A morte e vida de um crime: a eutanásia em discussão

24/10/2015

Coluna Espaço do Estudante

A eutanásia, do grego “boa morte”, é a prática de provocar a morte indolor em um paciente cujo quadro clínico seja incurável e esteja desnecessariamente em sofrimento. O ato pode ser classificado como ativo ou passivo. O primeiro é aquele em que há uma ação para o fim da vida do paciente, através de injeções letais, por exemplo, e o último consiste na retirada deliberada de mecanismos que prolongam a vida do paciente. Já para configurar uma ortotanásia, esta requer o emprego de uma série de meios paliativos em um paciente terminal, de modo que tenha qualidade de vida antes da morte, sustando, assim, um processo que ganharia uma maior quantidade de tempo vivo. Contrariamente, estão os conceitos de distanásia, a manutenção artificial e desproporcional da vida que resulta em uma morte com sofrimento, e a mistanásia, que é a morte devida a falta de recursos técnicos ou por erro ou omissão médicos.

Enquanto questões da Bioética como o aborto já são amplamente discutidas pela sociedade latino-americana em geral, e com decisões relevantes das Cortes Supremas nos últimos anos, a eutanásia ainda é um tema bastante obscuro. Ainda que exista uma jurisprudência tímida sobre o tema no continente e alguma literatura especializada, o tabu sobre a morte impede qualquer destaque compatível como em alguns países ultramares. Por esta razão, propõe-se este artigo para que seja possível uma ampliação sobre o debate de direitos individuais em duas frentes, a ética e a legislativa penal, visando o legislador brasileiro.

Antes da análise sobre as legislações concernentes à questão da eutanásia, salutar a necessidade de se criar uma linha de raciocínio crítico sobre o tema. Se o objetivo desse artigo é propor uma postura ao legislador brasileiro no que concerne a manutenção ou não da eutanásia, deve ser baseada logicamente nos campos do conhecimento que envolvem a sua postura com a morte.

A Ética, área que busca fundamentar com base na razão as ações morais, ou a disciplina que “estuda a moralidade dos comportamentos livres, buscando um racionalismo sistemático sobre como se deve viver e porquê” (HOGEMANN 2013, p.9) será a guia dessa primeira parte do artigo. Para tal, será colocado em primeiro plano a literatura especializada, buscando compreender o atual estágio do comportamento ocidental com a morte e os mais variados ethos a respeito.

Morte: a história de um livro sem fim

Foi assim que o historiador francês Philippe Ariès (1914 – 1984) apresentou a sua renomada obra História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos nossos dias em 1975. No livro, o autor, após a análise de documentos e da arte, que o sentimento atual face o fim da vida, desde a Alta Idade Média até o século XX, foi lentamente transformado de uma familiaridade com a morte, “um meio-termo entre a resignação passiva e a confiança mística” (ARIÈS, 2012, p. 98) até culminar como tabu social. Explica o autor:

“As transformações do homem diante da morte são extremamente lentas por sua própria natureza ou se situam entre longos períodos de imobilidade. Os contemporâneos não as percebem porque o tempo que as separa ultrapassa o de várias gerações e excede a capacidade da memória coletiva.” (ARIÈS,  2012, p.p. 32-33)[1]

Tais transformações deram-se pela inserção de determinados comportamentos e de reinterpretações do morrer entre as classes sociais. Entre as mais relevantes estão a figura do Juízo Final no século XII, que nasceu entre os litterati e tirou a morte do seu status de destino coletivo para a de julgamento biográfico divino e individualizado, o Romantismo, que exprimiu no fim uma imagem violenta de ruptura da ordem habitual[2], e as questões políticas e sociais do século XIX, que, além de exigirem uma nova relação com os moribundos, que serão privados de suas mortes[3], cadáveres e cemitérios em nome da saúde pública, ainda aparece como protagonista o positivismo comtiano, que clama por um culto à memória dos mortos como forma de patriotismo. Eis no que culmina:

“O moribundo não tem mais status porque não tem mais valor social (...) Mas uma outra forma de sobrevivência substituiu, então, aquelas que tinham suas raízes no velho passado cristão e pagão; manifestou-se no século XIX pelo culto, tanto leigo como cristão, dos túmulos e cemitérios, exprimindo um sentimento novo (...) a recusa da morte do outro (grifos nossos).” (ARIÈS, 2012, p. 275)

