Por Gabriel Bulhões – 09/10/2016
Ao longo da nossa jornada, mas em especial no início dela, sempre precisamos de bons conselhos e de boas referências que as digam. Se não tivemos oportunidade de tê-las naturalmente, temos que buscar construi-las. Sempre busquei me espelhar naqueles profissionais que para mim conseguiam reunir técnica e ética em um contexto bem sucedido. E sempre fui muito atento aos ensinamentos desses mestres.
E um dos grandes conselhos que recebi (de um desses parâmetros de conduta profissional que me espelho) foi de nunca deixar de sustentar, em último grau, o direito do cliente. Essa é uma das maneiras de defender os interesses do constituinte, que muitas vezes é deixada de lado pela advocacia.
Por hábito, costumo ir às sessões da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do meu estado, e é forçoso perceber que a grande maioria dos pedidos (de Habeas Corpus, Apelações, entre outros) ali julgados não recebe a devida atenção dos seus procuradores. Falo isso, pois poucos são os casos em quê os advogados, mais ou menos experientes, mais ou menos eloquentes, sobem à tribuna para sustentar!
A sustentação oral é um momento gracioso para o postulante, que tem oportunidade de expor aos julgadores do órgão colegiado os motivos e fundamentos do seu pleito. Esse momento toma especial relevância diante da nossa realidade estrutural e hegemonicamente cultura do nosso Poder Judiciário: existe uma política de massificação dos julgamentos, com decisões “em lote” (sic), e uma pauta pré-construída pelos assessores que elaboram as minutas que muitas vezes o julgador apenas tem contato no momento de lerem seus votos (quando não “acompanham o relator”).
O advogado, pois, pode tirar o seu caso como um ponto fora da curva, chamar atenção dos julgadores para alguma questão mais específica e/ou única do seu processo. Assim, tem-se alguma chance de que a análise da situação do seu cliente seja vista sob uma ótica diferente da habitual, que por vezes é tão padronizada que lembra uma mecanização (ou robotização).
Feitas essas considerações iniciais, tenho que, por dever profissional e obrigação moral, nunca deixei nem espero deixar de sustentar em todas as oportunidades possíveis, o direito dos meus clientes. E disso existem algumas consequências possíveis, como: i) revisão de posicionamento do relator já preparado em minuta de voto antes da sessão; ii) geração de divergência a partir do voto do revisor ou do(s) vogal(is); iii) levantamento de questão de ordem em favor das liberdades/garantias pelo representante ministerial (o que é louvável e possível, mas que eu particularmente nunca vi); ou iv) pedido de vista, com revisão (ou não) posterior de posicionamento, do revisor ou do(s) vogal(is). Ateremos-nos a essa última hipótese possível.
Voltando, assim, ao meu primeiro caso que realizei sustentação oral, tínhamos uma prisão em flagrante envolvendo um jovem de 19 anos de idade e uma adolescente de 16 anos, que foram interceptados em uma motocicleta próximos a uma das praias da cidade. Com 25 gramas de maconha.
A droga, segundo consta na versão apresentada pelo casal, seria consumida em conjunto em uma praça próximo dali, e havia sido comprava há pouco na praia, pela quantia de R$ 50,00 (cinquenta reais). Não foram apreendidos outros materiais ilícitos. Ou dinheiro em grande quantidade. Ou balança de precisão. Armas. Nada. Nenhum outro elemento, sequer indiciário, o qual apontasse que aquela droga seria comercializada. Apenas outros utensílios relacionados ao uso da droga (papel de seda, isqueiro e um “triturador”) e a fala de um dos policiais que indicou o flagranteado como uma figura conhecida do tráfico na região.
Remetido o Auto de Prisão em Flagrante (APF) ao plantão judiciário, a prisão em flagrante é convertida em preventiva com base na “ordem pública” em razão do risco de reiteração delitiva apontado no depoimento do condutor/testemunha (policial). Detalhe: por um juiz de regular atuação em uma vara cível, que pela disposição das escalas de plantões do nosso tribunal, se ocupa igualmente de questões criminais e, por exemplo, familiares ou de saúde (mas isso é tema para outro texto).
Impetrei, pois, de pronto, um Habeas Corpus no Tribunal de Justiça alegando constrangimento ilegal do juiz plantonista. Apesar de não banalizar o pedido liminar em HC´s (pleiteando-o apenas em hipóteses em quê há chance real de deferimento), nesse mandamus não fui agraciado na “antecipação dos efeitos da tutela” para afastar a custódia cautelar, de forma que precisava confiar no julgamento de mérito.
No caso específico dos HC´s, os quais independem de inclusão em pauta para serem julgados, é importante o advogado redobrar sua atenção para não quedar-se inerte quando devia estar a sustentar. Digo isso por que muitas vezes os advogados somente sabem do julgamento dos seus HC´s, quando são intimados dos acórdãos, deixando passar, portanto, as oportunidades de sustentação.
É salutar, então, um acompanhamento de proximidade desse tipo de pedido (de rito especial, célere), sendo necessário saber exatamente quando o writ está maduro para julgamento (em regra, ocorre após o (in)deferimento da liminar, com a prestação das informações pela autoridade apontada como coatora, e o parecer do parquet). Assim, podemos nos antecipar e estar presentes e sustentar oralmente as razões dos nossos pedidos veiculados através do remédio heroico.
