A PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS E O FATO DO PRÍNCIPE

28/03/2020

 

 

Recentemente, em função da queda vertiginosa da atividade econômica por força da pandemia do Coronavírus (Covid-19), acendeu-se intenso debate acerca do cabimento da figura jurídica do factum principis (“fato do príncipe”) por ocasião da extinção inevitável de contratos de trabalho nesse período. Infelizmente, o debate tem sido permeado por uma série de desinformações e inexatidões técnicas que mais confundem que esclarecem.

O fato do príncipe se revela quando a atividade da empresa é paralisada em decorrência de ato normativo ou legislativo, caso em que parte das obrigações trabalhistas rescisórias transfere-se para o ente federativo que lhe haja emitido.

O instituto é definido no art. 486 da CLT, de seguinte redação:


Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

De logo, sem prejuízo do debate e das considerações seguintes, afirmamos que, a nosso juízo, não se configura a hipótese de fato do príncipe, como regra, nos casos em debate no cenário atual.

O ato estatal apto a lhe imputar a responsabilidade de pagamento de verba trabalhista deve ser imprevisível, por definição. E, francamente, os atos do Presidente da República, Governadores e Prefeitos, que visavam ao combate à pandemia e seu ritmo de disseminação, de modo algum podem-se reputar inesperados. Antes, as medidas sanitárias tomadas constituíam uma obrigação do poder público de proteger a saúde pública.

A própria Organização Mundial da Saúde reconheceu o caráter pandêmico do COVID-19 e o estado de emergência de saúde pública de importância internacional. Ante a situação posta, não cabia alternativa aos chefes dos Poderes Executivos, senão adotar as medidas sanitárias de interesse coletivo, que se classificam, então, como ato vinculado, sem qualquer traço de discricionariedade, em princípio.

Ademais, o ato de império de que resulte a obrigação de indenizar “é aquele que ocasiona um dano anormal e específico a pessoas determinadas, violando o princípio da isonomia, segundo o qual os ônus sociais da atividade administrativa devem ser igualmente distribuídos entre todos.”[1]

A respeito da responsabilidade objetiva do Estado (CF, art. 37, § 6º), a festejada administrativista Maria Sylvia Znella Di Pietro leciona:

“Somente se pode aceitar como pressuposto da responsabilidade objetiva a prática de ato antijurídico se este, mesmo sendo lícito, for entendido como ato causador de dano anormal e específico a determinadas pessoas, rompendo o princípio da igualdade de todos perante os encargos sociais. Por outras palavras, ato antijurídico, para fins de responsabilidade objetiva do Estado, é o ato ilícito e o ato lícito que cause dano anormal e específico.”[2]

No mesmo sentido o escólio de Gilmar Ferreira Mendes:

“O dano especial é aquele que onera, de modo particular, o direito do indivíduo, pois um prejuízo genérico, disseminado pela sociedade, não pode ser acobertado pela responsabilidade objetiva do Estado. Bandeira de Mello pontifica que o dano especial é aquele “que corresponde a um agravo patrimonial que incide especificamente sobre certo ou certos indivíduos e não sobre a coletividade ou sobre genérica e abstrata categoria de pessoas. Por isso, não estão acobertadas, por exemplo, as perdas de poder aquisitivo da moeda, decorrentes de políticas estatais inflacionárias”.[3] 

No caso das medidas governamentais tendentes a conter o alastramento do ritmo de contágio do novo Coronavírus, há uma ampla zona de indeterminação das pessoas atingidas, abrangendo praticamente todas as pessoas físicas e jurídicas do país, atingidas em maior ou menor grau.

É lição primária de que “Direito é bom senso”. E causaria estranheza e estupefação que o poder público fosse obrigado a indenizar quando toma medidas de proteção à saúde de toda a população[4]. Na esteira da jurisprudência pátria, se “a ação do poder público tem por objetivo resguardar interesses maiores da população” não se configura o factum principis[5].

