A nova lei “antiterrorismo” e a violação ao princípio da legalidade

25/03/2016

Por João Paulo Orsini Martinelli – 25/03/2016

A grande novidade legislativa no âmbito penal, até agora, é a denominada lei “antiterrorismo” (Lei 13.260/2016), sancionada com alguns vetos. Polêmica em seu conteúdo, há problemas muito comprometedores em sua técnica de elaboração. Em especial, destacamos graves violações ao princípio da legalidade penal, que relativizam sua legitimidade e os limites de aplicação pelas autoridades. O princípio da legalidade no direito penal tem suas peculiaridades, que às vezes não se encontram em outros ramos do direito e, ao que parece, o legislador não tem esse conhecimento.

O princípio da legalidade no direito penal não se restringe apenas à anterioridade da lei, segundo a qual só é crime o comportamento previamente tipificado. Esta é uma das vertentes do princípio. Outras afirmações são extraídas da legalidade penal: a lei penal deve ser taxativa, clara, precisa e restritiva. Quer dizer, a lei penal incriminadora não pode permitir uma interpretação ampla, que alcance comportamentos aleatórios conforme a vontade do intérprete. Não pode haver dubiedade ou imprecisão, muito menos permissão para manipulação na interpretação. O legislador deve ser claro para dizer o que é proibido, pois, do contrário, a conduta será permitida.

No caso em questão, a técnica legislativa utilizada é bem complicada. Primeiro, define-se o terrorismo; em seguida, arrolam-se as formas de praticá-lo; depois, excluem-se as situações não abrangidas pela ilicitude. A complicação maior está na indefinição dos conceitos. De acordo com o art. 2.o, “o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Assim, questiona-se: o que é terror social ou generalizado? Se um sujeito decide matar seu desafeto, com vários disparos, em via de grande circulação de pessoas, a conseqüência do seu ato pode ser considerado terror generalizado? Certamente, por causa dos disparos, os pedestres ficarão assustados, desesperados, correrão por todos os lados e poderá configurar um cenário semelhante ao de uma explosão. Portanto, terror social ou generalizado são conceitos vagos que devem ser provados no dolo específico do agente, caso contrário, exclui-se o crime de terrorismo.

Dentre as formas previstas de se praticar o terrorismo, destaca-se “atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa”. Pela interpretação literal, atentar contra apenas uma pessoa pode ser considerado terrorismo. Soa estranho um ato de terror contra pessoa única, a não ser que seja um Chefe de Estado ou autoridade de alto escalão. Nesse caso, já há previsão expressa na Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83). Mesmo que haja uma conduta de grande crueldade contra um indivíduo, deve-se conjugá-la, ainda, com “razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, além do dolo específico de “provocar terror social ou generalizado”. Por fim, a consequência do ato deve extrapolar o mero atentado, pois o conceito de terrorismo exige, também, que haja a exposição a perigo de pessoa, patrimônio, paz pública ou incolumidade pública. A combinação de elementares é tão complexa que há duas opções possíveis e extremadas: entender que o terrorismo raramente será realizado ou que qualquer conduta pode ser considerada terrorismo ao gosto do intérprete.

Para encerrar, mas não esgotar o problema, a lei prevê a punição aos atos preparatórios do terrorismo. Conforme o art. 5.o, a pena será “a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade”. A nova lei infringe a regra de que somente a partir dos atos de execução um comportamento poderá ser punido. Quando o CP determina que “salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços”, a exceção refere-se à aplicação da pena, não à possibilidade de antecipar a punição aos atos preparatórios. Creio ser este o pior problema da lei. Permitir a punição de atos preparatórios representa a maior afronta ao princípio da legalidade. Isso só é permitido se os atos preparatórios de um crime configurarem outro crime autônomo, com tipificação própria (por exemplo, o porte ilegal de arma de fogo em relação ao homicídio). Autorizar esse tipo de punição é dar ao intérprete o poder de escolher o que quiser como ato preparatório, ainda mais porque o próprio conceito de terrorismo é demasiado aberto. Uma mera reunião de pessoas pode, na cabeça do intérprete, ser considerado ato preparatório; também o sujeito que compra uma passagem aérea com destino a um país reconhecido por abrigar extremistas políticos também pode ser punido por atos preparatórios de suposto ato de terror. Ou seja, a definição de preparação para o terrorismo pode ser qualquer coisa, a depender do intuito punitivo do Estado.

Não há qualquer defesa ao terrorismo. Todo ato dessa natureza é abominável e deve ser combatido nos limites do devido processo legal. O que não se deve permitir é a construção de leis problemáticas, violadoras do princípio da legalidade, que permitam ao intérprete enquadrar qualquer comportamento como ato preparatório, tentado ou consumado de terrorismo. Nessa toada, brevemente a mera cognição será também punível, isto é, bastará a qualquer um pensar em algo que seja contrário aos ideais do Estado para autorizar a punição criminal. O sistema penal não pode ser instrumento de controle político da sociedade. Definir terrorismo não é simples e exige um trabalho de grande reflexão e debate, com a participação de especialistas e, principalmente, dos acadêmicos sérios. Algo pouco comum no Congresso Nacional.


João Paulo Orsini Martinelli. João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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