A praga de Rafael – Parte II: o Estado te esmaga – Por André Sampaio

03/09/2017

Leia também a Parte I

A presente coluna dá continuidade à série dedicada à análise crítica do caso de Rafael Braga Vieira, condenado a 5 anos de reclusão pelo porte de dois frascos de produtos de limpeza, avaliados pela perícia como de ínfimo potencial explosivo. O crime, tipificado no parágrafo único do artigo 16 da Lei de Armas de Fogo, prevê pena variável de 3 a 6 anos, tendo Rafael sido condenado próximo ao teto, por quê? Simples: reincidência.

Rafael já tinha sido condenado por dois crimes contra o patrimônio em contexto de ausência de violência física. Não interessa. A reincidência sobrecodifica o sujeito, provocando uma segunda marcação em sua pele já codificada por sua negritude. Ela opera duplamente, como uma espécie de arauto da evidência – “se o réu é reincidente é porque provavelmente foi ele, afinal pau que nasce torto...” – e como mecanismo de intensificação da dor (pena) retroalimentada pela deficiência institucional.

Explico. O dever da “ressocialização” (sim, há quem ainda acredite nela) é uma autoimposição estatal; em outras palavras, o Estado se proclama responsável por “ressocializar” quaisquer condenados que atravesse as etapas penais dispostas previamente em lei. Rafael o fez, mas se por ventura tal efeito não for percebido a culpa é de quem? Ora, do Rafael, claro! Afinal o Estado fornece todos os meios institucionais para que ele pudesse ter se “endireitado”! Obviamente que não.

Acho que posso me furtar de relatar o extenso rol de mazelas que acomete o sistema prisional brasileiro, tornando a tarefa de “docilização do corpo” do preso algo de fantasioso, para ser lacônico. A prisão menos do que “ressocializar” contribui para “socializar” o preso no regime de ilegalidades preferencial do sistema de justiça criminal brasileiro. Vale ressaltar que tal regime se opera por baixo, a partir de outro mais profundo, subjacente; um regime de ilegalidades menos jurídicas do que morais que serve de lastro para a seletividade de certas condutas em detrimento de outras.

A complementação dessa distopia surge com o próprio modo de executar a pena privativa de liberdade: um regime que se apresenta como “progressivo” – regime fechado, depois semiaberto e por fim aberto – se realiza por saltos: fechado e depois um arremedo de semiaberto: o detento passa o dia trabalhando e/ou estudando e retorna para recolhimento noturno no próprio estabelecimento prisional.

Nessa senda, Rafael, que já se encontrava devidamente empregado, ao regressar para seu recolhimento noturno “posara” para uma foto encostado no muro do próprio presídio, no qual constava a mensagem: “você só olha da esquerda p/ direita, o Estado te esmaga de cima p/ baixo!!!”. “Muro branco, buraco negro”, não cansam de repetir Deleuze e Guattari. O muro branco da inscrição, o buraco negro da captação. Sobrecodificado em sua pele, Rafael foi novamente capturado pelo buraco negro do fascismo institucional, que “não gostou de Rafael não ter gostado” do tratamento que lhe fora dispensado pelo Estado. Sim, isso mesmo, o poder disciplinar precisa moldar corpos e mentes...

A indignação presente na pose – visto que nem a pichação e nem a postagem da foto foram atribuídas a Rafael – bastou para que a máquina estatal paranoica pusesse em curso o teratológico procedimento de apuração de falta grave por parte do reeducando, eufemismo cínico amplamente difundido institucionalmente. Assim, em um procedimento de verve kafkiana, surge a (sobre)condenação: 10 dias na “solitária”, a prisão dentro da prisão, uma espécie de “inception” prisional que em muitas das vezes consegue sobrepujar as violações a direitos humanos encontradas no cárcere.

Há registros de “solitárias” sem que haja ao menos um sanitário para que o preso deposite seus excrementos, de modo que ele próprio precise recolher (muitas vezes com as próprias mãos!) seus dejetos para fora, em um processo de desumanização que faria com que qualquer um que fosse submetido a essa “sanção” preferisse inquestionavelmente ser tratado como um animal de zoológico.

É no mínimo curioso que tantos dispositivos fascistas possam coexistir em uma democracia liberal por tantos anos; parece-me que a única forma de encarar isso é que eles fazem parte da própria democracia liberal, é seu sintoma lacaniano, sempre vindo à tona mesmo que sublimado. É o sustentáculo de nossa “democracia”, sempre alimentado pelos grafados pela vulnerabilidade social.

E, assim, pro inferno Rafael foi pela segunda vez. Com o fascismo a democracia se casou e um filho nela ele fez: a máquina de guerra estatal o recaptura, porém não pela última vez...


Imagem Ilustrativa do Post: lemme outta here // Foto de: sean hobson // Sem alterações

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