O Supremo Tribunal Federal vai decidir se é do Superior Tribunal de Justiça a competência para processar e julgar desembargador de Tribunal de Justiça por crime comum, ou seja, sem relação com o cargo ocupado. Neste sentido, e por unanimidade, foi reconhecida a existência de repercussão geral (Tema 1147) da matéria discutida no Recurso Extraordinário com Agravo 1223589, reautuado como Recurso Extraordinário 1331044, interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que reconheceu sua competência originária para analisar uma ação penal em que um desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná foi denunciado por lesões corporais.
Segundo o Ministério Público, a Suprema Corte, na Ação Penal 937, limitou o foro por prerrogativa de função dos parlamentares aos crimes cometidos no exercício da atividade, entendimento, segundo consta do recurso, que foi estendido pela Primeira Turma a qualquer cargo dos três Poderes com previsão de foro especial. Já para a defesa, o julgamento da ação penal contra um desembargador por um juiz de primeiro grau contraria a independência do Judiciário, sendo impertinente a aplicação aos membros da magistratura do entendimento estabelecido na Ação Penal 937.
De acordo com a decisão que reconheceu a repercussão geral do tema, a questão tem envergadura constitucional, consistindo-se em decidir se cabe ao Superior Tribunal de Justiça, a partir do artigo 105, inciso I, alínea “a”, da Constituição Federal, processar e julgar desembargador por crime comum, ainda que sem relação com o cargo.[1]
Pois bem.
Como se sabe, antes mesmo do julgamento definitivo da Ação Penal 937, o ministro Luís Roberto Barroso encaminhou ao plenário, no dia 16 de fevereiro de 2017, o julgamento da referida ação penal, na qual um ex-deputado federal, que havia renunciado ao mandato para assumir a prefeitura de um município do Estado do Rio de Janeiro, respondia pela prática de um crime eleitoral. Segundo afirmou o relator, à época, “as diversas declinações de competência estão prestes a gerar a prescrição pela pena provável, de modo a frustrar a realização da justiça”, salientando que “o sistema é feito para não funcionar” e o caso revelava “a disfuncionalidade prática do regime de foro”, razão pela qual acreditava “ser necessário repensar a questão quanto à prerrogativa.” Para ele, havia “problemas associados à morosidade, à impunidade e à impropriedade de uma Suprema Corte ocupar-se como primeira instância de centenas de processos criminais.”
Ao encaminhar o julgamento do processo para o plenário, por meio de questão de ordem, o relator sugeriu a análise da possiblidade de conferir interpretação restritiva às normas da Constituição que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função, de modo a limitar tais competências jurisdicionais aos crimes cometidos em razão do ofício e que digam respeito estritamente ao desempenho daquele cargo.
Já em plenário, no início da sessão de julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso reafirmou que o foro deveria se aplicar apenas a crimes cometidos durante o exercício do cargo, e relacionado à função desempenhada, tornando-se definitiva após o final da instrução; a partir dessa fase processual, a competência para julgar o caso não seria mais afetada por eventual mudança no cargo ocupado pelo agente público. O voto baseou-se no entendimento de que a atuação criminal originária ampla do Supremo Tribunal Federal “tornou-se contraproducente em razão do grande volume de processos e da pouca vocação da sua estrutura para atuar na área, o que levava à demora nos julgamentos, à prescrição, criando um obstáculo à atuação do Supremo como corte constitucional.”
Para ele, “os procedimentos que regem o funcionamento do Tribunal são mais complexos do que os utilizados pela primeira instância, o que pode levar à demora nos julgamentos e à prescrição das penas”, ressaltando “que o objetivo do foro é proteger o cargo e garantir a autonomia de seu exercício, portanto, não fazia sentido atribuir a proteção prevista constitucionalmente ao indivíduo que o ocupa. Assim, devem-se excluir dos atos amparados pela regra aqueles sem relação com o cargo.”
O julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, tendo antecipado os votos o ministro Marco Aurélio (hoje aposentado) e as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia, todos acompanhando o relator. Na retomada do julgamento, o ministro Alexandre de Moraes divergiu parcialmente do relator, pois “o foro deve valer para crimes praticados no exercício do cargo, mas alcançando todas as infrações penais comuns, independentemente de se relacionaram ou não com as funções do mandato”, tendo acompanhado o relator na parte que fixava o foro no STF apenas para os crimes praticados no exercício do cargo, após a diplomação, valendo até o final do mandato ou da instrução processual.
Mai uma vez o julgamento foi suspenso, agora com um pedido de vista do ministro Dias Toffoli, tendo adiantado seus votos os ministros Edson Fachin, Celso de Mello (também já aposentado) e Luiz Fux, todos acompanhando integralmente o voto do relator. Na sessão do dia 02 de maio de 2018 foi reiniciado o julgamento, quando votaram os ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski; até aquele momento, portanto, dez ministros haviam proferido votos na matéria: sete no sentido de que o foro se aplicava apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas, e três assentando que o foro deveria valer para crimes praticados no exercício do cargo, mas alcançando todas as infrações penais comuns, independentemente de se relacionaram ou não com as funções públicas.