Com a influência cada vez maior da Medicina na vida ocidental, que, além de prolongar a vida, alienou e privou o paciente de sua própria morte e a retirou do cotidiano do homem comum, o resultado foi na fulminação de sua interdição e no seu simbolismo selvagem. (ARIÈS, 2012, p. 269)

A Ética da Morte

As mudanças mencionadas estimularam novas concepções sobre a Morte, a começar pela Igreja Católica, personagem protagonista na construção de uma ética que perdura até hoje, que compreende que “o Criador confiou a vida do homem à sua solicitude responsável, não para que disponha arbitrariamente dela, mas a guarde com amorosa fidelidade” (JOÃO PAULO II, 1995, p. 70). O dogma cristão apresentado resulta em uma série de implicações relacionadas à vida humana, considerada divina, levando todos os homens a respeitarem a vida, tanto a própria quanto a do outro.

O respeito ao sacrifício e o sofrimento de Jesus Cristo na cruz são dois dos fatores que contribuem para a construção da ética cristã e, por essa razão, práticas que visam interromper a vida, como a eutanásia, comportariam “a malícia própria do suicídio ou do homicídio” (JOÃO PAULO II. 1995, p 61). O próprio desrespeito à norma civil em favor da ordem moral cristã é encorajado (JOÃO PAULO II. 1995, p 62). Entretanto, a prática da ortotanásia é aceita conforme documentação posterior de João Paulo II ao interpretar que esta seria “a aceitação da condição humana defronte à morte” (JOÃO PAULO II. 1995, p 60) e “uma forma excepcional da caridade desinteressada”.[4]

Já autores como Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche vão criticar a ética cristã em relação ao fim da vida. Segundo Schopenhauer:

“A julgar por tudo o que se tem sido ensinado sobre a morte, não se pode negar que, ao menos na Europa, a opinião dos homens (..) oscila entre a concepção da morte como aniquilamento absoluto e a suposição de que seríamos, por assim dizer, totalmente imortais. Ambas são errôneas.” (SCHOPENHAUER, 2013, p. 7).

Schopenhauer foi bastante influenciado pelo Bramanismo, filosofia milenar indiana, e compreendia que a noção de Paraíso, com a imortalidade da alma, ou de total destruição do ser com o perecimento não faziam sentido, e seriam responsáveis por temor ilógico. Entende-se que a morte somente aniquila o intelecto e suprime a individualidade, mas a vontade, ponto central da filosofia schopenhaueriana, permanece como base de todo fenômeno individual, e continua existindo somente em outros seres. “É bem mais plausível pensar que a força que antes movia uma vida hoje extinta é a mesma que age na vida que agora floresce” (SCHOPENHAUER, 2013, p. 13). Logo, não haveria razão para temer, e muito menos de interditar a morte, e daria espaço para a eutanásia, no sentido de uma morte fácil e sem sofrimento. (SCHOPENHAUER, 2013, p. 13)

Já Nietzsche, além das suas críticas ao Cristianismo, também fora um implacável com a medicalização da vida. Em suas lições, é possível determinar que o filósofo defendia a tese que o homem deveria escolher a sua própria morte, e os meios para tal, sem implicações morais religiosas ou perdurações desnecessárias. Em outras palavras, a morte deveria ser livre. Enfatiza Nietzsche:

“Num certo estágio, é indecente viver mais tempo. Prosseguir vegetando em covarde dependência dos médicos e tratamentos, depois que o sentido da vida, o direito à vida foi embora, deveria acarretar um profundo desprezo na sociedade. (...) A morte escolhida livremente, a morte empreendida no tempo certo, com lucidez e alegria (...) tudo em contraste com a miserável e terrível comédia que o cristianismo fez na hora da morte.” (NIETZCHE, 2012, p.p. 60-61)

Duas propostas éticas para a eutanásia

Seguindo o pensamento de Nietzsche, Ronald Dworkin, no livro Domínio da Vida, resume a questão da eutanásia, dentro do debate ético, em duas frentes: a natureza que as pessoas têm em relação ao morrer e a santidade da vida.

