Por José Edvaldo Pereira Sales – 08/09/2017
Advocatus, vocatus ad, chamado a socorrer (F. Carnelutti)
Faz sessenta anos que o advogado e jurista italiano Francesco Carnelutti publicou o seu Le miserie del processo penale com tradução no Brasil e em outras línguas. É daqueles livros clássicos de leitura indispensável pelos da área jurídica, sem a qual a formação de um jurista não estará completa, e por todos como cultura geral. Esse pequeno livro, que, a depender da edição não chega a cem páginas, é a demonstração de que a perenização de grandes ideias não se dá apenas em volumosos tratados (e há não poucos que não valem uma página desse opúsculo). É necessário lê-lo várias vezes e aprender com os ensinamentos e com a experiência de um grande pensador e jurista como Carnelutti.
Em suas páginas, o maestro italiano trata de temas diversos relacionados ao processo penal destacando personalidades e atos do processo quase que cronologicamente seguindo a lógica processual. O texto é daqueles livres, escrito como que em uma assentada, sem grandes formalidades, citações técnicas, notas de rodapé e tudo o mais que os textos acadêmicos exigem. Aqui e acolá, há frases em latim e citações dos evangelhos. A mais expressiva parece ser a que associa o preso ao próprio Cristo, quando afirmou que visitá-lO e assisti-lO na fome e na sede é torna-se conhecido por Ele como um bom servo, o que só ocorre quando esses atos não se dão no interior dos templos, mas no cárcere onde os presos se encontram; ou seja, acolher o preso é acolher Cristo.
O livro está cheio de frases que expressam a sabedoria de uma longa experiência de um mestre como Carnelutti. Algumas delas, com evidente prejuízo de outras, merece transcrição[1] aqui (outras estão mais adiante):
- Acusador e defensor apenas “em aparência estão divididos, mas na realidade estão unidos no esforço que cada um realiza para alcançar a justiça”. (Cap. I).
- “As coisas mais simples são as mais difíceis de serem compreendidas”. (Cap. III).
- “Nenhum homem se pensasse no que é necessário para julgar a outro homem, aceitaria ser juiz”. (Cap. IV).
Com a eloquência com que escreve, é como se ouvíssemos a voz de Carnelutti através de cada página. É uma aula não só pelo estilo que adota, mas pela fluidez do texto, que nos faz iniciar a leitura e, de um só fôlego, ir até o final. O livro, não devemos esquecer, quer falar sobre misérias do processo penal. E muitas delas aparecem ao longo das páginas. Ele mesmo cita algumas de forma expressa como o apelo que faz ao juiz para sentir sua própria miséria, que é relacionada ao problema da justiça e da sua parcialidade. O juiz precisa ser melhor do que é, e o caminho para alcançar esse fim é sentir-se pequeno para ser grande (Cap. IV). Resumir essas misérias não nos parece apropriado porque o livro já é uma síntese. Entretanto, pensamos que essas misérias repousam sobre a condição de ser dos juízes, as dificuldades na atuação do defensor e a situação do acusado. Talvez essas frases ajudem:
- “Mais que ler muitos livros, eu gostaria que os juízes conhecessem muitos homens, se fosse possível, sobretudo, santos e canalhas, os que estão no topo e os que estão no patamar mais baixo da escada”. (Cap. IV).
- “O maior dos advogados sabe que não pode fazer nada frente ao menor dos juízes, frequentemente, o menor dos juízes é aquele que mais o humilha”. (Cap. III).
- Detecta Carnelutti com olhar atento a ilusão da constituição italiana [como a brasileira e a de tantos outros países] que o acusado somente será considerado culpado depois de sentença condenatória definitiva (Cap. VI). Que diria Carnelutti depois da decisão do STF sobre a presunção de inocência? A perplexidade dele está em ver a “capacidade” das normas de forjarem ilusões, e todos sabemos o porquê.
- Toda sentença de absolvição é a descoberta de um erro. Essa é uma forma, segundo Carnelutti, de se ocultar as misérias do processo penal (Cap. IX). A condição do processado nunca mais será a mesma. Que se pode dizer daqueles que são presos e recebem uma absolvição? O Ministro Marco Aurélio já respondeu a essa questão de maneira “convincente” que o inocente posto atrás das grades poderá ser indenizado (HC 126.292).
- O ministério público também está inserido nessas misérias. Parece-nos que o ponto central está numa crise existencial entre o que quer ser e o que é. Esse é o aspecto destacado por Carnelutti para quem de cada dez casos, em nove a lógica das coisas indica que o ministério público é o que deve ser: o antagonista do defensor (Cap. V).
- O preso alimenta a ilusão de que ao sair da prisão não será mais um preso. A miséria é que as pessoas continuarão a vê-lo como preso. A pena no processo penal nunca acaba...!! (Cap. XI).
