A PENA E O CRIME DE IMPORTAÇÃO DE MEDICAMENTOS SEM REGISTRO NA ANVISA – A RECENTE POSIÇÃO DO STF    

29/03/2021

O Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional, em razão da desproporcionalidade da pena, o dispositivo do Código Penal que previa punição de 10 a 15 anos para o crime de importação de medicamento sem o respectivo registro sanitário; a decisão deu-se no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 979962, e na sessão realizada no último dia 24 de março.

Na oportunidade, o Pleno restabeleceu a redação anterior do art. 273, § 1º-B, I, do Código Penal (na parte que previa a pena de 1 a 3 anos de reclusão), ressalvando-se expressamente no julgamento que a decisão era válida apenas para os crimes de importação de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

No caso julgado, com repercussão geral reconhecida, o réu houvera sido condenado em primeira instância por ter importado irregularmente e comercializado um medicamento sem registro na ANVISA; ele tinha comércio de medicamentos e não conseguiu a permissão para a importação por não ter renovado sua autorização de funcionamento.

Na apelação, o Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, reconhecendo que a pena prevista violava o princípio da proporcionalidade, manteve a sentença, aplicando-se-lhe, no entanto, a pena prevista no art. 33 da Lei nº. 11.343/2006 (tráfico de drogas).

No recurso extraordinário, entendeu-se que era desproporcional a pena prevista no referido tipo penal, pois equiparável, por exemplo, aos delitos de estupro de vulnerável, extorsão mediante sequestro e tortura seguida de morte. Assim, os Ministros Luís Roberto Barroso (relator), Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Nunes Marques e Luiz Fux e as Ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber votaram pela inconstitucionalidade do dispositivo, repristinando-se a pena prevista na redação original daquele dispositivo, ou seja, entre de 1 a 3 anos.

Finalmente, consignou-se a tese de repercussão geral nos seguintes termos: “É inconstitucional a aplicação do preceito secundário do artigo 273 do Código Penal, com a redação dada pela Lei 9.677/1998 - reclusão de 10 a 15 anos - à hipótese prevista no seu parágrafo 1º-B, inciso I, que versa sobre a importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária. Para esta situação específica, fica repristinado o preceito secundário do artigo 273, na redação originária - reclusão de um a três anos e multa.” (Tema 1003).[1]

Pois bem.

A decisão da Corte foi, sem dúvidas, acertada, pois quando da alteração feita no art. 273 do Código Penal pela Lei nº. 9.677/98, efetivamente, não foi observado, dentre outros (como veremos), o princípio da proporcionalidade, afinal “um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção do fim com o grau de intensidade da restrição dos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a importância do fim não justificar a intensidade da restrição dos direitos fundamentais.”[2]

Aliás, antes mesmo de invocar o princípio da proporcionalidade, uma tal penal – desproporcionalmente cominada abstratamente – viola o próprio princípio da dignidade da pessoa humana, “fonte ética para os direitos, as liberdades e as garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais”[3], considerando-se-lhe como “um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.”[4]

Para Zisman, “a consciência da dignidade do homem, a evolução da humanidade que se verifica com a aceitação da necessidade de respeito do homem como pessoa, leva ao entendimento de que a dignidade depende do respeito aos direitos fundamentais por parte de cada indivíduo da sociedade e também por parte do Estado.”[5]

Já escrevera Beccaria, a propósito, que “entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos crimes, é necessário escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente, menos cruel no organismo do culpado”[6] E, decididamente, não era o caso quando houve a alteração legislativa.

Assim, mesmo a partir de tal princípio, era absolutamente inaceitável a manutenção da sanção prevista para o tipo penal (com a inovação legislativa que se lhe fez), atentando-se, ainda, e firme na lição de Bobbio, que os “direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais. Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”[7]

Ademais, “o direito penal, por intervir de uma maneira legítima, deve respeitar o princípio de humanidade. Esse princípio exige, evidentemente, que se evitem as penas cruéis, desumanas e degradantes (dentre as quais pode–se contar a pena de morte), mas não se satisfaz somente com isso. Obriga, igualmente, na intervenção penal, a conceber penas que, respeitando a pessoa humana, sempre capaz de se modificar, atendam e promovam a sua ressocialização: oferecendo (jamais impondo) ao condenado meios de reeducação e de reinserção.”[8]

Também é importante atentar para o fato que a alteração legislativa afrontava claramente o art. 5º., XLVI, da Constituição Federal, que trata da individualização da pena, sabendo-se – como se sabe - que a individualização da pena engloba, não somente a aplicação concreta da pena e a sua respectiva execução, mas também a sua anterior previsão legislativa. Nesse sentido, conforme já ensinava o Professor Luiz Luisi, “o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo.”[9]

Devesa também salienta que “podem se distinguir três fases no processo de determinação da pena aplicável: individualização legal; individualização judicial e individualização penitenciaria.”[10]

Por fim, acrescenta-se às argumentações acima a lição sempre precisa de Canotilho, segundo a qual, “no Estado Democrático de Direito, deve-se atentar para o princípio da proibição do excesso, impondo-se a observância de três requisitos: adequação, necessidade e proporcionalidade. A exigência da adequação aponta para a necessidade de a medida restritiva ser apropriada para a prossecução dos fins invocados pela lei (conformidade com os fins). A exigência da necessidade pretende evitar a adopção de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias que, embora adequadas, não são necessárias para se obterem os fins de proteção visados pela Constituição ou a lei. Uma medida será então exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, mas menos ´coactivo`, relativamente aos direitos restringidos.”

Para o jurista português, “proibir o excesso não é só proibir o arbítrio; é impor, positivamente, a exigibilidade, adequação e proporcionalidade dos atos dos poderes públicos em relação aos fins que eles prosseguem.”[11]

Por fim, entendemos que a decisão da Corte Suprema, além de correta, deve ser compreendida no sentido da inconstitucionalidade de todo o preceito secundário previsto no art. 273, do Código Penal, e não apenas aquele inciso em que estava incurso o acusado e que era objeto do recurso extraordinário, especialmente tendo em vista que o § 1º.-A do art. 273 inclui entre os produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais, os cosméticos e os saneantes; a pena, portanto, de todos os tipos penais previstos no art. 273 (e não apenas no caso do inciso I, do § 1º-B) ainda é absolutamente desproporcional, inumana, indigna e excessiva.

 

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462939. Acesso em 24 de março de 2021.

[2] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 131.

[3] ZISMAN, Célia Rosenthal. Estudos de Direito Constitucional – O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Thomson IOB, 2005, p. 23.

[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 106. Como observa Étienne Vergès, “o princípio da dignidade da pessoa humana domina muitas áreas do direito e surgiu no final da Segunda Guerra Mundial, a partir de textos internacionais.” (Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 55).

[5] ZISMAN, Célia Rosenthal, obra citada, p. 39.

[6] BECCARIA, Cesare de. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Hemus, 1983, p. 43.

[7] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 01 e 05.

[8] CUESTA, Jose Luis de la. Boletim da Associação Internacional de Direito Penal. Ano 1, nº. 01 (maio de 2005), p. 04. 

[9] LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 37.

[10] DEVESA, Rodríguez. Apud SERRANO, Nicolas Gonzalez-Cuellar. Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal. Madri: Editorial Colex, 1990, p. 30.

[11] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, pp. 455 e 1.151. Para ele, são “princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.” (p. 1.151).

 

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