A praga de Rafael – Parte I: “Ah, cara, você tá com coquetel molotov? Você tá ferrado, neguinho” – Por André Sampaio

13/08/2017

Leia também a Parte II

Em 2013 o “gigante” tinha acordado. O que surgiu a partir de uma reivindicação aparentemente pequena se intensificou para uma multiplicidade de pautas: transporte público, educação, saúde, emprego... Tantas questões que inelutavelmente denotavam uma insatisfação generalizada a toda a classe política. Esta, acuada, fazia emergir o paradoxo das democracias liberais modernas: é o kratos (poder) sem o demos (povo), ou, em outras palavras, é aquele regime de governo no qual o povo precisa crer que dele emana todo o poder político, quando na verdade sua participação efetiva é vista como ameaça à governamentalidade obnubiladora da kratos com o ploutos (riqueza).

Muito curioso que um regime que de modo tão poético empodera o povo politicamente entre em polvorosa quando este realiza uma “passagem ao ato”. O medo começa a brotar homeopaticamente das fissuras do sistema e este não hesita em lançar mão de sua cooptada máquina de guerra para manter a “ordem pública”, ou seja, para que ploutos seja novamente travestido de demos, ao menos desde uma perspectiva simbólica. A maquinaria, por sua vez, não vem só. Com ela seus dispositivos de poder são postos em curso, dentre eles, a pena.[1]

Com o espetáculo já montado, eis que quase que despercebido, passeando à margem do (pseudo)[2] acontecimento político, surge Rafael Braga Vieira, que, parafraseando Gabriel Garcia Marques, tinha por vezes o dom de fingir que não existia; para sua tristeza existiu quando não deveria. Catador de lixo, não sabia sequer definir o que aquele mundaréu de gente reivindicava, só se apercebeu de duas garrafas, ainda lacradas, uma de desinfetante e outra de água sanitária, e deve ter acreditado, ao menos por certo espaço de tempo, que seria um dia produtivo em sua atividade extrativa. Sentimento este que não teve a oportunidade de durar, já que logo após foi abordado por policiais que patrulhavam as manifestações.

A partir de então as versões se bifurcam. Para os policiais, tratava-se de um delinquente portando dois coquetéis molotov, para Rafael, as garrafas originalmente lacradas lhe reapareciam abertas, pela metade, com um pedaço de pano no gargalo, diferentemente de como lhe foram apreendidas. O que pode ser destacado dessa colisão de versões é que mesmo diante da adesão à tese da polícia a perícia atestara que o material apreendido apresentava “ínfima aptidão para funcionar como ‘coquetel molotov’”, em virtude de se encontrar em garrafa plástica, isto é, “com mínima possibilidade de quebra que possibilitaria o espalhamento do seu conteúdo inflamável e contato com a chama da mecha ignotora, o qual provocaria incêndio”.

Entretanto, tal conclusão não foi suficiente para que o juiz Guilherme Schilling Pollo Duarte, da 32ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, condenasse Rafael pela conduta descrita no inciso III do artigo 16 da Lei 10.826, que dispõe que na mesma pena do crime de posse ou porte ilegal e arma de fogo de uso restrito incorre aquele que “possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Falemos então sobre a decisão.

Toda decisão penal se edifica sobre a reconstrução do acontecimento, ou seja, sobre a produção do simulacro que será objeto da apreciação judicial (sim, que fique claro, a verdade não é alcançada, mas apenas serve de parâmetro para a construção do simulacro). Por sua vez, esse processo se dá por meio de uma espécie de dot-to-dot puzzle, um jogo de pontilhados, onde cada elemento de prova opera como um “dot” a ser ligado a outro nesse “puzzle”, cujo entrecaminho se encontra inelutavelmente aberto a preenchimento – espaço constantemente ameaçado de ser colonizado por “operadores de contágio”, nos termos expostos por Rui Cunha Martins.[3]

Crença, convicção, adesão, convencimento, confiança, operadores que se interligam no circuito da atividade probatória, com a pulsão da evidência sempre à espreita. Ou seja, o jogo de pontilhados traz intrinsecamente o constante risco de ser completado pela “razoabilidade” judicial, ou ainda, objetivamente: pelo que o juiz acha. A conclusão inexorável é que quanto mais “dots”, menos preenchimento, porém, primeiro, nunca haverá tantos “dots” à disposição ao ponto de que em vez de se fornecer um jogo se apresente um desenho acabado e, em segundo lugar, o próprio pontilhado está sujeito a outro jogo subjacente, cujos principais elementos são o erro e a falsificação.

Voltando a Rafael, os pontilhados são garrafas de produto de limpeza e depoimentos policiais, jogo ralo que por si só possibilita os mais variáveis tracejados. Por outro lado, garrafas lacradas de pinho sol e água sanitária ou garrafas com misturas combustíveis e um retalho de pano no gargalo? Aqui funcionam os processos de valoração e de preenchimento: o juiz decidirá o que elas serão (com base no sentir?) e que papel representarão nesse cenário, processos nos quais um elemento cumpre um papel especial: a reincidência.

Sim, Rafael Braga possuía dois crimes contra o patrimônio em sua “ficha”[4] – nome singelo para a captação da subjetividade por critérios burocráticos. A reincidência é o elemento preferido do Judiciário para o preenchimento de lacunas factuais, “na dúvida, condene se for reincidente”. Assim, mesmo não tendo nenhum indício de engajamento político do réu, ainda que a própria perícia tenha concluído pelo ínfimo potencial do produto apreendido para ser utilizado como explosivo, tendo como registros de memória social do acontecimento apenas os depoimentos policiais, a reincidência irrompe como o preenchimento por excelência.

Não, leitor, não estou me esquecendo dos marcadores raciais e classistas, apenas os reservei para o final, para figurarem com a “cereja” do bolo de excrescências apresentado. Sabemos que houve diversos momentos de depredação em quase todas as manifestações das jornadas de 2013 e ser Rafael Braga o único que fora de fato condenado, ainda mais nas circunstâncias aqui presentadas, é por si só sintomático da questão racial e classista que atravessa todo o nosso aparelho de “justiça”.

Quando os dez policiais abordaram Rafael, segundo ele, disseram: "Vêm cá, ô moleque. Aí neguinho... ô moleque. O que você tem aí? Ah, cara, você tá com coquetel molotov? Você tá ferrado, neguinho". Enganavam-se os policiais. Não, ele não estava “ferrado” pelo suposto coquetel, ele nasceu ferrado, nasceu ferrado pela cor e por não pertencer à classe dos consumidores bem sucedidos; nasceu marcado pelos ferros quentes de uma sociedade patológica.

Mas em um ponto os policiais mesmo inconscientemente acertaram, a via crucis de Rafael estava apenas começando...


Notas e Referências:

[1] AMARAL, Augusto Jobim do. Para um discurso jurídico-penal libertário. Cadernos IHU ideias. Ano II, n. 184, 2013.

[2] Não pretendo aqui minar a relevância da mobilização política, muito pelo contrário. Pretendo com esta provocação incitar a força popular previamente demonstrada para se alçar a um verdadeiro acontecimento, pelo menos desde a perspectiva de Alain Badiou, para quem o verdadeiro acontecimento corresponde à ruptura no estado das coisas com o condão de constituir um sujeito e um processo de verdade que não podem ser compreendidos pelas categorias dos saberes que antecedem à situação. Para mais detalhes, cf. ZIZEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2016.

[3] MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: The Brazilian lessons. 3ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2013.

[4] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140620_salasocial_morador_rua_preso_produtos_limpeza_um_ano_rs , acesso em 11 de agosto de 2017.


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