Nesta sessão do dia 02 de maio de 2018, o ministro Dias Toffoli acompanhou o voto do ministro Alexandre de Moraes, ressaltando que “restringir o foro por prerrogativa de função a crimes praticados no exercício do cargo e em razão dele colidia com a norma constitucional. A Constituição Federal não faz distinção entre crimes anteriores ao mandato e os praticados durante seu exercício. Enquanto o parlamentar estiver no mandato, segundo ele, a Constituição Federal diz que cabe ao Supremo Tribunal Federal seu julgamento. Uma vez que nem o constituinte originário nem o reformador, que aprovou a EC 35/2001, optaram por restringir o foro por prerrogativa de função, não caberia ao STF, guardião da Carta, fazer essa interpretação restritiva.”
Nada obstante, levando-se em consideração a maioria já formada no julgamento pela restrição proposta pelo relator, o ministro posicionou-se no sentido de acompanhar a tese levantada pelo ministro Alexandre de Moraes, evitando-se “dúvidas e questionamentos, ao atrair para o Supremo Tribunal Federal crimes de qualquer natureza cometidos após a diplomação.” Segundo ele, o critério da natureza do crime, se ligado ou não ao mandato, dá margem a diversas dúvidas.”
Quanto ao termo final da prorrogação da competência, ele entendeu “que após encerrada a fase de produção de provas – conforme artigo 10 da Lei 8.038/1990 – com a intimação das partes para apresentação de alegações finais, eventual renúncia ou cessação do mandato não mais será capaz de alterar a competência do Supremo para julgar o caso.”
Já o ministro Ricardo Lewandowski, apesar de ter posição contrária à restrição do alcance do foro, também aderiu à divergência parcial aberta pelo ministro Alexandre de Moraes, no sentido de excluir da regra do foro por prerrogativa de função a apuração de crimes praticados antes da diplomação do parlamentar. Segundo ele, “a solução protege o parlamentar de ação judicial de natureza temerária que possa afetar o pleno exercício do mandato”, afirmando que, relativamente ao marco final para a manutenção da competência, ele se pronunciaria “ao final do julgamento, levando em consideração as posições apresentadas no Plenário, visando estabelecer o momento de forma mais precisa e com segurança.”
Em razão do horário, a sessão mais uma vez não foi concluída, faltando apenas o voto do ministro Gilmar Mendes; finalmente, no dia 03 de maio de 2018, o STF chegou ao final do julgamento, e logo no início da sessão o ministro Dias Toffoli apresentou um reajuste no voto proferido no dia anterior, dando maior extensão à matéria e fixando também a competência de foro para os demais cargos, exclusivamente para crimes praticados após a diplomação ou a nomeação (conforme o caso), independentemente de sua relação ou não com a função pública em questão.
Assim, segundo ele, “a decisão do Supremo atingiria um número muito expressivo de casos relativos a Prefeitos que são julgados, por força da Constituição, perante os Tribunais de Justiça, tanto quanto a crimes cometidos após a diplomação quanto a crimes cometidos antes da diplomação”, obrigando todos “os que respondem a processos perante os Tribunais de Justiça por crimes anteriores à diplomação, tivessem seus processos remetidos, de imediato, à primeira instância.”
Propôs, ademais, que se reconhecesse “a inconstitucionalidade de todas as normas previstas em constituições estaduais, bem como na Lei Orgânica do Distrito Federal, que contemplem hipóteses de prerrogativa de foro não previstas expressamente na Constituição Federal, vedada a invocação da simetria”, pois “só a União pode legislar sobre matéria penal e processual penal. Nestes casos, os processos deverão ser remetidos ao juízo de primeira instância competente, independentemente da fase em que se encontram.”
Este entendimento foi encampado pelo ministro Gilmar Mendes, último a votar; ao final, proclamado o resultado, assim ficou decidida a matéria:
a) o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas;
b) após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais (prazo estabelecido no artigo 11 da Lei 8.034/90), a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo, ocorrendo, portanto, uma perpetuatio jurisdictionis;
c) este entendimento aplicar-se-á a todos os processos pendentes no Supremo Tribunal Federal, por se tratar de uma regra fixadora da competência;
d) a decisão não abrangeria toda e qualquer ação penal originária cujo réu tenha prerrogativa de foro, mas, tão somente, os parlamentares federais (deputados federais e senadores).
