A Prescrição Executória e a divergência jurisprudencial nos Tribunais Superiores.

10/12/2020

 Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

O Estado é o titular exclusivo do direito de punir, podendo exercê-lo sobre todas as pessoas. O cometimento de uma infração penal (crime ou contravenção) o leva a concretizar o seu ius puniendi, ou seja, a pretensão punitiva, antes abstrata e dirigida a todos, torna-se concreta e visa uma pessoa determinada.

Esse direito de punir, todavia, é limitado. O Estado encontra limites temporais, pois esse constitucional direito de punir não pode se eternizar, sob pena de fazer o ilícito penal “cair no esquecimento”. Em suma, o Estado tem o ônus de empreender todos os esforços em prol de uma célere e eficaz efetivação da punibilidade. Ante o exposto, podemos conceituar a prescrição como a perda da pretensão punitiva estatal como consectário da sua inércia durante determinado tempo previsto legalmente.

Podemos apontar como um dos fundamentos da prescrição a segurança jurídica ao responsável pela infração penal. Já salientamos que esse poder estatal não pode se eternizar e não seria justa a imposição ou execução de sanção penal muito tempo após o cometimento do ilícito. Até mesmo o autor de uma infração penal, tem o direito de se submeter a uma rápida prestação jurisdicional, pois   a perpetuação da ameaça do procedimento criminal na cabeça do infrator fere os ideais de equidade e justiça.

Acrescentamos a impertinência da sanção penal como outro fundamento do instituto da prescrição. Assim, a resposta do Estado frente ao cometimento da infração deve ser rápida. Não se intimida pela gravidade da sanção imposta, mas pela certeza de que será exercida. Queremos dizer que a função preventiva da pena somente será manifestada logo após a prática da infração penal. Cesare Beccaria, nos idos de 1764, já afirmava a importância da rápida aplicação do castigo, senão vejamos:

“É, pois, de suma importância a proximidade do delito e da pena, se se quiser que nas mentes rudes e incultas o quadro sedutor de um delito vantajoso seja imediatamente seguido da ideia associada à pena. A longa demora não produz outro efeito além de dissociar cada vez mais essas duas ideias; e ainda que o castigo de um delito cause uma impressão, será menos a de um castigo que a de um espetáculo, e isso só acontecerá após ter-se atenuado nos espectadores o horror de um certo delito em particular, que serviria para reforçar o sentimento de pena.

A ineficiência do Estado em exercer o seu ius puniendi traz uma consequência irreversível. A prescrição é causa de extinção da punibilidade prevista no art.107, IV, 1ª parte, do Diploma Repressivo Penal. É um excelente instrumento a ser exercido pela defesa, malgrado possa também ser reconhecida de ofício pelo órgão jurisdicional ou até suscitada pelo Ministério Público no gozo de seu nobre papel de fiscal da lei.

A prescrição merece uma atenção especial por parte do operador do Direito. Muitos processos criminais são extintos com fulcro no instituto em comento. A elevada demanda processual leva à morosidade da prestação jurisdicional. Uma triste realidade de âmbito nacional. A defesa, pois, deve ficar atenta a algumas informações que são cruciais na determinação da prescrição no caso concreto. Refiro-me à data da infração, idade do infrator no momento da consumação delitiva, publicação da sentença condenatória, trânsito em julgado da decisão condenatória etc.

Em síntese, temos 2 (dois) tipos de prescrição: a prescrição da pretensão punitiva e a prescrição da pretensão executória. Isso quer dizer que o Estado tem um limite temporal para proferir uma decisão condenatória e outro limite temporal para executar a pena imposta no título judicial. 

Vamos abordar a prescrição da pretensão executória no presente artigo. A nossa diária atuação na execução penal nos leva a trazer à tona a divergência de entendimento reinante entre os Tribunais Superiores e esperamos, alfim, que haja uma pacificação pretoriana ad futurum em prol da segurança jurídica que deve preponderar nos processos judiciais que lidam com a liberdade dos jurisdicionados.

