a chamada reincidência específica para a aplicação do percentual maior de progressão de regime. Esta foi a posição assumida, por exemplo, pelo renomado professor e membro do Ministério Público de São Paulo, Rogério Sanches que, ao tratar da aplicação do percentual de reincidência em crimes com violência ou grave ameaça, destacou que:

O dispositivo faz referência à reincidência específica em crime com violência ou grave ameaça. Mas e se o reeducando for reincidente, mas não específico, ou seja, somente um dos crimes, passado e presente tiver sido cometido com violência ou grave ameaça? Lendo e relendo o artigo em comento, concluímos que estamos diante de uma lacuna, cuja integração, por óbvio, deverá observar o princípio do in dubio pro reo.” (CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime: Lei n. 13.964/2019 – Comentários às alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: Editora JusPodvim, 2020. p. 371.

Doutra banda, fazendo coro às vozes citadas, segue o entendimento do proficiente professor Renato Brasileiro de Lima, integrante do Ministério Público Militar, que em obra recente de sua lavra, ao analisar o reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado (art.112, VII), aduz:

“Como se pode notar, trata-se de reincidência específica em crimes dessa natureza, não necessariamente no mesmo delito, porém (v.g., estupro e estupro de vulnerável; homicídio qualificado e terrorismo, etc.). Logo, na hipótese de se tratar de apenado já condenado irrecorrivelmente por um crime qualquer (v.g., furto qualificado) que vier a cometer novo delito, desta vez hediondo ou equiparado, não se revela possível a aplicação do inciso VII do art.112, devendo ser aplicado, à semelhança do raciocínio anteriormente feito em relação ao inciso IV do art.112, o patamar previsto no inciso V, qual seja, 40% (quarenta por cento), desde que do crime hediondo (ou equiparado) em questão não tenha resultado morte, hipótese esta em que seria aplicável o percentual de 50% (cinquenta por cento) constante do art.112, VI, alínea “a”, da LEP.” (De Lima, Renato Brasileiro, PACOTE ANTICRIME, Ed, Jus Podium, p.390, 2020)

Arrematando, não poderíamos deixar de mencionar o entendimento das Varas de Execução Penal de Fortaleza. A capital alencarina conta com 4 (quatro) varas de execução penal, sendo que 2 (duas) já se manifestaram favoráveis ao nosso entendimento, outra posicionou-se contra e uma última ainda não se posicionou. Da mesma forma, ainda não tivemos manifestação do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Ceará acerca do tema levantado, mas estamos ansiosos e esperançosos de que, alfim, prevalecerá o entendimento mais favorável ao vulnerável cerceado em sua liberdade.

 

Imagem Ilustrativa do Post: justice // Foto de: AJEL // Sem alterações

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