Nada obstante, caso excepcionalmente se revele a ação despropositada do ente público, que haja determinado a suspensão injustificada de atividades absolutamente essenciais, ou tenha prolongado por tempo manifestamente excessivo as medidas de interdição, pode-se cogitar de sua responsabilização. Essa avaliação deve ser feita, no entanto, sempre presumindo a razoabilidade dos atos de inibição de atividades, ante sua imperiosa motivação, constituído, repita-se, extraordinária a hipótese de caracterização do fato do príncipe.

De todo modo, como se percebe da leitura atenta do preceito legal, desde que configurada a sua ocorrência, o fato do príncipe encerra hipótese de cabimento bem mais restrita do que se tem propagado ultimamente. Com efeito, todas as pessoas físicas e jurídicas, em maior ou menor grau, sofrerão os efeitos das medidas governamentais de combate ao alastramento do vírus, que restringem substancialmente a atividade econômica. No entanto, ainda que com todas as dificuldades previsíveis, diversas empresas seguirão em funcionamento, ou seja, não terão descontinuadas as suas atividades. Quanto a estas, portanto e nos termos da lei, não cabe sequer cogitar da figura do “fato do príncipe” e suas consequências legais.

Em relação àquelas empresas que encerrarem suas atividades, ainda que temporariamente, em razão do cenário econômico devastador, aplica-se a regra do art. 486 da CLT. No entanto, aqui cabem ainda duas ressalvas importantes. Primeiro, é necessário que o motivo da paralisação da atividade seja indubitavelmente decorrente de determinação de autoridade pública, de modo que a previsão legal não alcanças os casos de empresas que já viessem atravessando período de adversidade e crise econômica intensa anteriores à pandemia e às ações governamentais. Além disso, a referência legal à “paralisação temporária” das atividades empresariais como hipótese de incidências das regras do factum principis, não autoriza que certo empreendimento feche as portas, para reabertura dentro de curto espaço de tempo, insuficiente à caracterização do instituto em foco.

Decerto, nem sempre será simples a avaliação casuística dessas duas circunstâncias. Porém, é evidente que a lei deve ser interpretada de acordo com os “fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”[6], não se admitido que ninguém se valha desse momento conturbado para auferir vantagens por sua aplicação desvirtuada.

Retomando o texto normativo, configurado o fato do príncipe, “prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”. A que indenização estaria se referindo o legislador? O artigo possui a redação em vigor desde o ano de 1951. Naquela altura, vigia o regime da estabilidade decenal, pelo qual, em apertada síntese, o empregado adquiria a garantia definitiva do emprego após o cumprimento de dez anos de serviço. No caso de dispensa imotivada antes de se completar os dez anos de trabalho, o empregador pagava ao empregado uma indenização em conformidade com o tempo de serviço do empregado, nos termos do art. 478 da CLT[7].

Pois bem. Com a promulgação da CF/88, o regime do FGTS foi universalizado a todos os empregos urbanos e rurais (art. 7º, III), sucedendo o regime da estabilidade decenal, que apenas passou a se aplicar residualmente aos poucos empregados a ele vinculados e que à época já tivessem adquirido o direito à garantia de emprego[8].

A indenização pela dispensa imotivada, no regime da estabilidade, foi substituída pela indenização compensatória pela dispensa imotivada, no importe de 40% (quarenta por cento) sobre o FGTS depositado na conta vinculada do empregado no curso do contrato (Lei nº 8.036/90, art. 18, § 1º)[9].

Portanto, nos textuais termos do art. 486 da CLT, caso o “fato do príncipe”, com as limitações já referidas, venha a ser reconhecido em relação a certa empresa, esta apenas transferirá ao “governo responsável” o pagamento dessa verba rescisória, a “multa”[10] incidente sobre os depósitos do FGTS, ordinariamente de 40%, mas que nesse caso será devida pela metade.

Cabe destacar que o “fato do príncipe” é uma espécie do gênero força maior que, em sua acepção trabalhista, abrange todo acontecimento inevitável e contrário à vontade do empregador e para o qual não concorreu, direta ou indiretamente, e que lhe afete substancialmente a situação econômica e financeira[11]. E, assim sendo, as verbas rescisórias, na hipótese de força maior – inclusive e por óbvio, na hipótese de factum principis – são devidas pela metade (CLT, art. 502, II)[12].