Queremos aqui não apenas fazer homenagem a esse clássico das letras jurídicas, mas estabelecer um liame entre as misérias de que falou Carnelutti com um outro tipo de miséria, não exposta por ele no breve escrito, e que é muito presente no direito processual brasileiro. Referimo-nos à “teoria” das nulidades (ou a ausência dela) no processo penal brasileiro, que é a sua maior miséria. Não pretendemos fazer uma apresentação geral e muito menos minuciosa do tema. O objetivo é bem mais singelo: dar alguns exemplos da jurisprudência que consideramos graves e apontar aquilo que chamamos aqui de contribuições da defesa para essa miséria.
A jurisprudência do STF e do STJ está repleta de situações reconhecidas como nulidade relativa sob a alegação geral de que se não há prejuízo, não há nulidade seguindo a dicção do art. 563 do CPP:
- A desobediência às formalidades estabelecidas na legislação processual somente poderá implicar o reconhecimento da invalidade do ato quando a sua finalidade estiver comprometida em virtude do vício verificado. (Ag. Reg. no RE nº 696533/SC, 1ª Turma do STF, DJe 26.09.2016).
- A participação de julgador impedido, quando do julgamento do recurso no órgão colegiado do tribunal, não acarreta automática nulidade da decisão proferida se, excluindo-se o voto do referido magistrado, o resultado da votação permanecesse incólume. (HC nº 125610/PR, 1ª Turma do STF, DJe 05.08.2016).
- A inobservância do procedimento previsto no parágrafo único do art. 212 do CPP pode gerar, quando muito, nulidade relativa, cujo reconhecimento não prescinde da demonstração do prejuízo para a parte que a suscita. (RO em HC nº 122.467/SP, 2ª Turma do STF, DJe 04.08.2014).
- Não se evidencia nulidade no julgamento da apelação interposta pelo Ministério Público se a defesa técnica, regularmente intimada para apresentação de contrarrazões, permanece inerte. (EDcl no HC nº 265.102/RR (2013/0044600-0), 5ª Turma do STJ, DJe 07.04.2017).
- Eventual nulidade por violação de regras que determinam reunião de processos por conexão e continência demanda impreterivelmente a comprovação de prejuízo por se tratar de nulidade relativa, o que não foi demonstrado. (EDcl no RHC nº 75.500/SP (2016/0231915-8), 5ª Turma do STJ, DJe 10.03.2017).
- Não configura nulidade a oitiva de testemunha indicada extemporaneamente pela acusação, como testemunha do Juízo. (AgInt no Ag. em REspe nº 705.692/DF (2015/0112677-8), 6ª Turma do STJ, DJe 19.12.2016).
- Embora o réu tenha direito a participar da produção da prova oral, a sua ausência é causa de nulidade relativa, cujo reconhecimento depende da arguição oportuna, bem como da demonstração do efetivo prejuízo por ele suportado. (HC nº 357.820/SP (2016/0141744-3), 5ª Turma do STJ, DJe 31.08.2016).
Existem outros exemplos inusitados, para não dizer trágicos, no que se refere às nulidades no processo penal. Três ilustrações bastam:
- A Súmula 523/STF: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. Nessa época em que uma avassaladora maioria que sai dos cursos de direito, que pululam país a fora, não consegue aprovação nos exames da OAB; da minoria que consegue, a maioria lança-se nos estudos do direito plastificado, resumido, esquematizado, mastigado e, porque não dizer, triturado. A culpa está nos concursos públicos, nos critérios do MEC para avaliação do ensino (jurídico) no Brasil, nas “produções científicas” em massa (ou em lattes) e assim por diante. Há uma co-culpabilidade de todos os envolvidos nesse processo. Nessa época em que o importante é o aqui e o agora, de maneira rápida, com poucas palavras, instantaneamente, o estudo detido, refletido, meditado, pesquisado, fica cada vez mais escasso. Aí vem a súmula e dá um verdadeiro incentivo às defesas deficientes. É como se reconhecesse que encontrar uma defesa eficiente (só defesas?) é das tarefas cada vez mais difíceis.
- A 5ª Turma do STJ, no Habeas Corpus nº 379.876/SC (2016/0308607-3), DJe 01.02.2017 – poderia ser outro julgado, há tantos – reiterou a ideia de que “a condenação, por si só, não pode ser considerada como prejuízo”. Ficamos a nos perguntar o que seria pior (prejuízo) para o acusado num processo penal do que ser condenado... A miséria da “teoria” das nulidades adotadas em nosso direito processual penal é tal que chega a esse ponto de reconhecer que nulidades ocorridas no curso do processo, ainda que tenha havido condenação, somente podem ser reconhecidas como tais por um raciocínio invertido: se houvesse um resultado favorável ao acusado em razão da declaração de nulidade do ato, então seria o caso de reconhecê-la. Ah, quantas coisas na vida podem ser cogitadas e sonhadas a partir dessa partícula “se”... É a passagem de um julgamento real (ocorreu) para um hipotético (se houvesse ocorrido), para a esfera das probabilidades.