O autor expõe que a morte, por ser o evento derradeiro do homem, tem na sua hora e modo de acontecer o reflexo dos interesses críticos de cada um, ou seja, aqueles que “representam juízes críticos, não apenas relativas a experiências” (DWORKIN, 2009, p. 284). Por possuir um estilo geral de vida, cada indivíduo deseja intrinsicamente dar os últimos passos de modo a coadunar com os parâmetros estabelecidos pelas próprias convicções substantivas. (DWORKIN, 2009, p. 284)

Em acordo com vida moral de cada indivíduo, caberia ao próprio desejar ou não pela eutanásia no momento oportuno, mas a decisão, seja consciente, competente, incompetente, ou feita por um representante em caso de estar inconsciente, significa o caminho escolhido para o bom aproveitamento da própria vida humana (DWORKIN, 2009, p. 304). Se o respeito aos interesses críticos do paciente é uma forma de respeitar também a dignidade do paciente, esta implica necessariamente numa aplicação do compromisso da santidade da vida. Conclui Dworkin:

“(...) a questão crítica consiste em saber se uma sociedade decente irá optar pela coerção ou pela responsabilidade, se tentará impor a todos os seus membros um juízo coletivo sobre assuntos do mais profundo caráter espiritual, ou se irá permitir e pedir a seus cidadãos que formulem, por si mesmos, os juízos mais crucialmente definidores da sua personalidade naquilo que diz respeito a suas próprias vidas. (...) Levar alguém a morrer de uma maneira que outros aprovam, mas que para ele representa uma terrível contradição de sua própria vida, é uma devastadora e odiosa forma de tirania.” (DWORKIN, 2009, p. 305-307)

Para finalizar, é possível invocar as compreensões lógicas de Benedictus de Spinoza para fundamentar axiologicamente o debate sobre a eutanásia, mais especificamente em relação às suas anotações compreendendo a natureza dos afetos presente na obra Ética (1677).

De acordo com o autor, os afetos, ao contrário do que sugerem, são coisas naturais e que, portanto, seguem as leis da natureza. Ou seja, a compreensão que o homem tem uma potência absoluta sobre as suas próprias ações é, em si só, falaciosa. Partindo dessa premissa, o autor compreende o afeto como “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2014, p.98).

A mente humana é afetada por causas percebidas por elas mesmas ou por causas cujo efeito não pode ser compreendido por si próprio, fazendo com que a mente aja e padeça, respectivamente. Mente e corpo, para Spinoza, são a mesma coisa, e os afetos positivos, ou seja, aqueles cujas ideias são adequadas em Deus por serem entendidas pela própria natureza que envolve o Ser, que se dirigem ao homem através de causas exteriores, como o amor, a misericórdia, e a benevolência, os afetam de modo a agir positivamente para com o próximo.

Afinal, a questão chave da eutanásia é o sentimento envolvendo um homem em seu momento mais frágil, e a teoria spinoziana reforça que é inadequado refrear afetos como a compaixão e a solidariedade, mesmo que, se for o caso, seja necessário dar adeus à um ente querido em estado moribundo. “Quem vive sob a condição da razão se esforça, tanto quanto pode, por retribuir com amor e generosidade, o ódio, o desprezo, etc, de um outro para com ele” (SPINOZA, 2014, p.187)

Legislação

Neste ponto considera-se a experiência de algumas das diferentes legislações dos países que autorizam a sua prática ou a morte assistida, verificando de que forma o poder judiciário e a sociedade de cada país analisado tomam as suas decisões no enfrentamento desse assunto.

Holanda

A Holanda é pioneira na questão sobre a legalização da eutanásia. Neste país, a prática já é amparada pela sua legislação desde 2002, quando alterou os artigos 293 e 294 da sua Legislação Criminal.

O debate sobre a prática na Holanda tem sido realizado desde a década de 1970 com o famoso caso da Médica Geertruida Postma, que foi condenada pela prática com sua mãe, que em doença terminal reiterava o pedido que a filha lhe tirasse a vida. Após o caso, o país foi abrandando sua legislação e impondo critérios para tal prática. Alguns critérios para tal prática são basicamente: que o doente seja mentalmente capaz, que reitere expressamente e voluntariamente o desejo pela conduta, ser acometido por doença incurável e de grande sofrimento, sendo atestada pelo médico. Hoje o país não considera a forma passiva, como eutanásia, mas sim, uma decisão médica que é comparada com a conduta da ortotanásia ou com a recusa terapêutica. Já a forma ativa, é excludente de ilicitude, devendo obedecer a critérios estabelecidos pela lei, e também sendo abrangida para menores de idade, especificamente a partir dos doze anos.