Coerentemente, a nós parece que a redução pela metade da “indenização”, na forma prevista no art. 502 da CLT, abrange tão-somente a referida “multa” do FGTS. Aliás, se notarmos o que consta do inciso III do mesmo art. 502, ao se cogitar da extinção por força maior do contrato por prazo determinado, apenas o que se reduz à metade é a indenização do art. 479 da CLT, indicativo seguro de que a limitação não se estende a outras verbas rescisórias (v.g., saldo salarial, aviso prévio indenizado, férias e 13º salário proporcionais). Duas últimas observações sobre esse aspecto: seria absurdo que o saldo salarial fosse pago por metade, o que implicaria em trabalho sem contraprestação; e, ao menos no caso do fato do príncipe, não pode haver dúvida de que o aviso prévio sempre será indenizado, não se cogitando da hipótese de comunicação antecipada do rompimento do vínculo, quando este chegou a seu termo por ato externo imprevisível e que causou a paralisação das atividades da empresa[13].  

Em suma, portanto, o reconhecimento do “fato do príncipe”, na linha já mencionada, transfere ao ente público a responsabilidade pelo pagamento, exclusivamente, da indenização de 20% sobre os depósitos do FGTS. As demais verbas trabalhista e rescisórias seguem a encargo do empregador que teve sua atividade paralisada.

Ante os limites deste ensaio, não nos cabe abordar as minúcias processuais do reconhecimento judicial do “fato do príncipe”. Assim, de uma maneira bastante sintética, apenas pontuamos que, processualmente, a alegação de fato do príncipe cabe ao empregador, reclamado, em preliminar de contestação (CLT, art. 486, §1º)[14] – e jamais ao reclamante, como se vem equivocadamente divulgando, o qual não possui relação jurídica alguma com o ente público cogitado, faltando-lhe até interesse jurídico para tanto. Deduzida a preliminar e apontado o fato do príncipe, a pessoa de direito público será intimada para se manifestar, no prazo de 30 (trinta) dias (CLT, art. 486, § 1º), em atenção aos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV). A seguir, o próprio Juiz do Trabalho[15] proferirá decisão interlocutória[16] reconhecendo, ou não, o factum principis; em caso positivo, o ente público integrará o polo passivo da ação e, nessa condição, condenado ao pagamento da parcela já referida.

 

Com essa breve incursão na questão processual que envolve o tema, apenas pretendemos apontar que, do ponto de vista estritamente econômico, possivelmente seja contraproducente ao empregador postular o reconhecimento do factum principis. Afinal, ainda que acolhida a pretensão, isso decerto implicará riscos e custos, como no caso de rejeição da preliminar, com a condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais ao ente público[17].

 

Destarte, esse rápido e despretensioso estudo retrata nossas primeiras impressões sobre a aplicação do instituto do “fato do príncipe” em função dos transtornos imediatos causados pela pandemia do novo Coronavírus. O debate a respeito da melhor interpretação desse instituto no contexto histórico ora enfrentado ainda está em seu estágio preliminar, ficando o registro de nossa modesta contribuição para o enfrentamento jurídico do tema.

 

Notas e Referências

[1] Cfe Adriana Nogueira Naves PERES, em https://emporiododireito.com.br/leitura/responsabilidade-civil-do-estado-x-pandemia. Registre-se que as duas citações seguintes constam igualmente desse texto e foram aqui aproveitadas.

[2] 2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21ª ed, São Paulo, Atlas, 2008, p. 614.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[4] A afirmação em nada contradiz a possibilidade jurídica, amplamente reconhecida, de indenização por cometimento de ato lícito.