Aduz o art.110, caput, do Código Substantivo Penal que depois de transitar em julgado a sentença penal condenatória, a prescrição será regulada pelos prazos do art.109 do mesmo diploma legal, senão vejamos:

Art. 110 - A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.  (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parece-nos que a norma supra traz em seu bojo a prescrição da pretensão executória. Quando menciona “depois de transitar em julgado a sentença condenatória” só pode se referir a essa modalidade de prescrição. Vozes na doutrina têm o mesmo entendimento. Vejamos o que Delmanto e Delmanto Junior (2016, pág.401) diz sobre a norma em destaque:

“O conteúdo do art. 110 do CP: Este dispositivo contém, na verdade, três formas distintas de prescrição: 1ª No caput, disciplina a prescrição da chamada pretensão executória (ou “da condenação”)”

Não resta dúvidas de que estamos lidando com a prescrição da pretensão executória. Não encontramos relutância doutrinaria e/ou jurisprudencial em reconhecer o instituto no artigo transcrito. O objeto de divergência entre os Tribunais Superiores é o termo inicial da contagem do prazo da prescrição executória e transcrevemos o art.112, I do Código Penal para apontarmos o ponto dissonante. Segue, ipsis literis, a norma em alusão:

Termo inicial da prescrição após a sentença condenatória irrecorrível

Art. 112 - No caso do art. 110 deste Código, a prescrição começa a correr: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I - do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

 

A norma expressamente determina que o prazo da prescrição começa a correr do dia em que transita em julgado a sentença condenatória para a acusação. Foi sábio o legislador infraconstitucional, uma vez que a pena imposta na condenação não poderá ser alterada em desfavor do condenado, via  recurso, após o trânsito em julgado para a condenação. Sobre o prazo inicial da pretensão executória Delmanto Delmanto e Delemanto Júnior (2016, p.413) defende:

Trânsito em julgado para a acusação: A partir da data em que a sentença condenatória passa em julgado para a acusação, já se inicia a contagem da prescrição da pretensão executória. Exemplo: condenado o réu e transitada a sentença para a acusação em uma data, o acusado só vem a ser dela intimado três meses depois e não apela. Embora a sentença condenatória só se tenha tornado definitiva nesta última data (com o trânsito para ambas as partes), a contagem do prazo prescricional se faz a partir daquele momento anterior em que a condenação transitara em julgado para a acusação.

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu em 06/10/2020 que o termo inicial da contagem do prazo da prescrição executória é a data do trânsito em julgado para a acusação, e não para ambas as partes, prevalecendo a interpretação literal mais benéfica ao condenado. A decisão (AgInt no REsp 1883145/PR) teve como relator o ministro Reynaldo Soares da Fonseca e segue abaixo ementa do decisum:

Ementa

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. FATOS PRATICADOS ANTES DA ALTERAÇÃO LEGISLATIVA INTRODUZIDA PELA LEI N. 11.596/2007. INAPLICABILIDADE DO ENTENDIMENTO PACIFICADO PELO STF, NO JULGAMENTO DO HC 176.473/RR. ACÓRDÃO CONFIRMATÓRIO DA SENTENÇA QUE NÃO INTERROMPE, IN CASU, O CURSO DO PRAZO PRESCRICIONAL. MARCO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO PARA A ACUSAÇÃO. ART. 112, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. AGRAVO NÃO PROVIDO.  (AgInt no REsp 1883145/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2020, DJe 15/10/2020)  

Seguem outras decisões do Tribunal da Cidadania:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA PARA A ACUSAÇÃO. JURISPRUDÊNCIA MAJORITÁRIA DESTE SUPERIOR TRIBUNAL. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. No âmbito infraconstitucional, enquanto não modificada, ou não, a interpretação do art. 112, I, do CP à luz do art. 5°, II e LVII, da CF, prevalece neste Superior Tribunal o entendimento de que o termo inicial para a contagem do prazo prescricional da pretensão executória é o trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação. 2. Agravo regimental não provido. AgRg no HC 512535 / MS
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS
2019/0152254-8. Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ (1158). Órgão Julgador: T6 - SEXTA TURMA. Data do julgamento: 26/11/2019. Data da publicação: DJe 02/12/2019.

EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, INCISO I, DA LEI N. 8.137/1990. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO PARA A ACUSAÇÃO. DESNECESSIDADE DE CONCOMITANTE TRÂNSITO PARA A DEFESA. PRECEDENTES. I - Esta Corte Superior de Justiça sedimentou entendimento no sentido de que "conforme disposto expressamente no art. 112, I, do CP, o termo inicial da contagem do prazo da prescrição executória é a data do trânsito em julgado para a acusação, e não para ambas as partes, prevalecendo a interpretação literal mais benéfica ao condenado." (AgRg nosEAREsp 908.359/MG, Terceira Seção, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, DJe de 02/10/2018).II - Nos termos do art. 110, caput, do Código Penal, a prescrição depois do trânsito em julgado da sentença condenatória é regulada pela pena aplicada. Considerando a sanção cominada de 2 (dois) anos de reclusão, substituída por duas penas restritivas de direito; e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, a prescrição ocorre em 4 (quatro) anos, nos termos do art.109, inciso V, do Código Penal. III - Na hipótese dos autos, a sentença condenatória transitou em julgado para o Ministério Público estadual em 23/10/2013, assim, o início da execução da pena deveria ter ocorrido até22/10/2017.Agravo regimental desprovido.(STJ - AgRg no REsp 1792842 / PR - 2019/0021031-2, Quinta Turma, Relator: Ministro Felix Fischer, Data do Julgamento: 26/03/2019, Data Publicação: 01/04/2019 DJe).

Acontece que o Supremo Tribunal Federal adotou entendimento diverso, embora seja uma decisão isolada e que não tem efeito vinculante. O ministro Luis Fux, relator no RE 696533 – SC, exarou o entendimento de que a contagem do prazo da prescrição da pretensão executória inicia-se após o trânsito em julgado para ambas as partes. Segue ementa da decisão:

A prescrição da pretensão executória pressupõe a inércia do titular do direito de punir. Se o seu titular se encontrava impossibilitado de exercê-lo em razão do entendimento anterior do Supremo Tribunal Federal que vedava a execução provisória da pena, não há falar-se em inércia do titular da pretensão executória. 2. O entendimento defensivo de que a prescrição da pretensão executória se inicia com o trânsito em julgado para a acusação viola o direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição, que pressupõe a existência de uma tutela jurisdicional efetiva, ou melhor, uma justiça efetiva. 3. A verificação, em concreto, de manobras procrastinatórias, como sucessiva oposição de embargos de declaração e a renúncia do recorrente ao cargo de prefeito que ocupava, apenas reforça a ideia de que é absolutamente desarrazoada a tese de que o início da contagem do prazo prescricional deve se dar a partir do trânsito em julgado para a acusação. Em verdade, tal entendimento apenas fomenta a interposição de recursos com fim meramente procrastinatório, frustrando a efetividade da jurisdição penal. 4. Desse modo, se não houve ainda o trânsito em julgado para ambas as partes, não há falar-se em prescrição da pretensão executória.
[
RE 696.533, rel. min. Luiz Fux, red. p/ ac. min. Roberto Barroso, 1ª T, j. 6-2-2018, DJE41 de 5-3-2018.]  

O atual presidente da Corte Constitucional fundamentou seu voto, à época, na inafastabilidade da jurisdição, devendo esta se sobrepor às manobras procrastinatórias engendradas pela defesa no curso do rito processual. Com a devida vênia, ousamos discordar do entendimento esposado pelo preclaro ministro, pois, além de ferir a norma infraconstitucional e nitidamente prejudicial ao condenado cerceado em sua liberdade.

Em Fortaleza, onde exerço a minha atribuição como defensor público titular da 1ª Defensoria Pública de Execução Penal, posso testemunhar que as unidades judiciais de Execução Penal (1ª, 2ª, 3ª, 4ª Varas de Execução Penal e Vara de Penas Alternativas) abraçam o posicionamento mais favorável ao executado (STJ), embora haja discordância de alguns membros do Ministério Público que insistem na tese defendida pelo Supremo Tribunal Federal.

Por fim, é inconteste que a prescrição é um instrumento salutar e de grande serventia para os advogados e defensores públicos na defesa de seus clientes e defensorados. Resta-nos rogar para que haja uma definição acerca do marco inicial do prazo prescricional, sob pena de se eternizar uma insegurança jurídica nociva e desnecessária.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações

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