Para concluir, mesmo sendo legalizada, tanto o suicídio assistido como a eutanásia sofre um controle no país, sendo examinado cada caso por uma comissão formada por médicos, sociólogos e juízes, que devem se manifestar pela viabilidade ou não do procedimento, onde só se recorre ao poder judiciário em caso de dúvidas.

Bélgica

Foi o segundo país a legalizar a eutanásia em todo território nacional. Sua legalização também ocorreu em 2002, após um parecer favorável do Comitê de Bioética, e seguia a mesma base da holandesa, porém com alguns pontos que a diferenciava. A prática era proibida para menores de 18 anos, mas não era necessário que o paciente estivesse em fase terminal.

No ano de 2014, as leis sobre eutanásia sofrem alterações se igualando por definitivo a Holandesa. Essas alterações foram as com relação a idade, que passa a não ter idade mínima, e que agora necessariamente o paciente precisa está em estado final da doença. Todo procedimento, assim como na Holanda, deve ser acompanhado por um comitê especial, e os casos de eutanásia praticados com menores de idade devem haver um acompanhamento de psicólogos com os pais.

Uruguai

O Uruguai é considerado o país mais progressista dentre todos na América Latina com relação à eutanásia. Neste país, mesmo não tendo legalizado a eutanásia, sua pratica é prevista no Código Penal de 1934 como homicídio piedoso, e cabe ao juiz isentar a pena sobre o agente que provocar a morte do terceiro, conforme artigo abaixo:

“Art. 37. Del homicidio piadoso. Los Jueces tienen la facultad de exonerar de castigo al sujeto de antecedentes honorables, autor de un homicidio, efectuado por móviles de piedad, mediante súplicas reiteradas de la víctima”

Para tal ato, o agente deve se enquadrar em três requisitos fundamentas: bons antecedentes, motivos altruístas direcionados a condições objetivas de padecimento da vítima e a manifestação reiterada da mesma pelo fim de sua vida. Entretanto, existe uma contradição em seu Código Penal, quando é relacionado à instigação do suicídio ou morte assistida, em que não prevê o perdão judicial como previsto no artigo 315:

“Art. 315. Determinación o ayuda al suicidio. El que determinare a otro al suicidio o le ayudare a cometerlo, si ocurriere la muerte, será castigado con seis meses de prisión a seis años de penitenciaría. Este máximo puede ser sobrepujado hasta el límite de doce años, cuando el delito se cometiere respecto de un menor de dieciocho años, o de un sujeto de inteligencia o de voluntad deprimidas por enfermedad mental o por el abuso del alcohol o el uso de estupefacientes.”

China

Durante o governo comunista de 1988, foi autorizada a prática da eutanásia em pacientes terminais. De acordo com a legislação local, são os médicos que estabelecem a condição de terminalidade do paciente, e não a família ou ele próprio. No caso chinês, não se poderia considerar uma medida progressiva, pois nesse caso não privilegia os direitos individuais de cada paciente, mas sim uma medida autoritária, administrativa e que é usada por razões demográficas deste país, baseada na insegurança jurídica proporcionada por ditaduras.

Estados Unidos

No Estados Unidos, como são uma Federação, onde cada Estado tem autonomia legislativa para decidir sobre a proibição ou autorização desta prática. Na análise dos três casos a seguir somente é autorizado o suicídio ou a morte assistida.

O primeiro estado a autorizar, em 1997, foi Oregon através da Lei de Morte com Dignidade, que foi aprovada por referendo popular. Essa lei permite que médicos favoreçam os doentes terminais com medicamentos, caso optem por agilizar a morte. Sua legislação foi questionada pela procuradoria-geral por violar atos médicos, em 2001, na Suprema Corte Americana, onde seu desfecho foi favorável a lei, que foi julgada constitucional. Outro estado com lei semelhante é Washington, aprovada também por referendo popular desde 2008.

Vale ressaltar que ambos os estados não autorizam a eutanásia, ou seja, a injeção de medicamentos letais por um médico, mas apenas o direito de pacientes acabarem com suas próprias vidas, através de medicamentos. Esses estados exigem que os pacientes que optarem pela prática devem estar lúcidos e devidamente diagnosticados na hora da escolha.

O último estado a autoriza a morte assistida foi Vermont, onde foi o primeiro a legalizar tal prática por meio de processo legislativo e não por referendo popular. Sua legislação necessita de manifestação de dois médicos e uma avaliação de um psicólogo com pelo menos um mês antes da ingestão de medicamentos. É importante apontar que, no estado de Montana, a morte assistida é autorizada somente por via de processo judicial, tendo a Suprema Corte do Estado se manifestado favorável em 2009.