[5] RECURSO DE REVISTA. FACTUM PRINCIPIS. CHAMAMENTO À AUTORIA. A imprevidência do empregador e a concorrência de culpa excluem a caracterização de força maior, na forma do artigo 501 e seu parágrafo 1° da CLT, não havendo que se falar em factum principis quando a ação do poder público tem por objetivo resguardar interesses maiores da população. Incólume, portanto, o artigo 486, parágrafo 1°, da CLT. Recurso de revista não conhecido. (TST, 3ª T., RR 721887-13.2001.5.09.5555, Rel. Des. Conv. Luiz Ronan Neves Koury, j.16/08/2006, pub. 08/09/2006.

[6] Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro, art. 5º.

[7] Art. 478 - A indenização devida pela rescisão de contrato por prazo indeterminado será de 1 (um) mês de remuneração por ano de serviço efetivo, ou por ano e fração igual ou superior a 6 (seis) meses. 

[8] Convém pontuar que desde a Lei n. 5.107/66, que instituiu o FGTS, a maior parte dos empregados brasileiros optou ou migrou para o regime do FGTS, que conviveu com o regime da estabilidade decenal  até a CF/88.

[9] § 1º Na hipótese de despedida pelo empregador sem justa causa, depositará este, na conta vinculada do trabalhador no FGTS, importância igual a quarenta por cento do montante de todos os depósitos realizados na conta vinculada durante a vigência do contrato de trabalho, atualizados monetariamente e acrescidos dos respectivos juros. 

[10] A rigor, como a dispensa imotivada é um ato potestativo do empregador, sua licitude é inquestionável. Assim, técnica e estritamente, não pode ser apenado com multa, que se reporta a uma sanção por ação ilegal ou condenável.

[11] CLT, art. 501, caput e § 2º, valendo registrar que a hipótese de imprevidência do empregador, fato excludente da caracterização da força maior, já está indiretamente referida na definição da figura jurídica no caput do artigo.

[12] Art. 502 - Ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma seguinte: (...)  II - não tendo direito à estabilidade, metade da que seria devida em caso de rescisão sem justa causa;

[13] Não desconhecemos a tese de que, na hipótese de “fato do príncipe”, não seja cabível o aviso prévio. Assim não nos parece, todavia, não apenas à míngua de previsão legal, como também porque, como regra, “a cessação das atividades da empresa (...) não exclui, por si só, o direito do empregado ao aviso prévio.” (Súmula nº 44 do TST).

[14] Pensamos se cuidar de hipótese sui generis de intervenção de terceiros. A uma, porque se trata, sem dúvida, de hipótese de intervenção de terceiros, posto que o ente público não fazia originalmente parte da relação processual e veio posteriormente a ela se integrar, a pedido de uma da partes (o reclamado); a duas, porque não há no ordenamento processual vigente a figura do “chamamento à autoria”, referido na parte final do art. 486, § 1º, da CLT. E a três porque nenhuma das modalidades de intervenção de terceiro previstas em lei se amoldam a essa situação. Aqui e acolá cogita-se da denunciação da lide (CPC, art. 125, II), porém as hipóteses são distingas: aqui, reconhecido o “fato do príncipe”, a responsabilidade do Estado é direta e exclusiva, não cabendo ação regressiva em desfavor do empregador.

[15] O art. 486, § 3º, da CLT dispõe que, reconhecido o factum principis, os autos devem ser remetidos à justiça comum. No entanto, a disposição legal não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, que alargou o âmbito de competência da Justiça do Trabalho, para abarcar “ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (art. 114, I), Vide, a propósito julgado do TST nesse sentido: RR-594124-81.1999.5.06.5555, 2ª Turma, Relator Ministro Renato de Lacerda Paiva, DEJT 27/11/2009.

[16] Sendo de natureza interlocutória, a decisão não se sujeito a recurso imediato, nos termos do art. 893, § 1º, da CLT.

[17] Se cabem honorários sucumbenciais ao denunciado, mesmo na hipótese de o denunciante vencer a ação (CPC, art. 129, parágrafo único), com mais razão no caso em exame, em que o ente público veio a integrar o polo passivo por iniciativa do reclamado e sagrou-se vencedor da ação.

 

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