Por Pedro Filipe C. C. de Andrade - 29/12/2015
Patrocinada pela Associação Nacional dos Procuradores da República, a Proposta de Emenda Constitucional 431/2014, de autoria do Deputado e Subtenente da Polícia Militar de Minas Gerais, Luiz Gonzaga (PDT-MG), que recentemente passou pela CCJ da Câmara Federal sob a relatoria do Deputado e Capitão da Polícia Militar paulista, José Augusto Rosa (PR-SP), pretende conceder à polícia militar poderes de investigação, criando assim o chamado “ciclo completo de polícia”.
Pela proposta, que acrescenta o §11º ao art. 144 da Constituição da República, os milicianos passam a ter poderes para investigar quaisquer tipo de crimes cometidos por civis, podendo lavrar termos circunstanciados, autos de prisão em flagrante, realizar interrogatórios, presidir procedimentos e praticar quaisquer atos de investigação.
Não se sabe ao certo a origem do processo de militarização da polícia brasileira. Alguns estudiosos encontram seu embrião na Guarda Real de Polícia, criada em 1809 pela corte recém-chegada para patrulhar o espaço social do Rio de Janeiro. Inspirada no modelo francês e de estrutura piramidal, a Guarda Real de Polícia tinha forte subordinação ao Exército Nacional.
Contudo, é na ditadura militar (1964-1984), e a partir do Dec-Lei 667/69, modificado pelo Dec-Lei 1072/1969, que a militarização se fortalece, ganhando contornos de definitividade. A partir deste momento, de forma explícita, a Polícia Militar é considerada efetivo de reserva do Exército e passa a ter subordinação direta a um general da ativa. Com a criação da Polícia Militar, as diferenças entre o policiamento fardado e civil se acirram, e o isolamento dos policiais se acentua, já que a doutrina de segurança nacional, um dos pilares institucionais do militarismo brasileiro, preconizará o distanciamento entre cidadania e segurança pública, com restrições importantes entre o contato da “família policial militar” e o “mundo civil”.
Neste período também são criadas algumas das organizações policiais militares que terão importante papel na repressão política e na montagem da máquina de exceção do Estado Brasileiro: a Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (ROTA) e o Batalhão de Choque. A Rota, tropa de elite do militarismo autoritário, terá em suas contas as maiores taxas de letalidade policial do período e, mesmo hoje, ainda ostenta alto grau de violência em suas ações. O batalhão de choque teve e ainda tem papel de destaque no controle de multidões, greves e manifestações públicas, sendo conhecido por sua terrível participação no Massacre do Carandiru em 1992 (Battibugli, 2007; Souza, 2009; Zaverucha, 2005). [1]
A guerra declarada ao inimigo posto daquele momento, o comunismo, justificava e legitimava a institucionalização de práticas como a tortura, sequestros, e até mesmo a aplicação da pena capital. Os insistentes escândalos envolvendo os grupos de extermínios paulistas, os frequentes flagras de alterações e montagem de cenas de crime, até o caso do pedreiro Amarildo, sequestrado, torturado e morto em uma unidade de polícia pacificadora no Rio de Janeiro, mostram que, mesmo superado o momento histórico da ditadura militar e neutralizada a “ameaça comunista”, as estruturas militares ainda hoje guardam forte ranço autoritário e violento que marcou aquele período.
A Constituição Cidadã de 1988, ao tratar o tema da segurança pública, estabeleceu no artigo 144 uma clara e bem delineada divisão de tarefas, cabendo à polícia militar a importante missão, ressalta-se, de polícia administrativa, ostensiva e de preservação da ordem pública. Por outro lado, reservou-se às policias civis no âmbito dos estados e Distrito Federal, e à Polícia Federal no âmbito da União, a função de polícia judiciária e de apuração de infrações penais não militares. Assim sendo, é inconcebível, na atual ordem constitucional, qualquer atividade de investigação por parte militares, que não aquelas que têm como objeto crimes afetos à justiça castrense.
Nesse sentido tem se manifestado seguidamente a Suprema Corte Brasileira, v. g. o RE 702617-AM, que sob a relatoria da Min. Carmem Lúcia, declarou a inconstitucionalidade da lavratura de termo circunstanciado pela polícia militar.:
“O dispositivo legal que atribui à Polícia Militar competência para confeccionar termos circunstanciado de ocorrência, nos termos do art. 69 da Lei nº 9.099/1995, invade a competência da Polícia Civil, prevista no art. 115 da Constituição do Estado do Amazonas, e se dissocia da competência atribuída à Polícia Militar constante do art. 116 da Carta Estadual, ambos redigidos de acordo com o art. 144, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal”.
No mesmo sentido é a ADI 3614-PR, que julgou inconstitucional o Dec. 1557/2003 do Estado do Paraná. que atribuía a subtenentes ou sargentos combatentes o atendimento nas delegacias de polícia, nos municípios que não dispunham de servidor de carreira para o desempenho das funções de delegado de polícia, considerando o desvio de função e a ofensa ao art. 144, caput, inc. IV e V, e parágrafos 4º e 5º da Constituição da República.