Brasil

Atualmente, o Conselho Federal de Medicina, através da resolução n°1805/06, aprova somente a prática da ortotanásia pelos médicos, ao doente que deseja tal procedimento. O Código Penal vigente não diz claramente sobre a eutanásia, sendo tratada como homicídio doloso, tendo sua pena variada entre 6 a 20 anos de prisão, podendo ser reduzida de 1/6 a 1/3 da pena.

Em 1996, houve um projeto de lei, nº125/96, que tratava sobre a legalização da prática da eutanásia, de autoria do senador Gilvam Borges. Ele recomendava que tal prática fosse autorizada, desde que o próprio paciente ou seus entes próximos, se não estivesse lúcido, requisitassem a eutanásia e que uma junta de cinco médicos atestasse a fase terminal do próprio. Porém, o projeto nunca foi discutido e encontra-se arquivado desde 1999.

Existe hoje, em discussão no Senado Federal, o anteprojeto do novo Código Penal, que tratará claramente como crime privilegiado aqueles que cometerem a prática da eutanásia, amenizando a pena, de modo a passar para no máximo quatro anos de detenção, de acordo com o artigo 122:

“Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:

Pena – prisão, de dois a quatro anos.

1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.

Exclusão de ilicitude

2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irresistível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.”

Assim, a eutanásia tipificada em um novo código penal, além de proteger a vida, cerceia a liberdade do indivíduo, em um estado terminal, o direito de decidir sobre sua existência. Mas é possível considerar um avanço no que tange a penalidade daqueles que auxiliam em tal prática.

Justo apontar que o Estado Brasileiro é o responsável por tutelar e garantir a liberdade de seus cidadãos e, nesse sentido, produziu leis que implicam na indisponibilidade do direito à vida. O ordenamento jurídico em vigor apresenta uma normativa rígida que tipifica a prática da eutanásia, a despeito da farta argumentação teórica já exposta pela doutrina a justificar argumento diverso. Demarque-se também que o Estado não tipifica a tentativa de suicídio, como também não reduz, como já dito, o direito do paciente em recusar o tratamento que seja essencial e indispensável à preservação de sua vida.

Cabe considerar um questionamento que considere o direito à vida tomado em cotejo ao direito geral de liberdade e que venha a vislumbrar um possível argumento plausível o suficiente a justificar a eutanásia nas hipóteses extremas abarcadas pelos projetos de lei em curso? O direito geral de liberdade é concebido como a possibilidade legal e, portanto, legítima, do indivíduo realizar todos os atos da vida civil que não estejam expressamente proibidos, na medida em que o art. 5º, II, da Constituição Federal garante a possibilidade da ação individual no âmbito da licitude ao assim dispor: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”.

Uma questão se revela no bojo da discussão relativa ao tema: O paciente tem proibição expressa em relação a pôr fim à própria vida? Observa-se que não há previsão legal para o tipo penal tentativa de suicídio, havendo tão somente a ilicitude penal relativa a instigar ou orientar alguém a suicidar-se. Do mesmo modo, não está prevista a permissão legal para que o médico abrevie a vida do paciente, ainda que sofrida. O Código de Ética Médica é textualmente contrário à eutanásia. Veja o que dispõem os arts 57 e 66:

É vedado ao médico:

“Art. 57 – Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnósticos e tratamento a seu alcance em favor do paciente.

(...)

Art. 66 – Utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal.”

O centro da discussão consiste em descobrir se o direito à vida pode ser um direito disponível nessa determinada circunstância[5]. Admitindo-se a possibilidade da relativização da indisponibilidade, nada impediria que o indivíduo, sob o manto do direito à liberdade e da autonomia da vontade, tendo como pano de fundo o princípio da dignidade da pessoa humana, viesse a dispor sobre sua própria vida nas situações de terminalidade irreversível. Poderia fazer uso de qualquer documento autêntico para consignar sua vontade, ainda que fosse por procuração para tomada de decisões médicas.

Conclusão

Após esta breve jornada reflexiva em torno de tema que se revela tanto polêmico anto envolvente, é possível concluir que o direito de dispor livremente da vida é um problema objetivo do quotidiano social e jurídico, suscitando argumentos favoráveis e contrários. É um assunto que suscita divergências no que diz respeito às pessoas, as culturas, os países, os costumes, a religião, entre outros fatores.