Acompanhando o sistema virtual de processos do tribunal, pude perceber quando o feito retornou da Procuradoria Geral de Justiça (Ministério Público Estadual de segundo grau). Estava, portanto, maduro para ser julgado. Cabia-me, então, participar das sessões subsequentes do órgão julgador, a fim de verificar a inclusão do feito em pauta, me inscrevendo para sustentar.
Lá estava eu preparado (?) para minha primeira sustentação oral, sem ter a certeza se seria naquele dia mesmo. Terça-feira, 8 horas da manhã: religiosamente inicia-se o dia de trabalhos do órgão fracionário com competência para matéria criminal em nosso tribunal local. Após a abertura da sessão, procurei me informar junto ao meirinho sobre a pauta de julgamento, estando aí a confirmação: meu pedido ia ser julgado, e já que eu estava ali seria um dos primeiros.
É práxis em alguns de nossos tribunais que os processos que possuírem advogados aptos e dispostos a sustentar devem ter preferência no julgamento dos demais: de toda justeza, pois evita que os causídicos percam longos períodos de tempo acompanhando o deslinde de diversos outros casos que não os que lhe interessam. De certa forma, isso funciona por que a grande maioria dos advogados, como já disse, não aproveitam esse momento para – mais uma vez – levantar a voz pelos clientes. Precisamos mudar essa cultura, começando pela formação dos nossos estudantes nas Faculdades.
No meio de quase meia dúzia de colegas advogados(as) e uma turma inteira de graduação (que costuma ir a essas sessões a fim de certificar horas complementares para suas faculdades), fui um dos primeiros a ser chamado. O frio na barriga, a tremedeira e outros sintomas do nervosismo estavam inconvenientemente presentes (e me acompanham em menor ou maior grau, e acompanharão sempre: a única diferença é que aprendemos a lidar com eles).
Sem querer passar qualquer tipo de fórmula ou manual para sustentar (até por que estaria longe da minha competência qualquer pretensão nesse sentido), peço a liberdade de pontuar algumas questões pequenas, mas de toda relevância.
É preciso acompanhar a solenidade que o momento exige. Dessa forma, iniciar a fala cumprimentando – formalmente – todos os presentes (os desembargadores, representante ministerial, serventuários da justiça, colegas advogados(as) e os demais) pode ser uma forma de vencer o nervosismo inicial, possuindo uma chance alta de sua desenvoltura estar já nesse momento em outras condições.
Após esse momento inicial, com a fala e a postura mais fluída, é relevante manter a lógica e a coerência da argumentação, sendo o ideal seguir a ordem dos argumentos expostas na petição (começando pelas preliminares e questões prejudiciais, se houver, passando pelas razões e argumentos esposados, finalizando com uma recapitulação dos pedidos ponto-a-ponto).
Foi exatamente o que fiz nesse dia e, apesar de todo o nervosismo, a fala saiu conforme o script. Após finalizar, quedar-se firme na tribuna para eventualmente esclarecer alguma dúvida ou consignar alguma questão de ordem até o final do julgamento é algo também aconselhável (pois muitos advogados descem e retiram suas “becas” após o fim de suas falas, sem esperar o resultado final ainda ali, o que pode ser interpretado até mesmo como falta de educação pelos julgadores).
Após o voto do relator, que não se alterou uma vírgula do que estava pré-concebido desde antes da sessão se iniciar, minha surpresa: o revisor pediu um voto-vista! Isso significava que, de alguma forma, eu o havia tocado a perceber naquele caso algo diverso do que estava sendo posto até então. Assim, claro, me enchi de esperança!
Na sessão seguinte, depois de exatos sete dias, estávamos todos lá de novo para mais uma sessão, na qual o revisor do meu processo incluiu novamente na pauta o julgamento, pronunciando que seu entendimento era por abrir a divergência, em razão de não ter encontrado elementos concretos que justificassem a cautelar extrema, votando pela substituição da prisão preventiva por outras medidas cautelares. O posicionamento foi seguido pelo vogal e o voto do relator restou vencido.
Assim, nesse dia, mais uma lição: nossa missão é defender a justiça do que acreditamos até o último momento, até o último recurso, mesmo na improbabilidade de êxito, pois a sensibilidade e o toque do detalhe podem vir a todos, em qualquer momento, a qualquer hora.
No processo penal brasileiro temos um contexto caótico, que é a babel de sentidos dentro de cada Processo Penal, aplicado a partir da visão de cada julgador (singular ou colegiado). Como nos diz a teoria do caos a partir da visão de Edward Lorenz (efeito borboleta), ao tomarmos uma atitude – por mínima que seja, considerada muitas vezes insignificante –, com plena espontaneidade, podemos gerar uma transformação inesperada em um futuro incerto. Daí a importância de não subestimar as ferramentas que estão ao nosso alcance.
Foi o ocorrido, e graças a isso meu cliente pôde responder em liberdade até o desfecho que o considerou do processo, tendo sido considerado culpado do crime do Art. 28 (descaracterizando, por conseguinte, o delito insculpido no Art. 33 da Lei 11.343/2006). Pude sorrir após isso, por ter feito a diferença na vida de outro alguém.
. . Gabriel Bulhões é Advogado criminalista militante, atual Presidente da Comissão dos Advogados Criminalistas da OAB/RN, especialista em Ciências Criminais e Professor de Processo Penal. .
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