- Para nós, a maior expressão de tudo que dissemos e exemplificamos está no entendimento reiterado da jurisprudência de que “o processo penal é regido pelo princípio do pas de nullité sans grief e, por consectário, o reconhecimento de nulidade, ainda que absoluta, exige a demonstração do prejuízo” (Vide, e.g., RHC nº 72.050/ES (2016/0154097-4), 5ª Turma do STJ, DJe 03.03.2017). Isso nos leva a uma síntese da miséria da “teoria” das nulidades no processo penal: só há nulidade se houver prejuízo, que não se opera só pela condenação e/ou pela defesa deficiente, inclusive nos casos de nulidade absoluta. É o entendimento “sumulado’ nas entrelinhas (ou nas linhas mesmas) da jurisprudência. Todas as digressões, classificações, subdivisões, parecem tornar-se absolutamente desnecessárias diante desse “princípio-mor” do direito processual penal brasileiro no que se refere às nulidades, agravado com o conceito de prejuízo construído no processo penal. Afinal, perguntamos, diante desse quadro, o que é isso – o prejuízo no processo penal para fins de nulidade?
Temos, com nossos próprios olhos, visto na rotina forense casos emblemáticos. E, pior, alguns com contribuições da defesa. Vêm-nos à memória dois casos que nos parecem exprimir essa miséria.
- No primeiro, constava no termo de audiência que o acusado se encontrava preso, mas não foi requisitado pelo juízo – num outro caso, houve a requisição, mas não foi apresentado por alguma razão (falta de viatura ou escolta) – e, apesar disso, a audiência de instrução realizou-se sem qualquer problema porque a defesa não apresentou nenhuma objeção e isso constou no termo. O direito do acusado de estar presente ao principal ato do processo, que é a produção da prova, foi-lhe negado. Estando sob a custódia do Estado, não poderia apresentar-se espontaneamente. Não pode presenciar os depoimentos, repassar informações importantes para seu defensor, repensar seu interrogatório. Foi impedido de praticar atos defensivos.
- No segundo, encerrada a instrução – e estivemos presentes nessa audiência – oferecemos as alegações requerendo a absolvição diante da insuficiência de provas. A defesa ratificou o requerido pelo ministério público e, alternativamente, requereu a desclassificação e a condenação a uma pena menor. A sentença absolveu o acusado. Este caso não trata propriamente de nulidade à primeira vista. Mas, na verdade, revela o seguinte quadro: nesse processo apenas a defesa requereu a condenação do acusado. Sabemos que muitos podem sair em defesa lembrando da redação do art. 385 do CPP. É exatamente essa contestação que aguardamos. A miséria das nulidades no processo penal brasileiro perpassa, não poucas vezes, imperceptível em dispositivos como esse, que, por sua vez, dão azo a requerimentos no mínimo esdrúxulos, embora “legais”, como o aqui comentado. Resultado: temos um processo penal em que a defesa foi a única a requerer a condenação do acusado.
Esse quadro, por si só, é suficiente para notarmos a necessidade urgente de abandono/reforma da disciplina legal (se é que ela existe) das nulidades do processo penal e, igualmente, uma construção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema. Há obras importantes no país que já têm detectado e alertado sobre isso. Talvez (e pensamos como certo), a origem do problema está no que concebemos como nascedouro do direito processual penal – o “primo pobre” do processo civil. Falamos em teoria geral do processo e usamos categorias do processo civil para lidarmos com o processo penal. Trazemos, com isso, a reboque, a “teoria” das nulidades. É necessário romper esse vínculo ou aproximação. Nos dois ramos lidam juízes, partes, questões, pessoas, bens, categorias, absolutamente diversas; e, por isso, não podem ter essa relação que se pensa ser umbilical. O Estado, por seus poderes e órgãos do sistema penal, tem grande responsabilidade nesse processo de mudança, mas aqui reside um problema que está um pouco antes daquele nascedouro – uma tradição que precisa ser identificada, dialogada e rompida. A defesa – e aqui nos restringimos, evidentemente, às situações antes indicadas e outras semelhantes – tem importância nessa ruptura. Cabe a ela não ceder, não negociar, não compactuar com essa miséria, a não ser que queira ser tão miserável quanto.
Notas e Referências:
[1] Todas as citações da obra de Carnelutti ao longo do texto foram extraídas da tradução feita por Isabela Cristina Sierra (CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Sorocaba, SP: Mineli, 2006).
. . José Edvaldo Pereira Sales é Mestre e Doutorando em Direito (PPGD/UFPA). Promotor de Justiça da Capital (Estado do Pará). . .
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