Discutir o tema eutanásia não significa apoiar nem defender a morte em si, mas tão somente promover uma reflexão no que diz respeito a uma morte mais suave e menos dolorosa que algumas pessoas optam por ter, em vez de sofrerem uma morte lenta e padecida.

Nota-se uma sensibilidade maior no pensamento do legislador e do corpo médico brasileiros no que tange a eutanásia e a ortotanásia. Em um país cujos índices de mistanásia em seus hospitais e clínicas por falta de atendimento adequado e preventivo, e uma cultura que privilegia a distanásia, é de se notar os avanços no Conselho Federal de Medicina e o novo enfoque dado nas discussões no projeto de lei do Senado. Entretanto, além de sua regulamentação ainda estar aquém do ideal, corre-se sempre o risco da matéria continuar lamentavelmente como homicídio.


Notas e Referências:

[1] O sociólogo alemão Norbert Elias (1897 – 1990) criticará posteriormente no seu ensaio A Solidão dos Moribundos o método do francês. Por mais que cheguem a certas conclusões uníssonas, como a interdição da morte e a medicalização da vida, o sociólogo argumenta que Ariès “entende a história puramente como descrição” (p. 19) ao levar posições pré-concebidas para a pesquisa histórica.

[2] Afirma Ariès: “a morte pouco a pouco tomava uma outra forma, mais longínqua e, entretanto, mais dramática e mais tensa” P. 100

[3] Essa é a relação encontrada na obra A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói. O livro conta a história de Ivan, um burocrata da Rússia czarista, que se vê com uma grande moléstia. É possível encontrar, ao longo do enredo, fatores apresentados no artigo e no livro de Ariès, como a introdução do papel do médico na morte do moribundo, a interdição e a infantilização do enfermo pela família, fatores que geraram o tabu atual.

[4] De acordo com o parágrafo 2279 do livro de catequese da Igreja Católica: “Mesmo que a morte seja considerada iminente, os cuidados habitualmente devidos a uma pessoa doente não podem ser legitimamente interrompidos. O uso dos analgésicos para aliviar os sofrimentos do moribundo, mesmo correndo-se o risco de abreviar os seus dias, pode ser moralmente conforme com a dignidade humana, se a morte não for querida, nem como fim nem como meio, mas somente prevista e tolerada como inevitável. Os cuidados paliativos constituem uma forma excepcional da caridade desinteressada; a esse título, devem ser encorajados”

[5] Essa discussão sobre a indisponibilidade da vida como absoluta, merece que se aponte as questões onde o interesse público e a soberania nacional relativizam tal condição. ‘É o caso das situações de guerra, por exemplo, em que a vida dos soldados está evidentemente posta em questão.

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Trabalho orientado pela Professora Drª Edna Raquel Hogemann. Pós-Doutoranda em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Doutora em Direito pela Universidade Gama Filho - UGF (2006), Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho - UGF (2002), Pós-Graduação Lato Sensu em Bioética, pela Red Bioética UNESCO (2010), Pós-Graduação Lato-Sensu em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade do Grande Rio (2000), Pós-Graduação Lato-Sensu em História do Direito Brasileiro, pela Universidade Estácio de Sá - UNESA (2007), graduada em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (1977) e bacharel em Direito pela Universidade do Grande Rio (1999). Professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UniRio. Professora Titular Permanente do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá - UNESA/RJ. Membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC e da Law and Society Association. Pesquisadora da FAPERJ. Autora de diversas obras no campo do Direito Civil, da Bioética e da Teoria do Direito.


Matheus Novais da Silva

 

Breno Botelho Vieira da Silva é Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, membro fundador e atual Diretor de Pesquisa da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UNIRIO - LACCrim, monitor e pesquisador em Sociologia Jurídica na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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Breno Botelho Vieira da Silva

Matheus Novais da Silva é atualmente bolsista de iniciação cientifica na Fundação Casa de Rui Barbosa, foi também bolsista de iniciação cientifica pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, Bacharelando em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO e Bacharelando em Direito pela Faculdades Integradas Hélio Alonso - FACHA.

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Imagem Ilustrativa do Post: Into The Light // Foto de: Mike Kniec // Sem alterações.

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/112923805@N05/14791397338/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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