Assim, prefeitos, governadores, deputados estaduais, magistrados, membros do Ministério Público, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas, etc., continuariam a ter tal prerrogativa (inclusive na fase investigatória criminal), ainda que tivessem praticado crimes anteriormente ao exercício do cargo ou da função pública, e ainda que tais delitos não estivessem relacionados às respectivas funções, ferindo, obviamente, o princípio da isonomia. Portanto, continuavam tendo foro por prerrogativa de função milhares e milhares de ocupantes de cargos e funções públicas, inclusive os magistrados e os membros do Ministério Público.
Porém, após a decisão da Suprema Corte, aquele entendimento acabou por atingir as ações penais originárias que estavam em trâmite no Superior Tribunal de Justiça e nos tribunais locais. Neste sentido, por exemplo, recorda-se a decisão do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão, que aplicou o princípio da simetria para determinar a remessa à Justiça da Paraíba de uma ação penal contra o governador do Estado, por supostos crimes praticados antes de assumir o cargo. Na sua decisão, o relator explicou que, “ao limitar o foro e estabelecer as hipóteses de exceção, o Supremo Tribunal Federal entendeu que seria necessária a adoção de interpretação restrita das competências constitucionais” e que “o princípio da simetria obriga os estados a se organizar de forma simétrica à prevista para a União.”
Assim, segundo ele, “a mesma lógica deve ser aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça em relação às pessoas detentoras de mandato eletivo com prerrogativa de foro perante ele.” No caso concreto (Ação Penal 866), a denúncia contra o governador imputava-lhe a suposta prática de crimes de responsabilidade ocorridos em 2010, quando ainda exercia o cargo de prefeito de João Pessoa (crimes tipificados no Decreto-Lei 201/67); eram, portanto, delitos que não guardavam relação com o exercício do atual mandato, nem foram praticados como governador.
Dessa maneira, “reconhecida a inaplicabilidade da regra constitucional de prerrogativa de foro ao presente caso, por aplicação do princípio da simetria e em consonância com a decisão da Suprema Corte”, foi determinada a remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, para distribuição a uma das varas criminais da capital.
Tais decisões foram coerentes com o entendimento sufragado pela Suprema Corte, pois não faz nenhum sentido, do ponto de vista jurídico-constitucional, e à luz dos princípios da simetria e da isonomia, que seja dado um tratamento diverso aos demais ocupantes de cargos e funções públicas, restringindo-se a decisão do Supremo Tribunal Federal apenas aos deputados federais e aos senadores da República.
Obviamente, sob pena de serem tratados de forma diversa casos rigorosamente iguais (o que seria inconstitucional), que as decisões da Suprema Corte e as do STJ devem se aplicar não somente ao parlamentares federais, mas também aos prefeitos, governadores, deputados estaduais, magistrados, membros do Ministério Público, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas, membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, desde que, por evidente, tenham praticado crimes anteriormente ao exercício do cargo ou da função pública, e que tais delitos não estejam relacionados às respectivas funções.
A prevalecer entendimento diverso, continuariam tendo foro por prerrogativa de função, como dito acima, milhares e milhares de ocupantes de cargos e funções públicas, inclusive os magistrados e os membros do Ministério Público.[2]
Portanto, e para concluir, é preciso que a Suprema Corte, estendendo o seu entendimento já pacificado em relação à competência por prerrogativa de foro (seguido pelos tribunais do país, inclusive pela Corte Superior) decida que também ele é válido quando se tratar de acusado membro da magistratura e (também) do Ministério Público, não sendo óbice a este entendimento a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35/79), cujas disposições (nem todas) foram recepcionadas pela nova ordem constitucional, tampouco sendo pertinente falar-se em qualquer tipo de mácula à independência do Poder Judiciário.
Notas e Referências
[1] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=469430&tip=UN. Acesso em 19 de julho de 2021.
[2] Seguindo este novo entendimento, o Desembargador Fausto De Sanctis, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, declinou da competência de julgar a ação penal contra um Prefeito Municipal porque o crime do qual ele é acusado supostamente aconteceu em 2008 e ele foi eleito em 2016. Segundo ele, “é inadequado que TRF-3 conduza apurações para as quais o entendimento acerca do foro por prerrogativa de função não se aplicam.” Para ele, “levando-se em consideração os novos fundamentos interpretativos que devem balizar o entendimento do foro por prerrogativa de função a partir do julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937 pelo STF na justa medida em que o delito em tese imputado ao detentor de cargo público não foi levado a efeito durante o exercício do atual cargo e, concomitantemente, de forma relacionada com as presentes funções desempenhadas (requisitos cumulativos para que haja a prevalência da competência originária do Tribunal).” O Desembargador “ressaltou ainda que é inadequado que o tribunal continue a conduzir apurações e ações penais para as quais o entendimento acerca do foro por prerrogativa de função evidencia ser desprezível", devendo-se “levar em conta a aplicação dos princípios constitucionais da eficiência, da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da Justiça social.” (Fonte: Assessoria de Imprensa do TRF-3, Processo nº. 0003744-10.2011.4.03.6107/SP).
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