Seguindo a mesma tese, também têm se pronunciado os tribunais estaduais:
“Segundo o artigo 144 e seus parágrafos, da Constituição Federal, a polícia militar não possui atribuição para investigar infrações criminais, inserindo-se nessa ausência de funcionalidade, o cumprimento de mandado de busca e apreensão, em atividade investigatória de infração criminal de competência da Justiça Comum. (Habeas Corpus Nº 70047333448, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 15/03/2012)”. “A investigação das infrações penais incumbe à Polícia Civil, por isto, havendo indícios de prática Delitiva, deverá o relatório da Polícia Militar ser encaminhado à primeira, para, após apuração dos fatos, e em se verificando a existência de prova idônea, requerer a medida cautelar de busca e apreensão.“ (TJMA – AP.Crim.:1.0702.09.585753-9/001 – Numeração única: 5857539-792009.8.13.0702 – 1ª C. Crim. – Rel. Des. Ediwal José de Morais - p. 16.7.2010).
O cidadão, detido em flagrante delito por qualquer do povo, tem o direito de ser imediatamente conduzido à presença da autoridade policial, que nos termos da Lei 12.830/2013, deverá ser um delegado de polícia, bacharel em direito. É um civil, como o suspeito, e não um militar, que deve realizar a análise típica de sua conduta e tomar a partir daí as medidas cabíveis. Essa garantia se reveste de um verdadeiro direito fundamental. Nesse sentido preconizou o Min. Celso de Melo em sua famosa citação feita em sede do julgamento do HC 84548/SP: “O delegado de polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”.
Assim sendo, qualquer tentativa de ser abolir ou mitigar esse direito do cidadão, pretendendo-se restaurar práticas que nos remontam a um período sombrio da nossa história, consubstancia-se em verdadeiro retrocesso histórico, vedado pelo princípio da vedação ao retrocesso, também conhecido como proibição ao avanço reacionário.
Reacionário, no dicionário Aurélio, possui quatro significados, todos bem empregados ao estudo que hora se propõe a fazer:
I- Sectário da reação política ou social. II- Relativo ao partido da reação ou ao seu sistema. III- Oposto à liberdade. IV- Que ou quem é muito conservador.
Já o princípio da vedação ao retrocesso tem sua origem remota na teoria da irreversibilidade de Konrad Hesse e foi aprofundado na obra de J. J. Canotilho, para quem:
“uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. ...o princípio em análise limite a reversibilidade dos direitos adquiridos em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana” [2].
Quanto a sua presença na Constituição da República vigente, o Professor Ingo Sarlet concluiu que é possível considerá-lo implícito na Carta de 1988 em decorrência da noção de Estado Democrático de Direito, bem como em razão do próprio Princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, também pode ser extraído dos princípios da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais (art. 5º, § 1º CF), bem como da segurança jurídica, da proteção da confiança, entre outros [3].
O Supremo Tribunal Federal, em diversos julgados, tem citado o princípio em tela, reforçando ainda mais a sua presença em nosso ordenamento, v. g. ADI 4543-MC/DF – Rel. Min. Carmem Lúcia, ARE 639337 AgR/SP – Rel. Min. Celso de Mello e STA 175-AgR/CE – Rel. Min. Celso de Mello.
Como exposto, a impossibilidade de se submeter o civil ao qual se imputa a prática de crime comum (não militar) a investigação presidida por autoridade militar, é pressuposto que limita até mesmo o poder constituinte derivado reformador, por aplicação do analisado princípio da vedação ao retrocesso, que proíbe o avanço reacionário. Conduzir um indivíduo que praticou um furto (art. 155 CP) ou que possui entorpecentes para uso próprio (art. 28 Lei 11343/06), não a uma delegacia de polícia, mas a um quartel militar, para que seja inquirido por um oficial da polícia militar, segundo as práticas militares, é absurdo que não se coaduna com os referidos postulados.
Importante ressaltar que tal conclusão não impossibilita a necessária discussão de medidas que venham a tornar mais efetivas e eficazes as políticas públicas de segurança, até mesmo com o debate sobre o chamado ciclo completo de polícia, contudo demonstra que qualquer discussão séria sobre o assunto passa em primeiro lugar pela desmilitarização das estruturas envolvidas, tal como se discute por exemplo nas propostas de emendas constitucionais 430/2009 de autoria do Deputado Celso Russomano (PRB-SP) e 51/2013 de autoria do Senador Lindbergh Farias (PT-RJ). O que se busca enterrar é malfadada ideia de se reestruturar um modelo arcaico e retrógrado por meio da permissão de que civis sejam investigados por militares indistintamente, como pretende a PEC 431/2014, que é fadada ao insucesso, se não no campo político, no âmbito do Congresso Nacional, com toda certeza no campo jurídico, no âmbito do controle repressivo de constitucionalidade.
Notas e Referências:
[1] DE SOUZA, Luiz Antônio Francisco. Novas dimensões da militarização da segurança pública no Brasil. Pág. 11 a 17. Publicado em: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=8302&Itemid=76
[2] CANOTILHO, J.J. Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 3ª. Ed., p. 326.
[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. Publicado em: http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/13602/007_sarlet.pdf?sequence=4
. Pedro Filipe C. C. de Andrade é delegado de polícia, professor da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e do Curso Cenpre, diretor jurídico da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná, graduado em direito, pós-graduando em Gestão da Segurança Pública pela ESPC-PR e em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.
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