A maioridade penal e a argumentação: ressignificar a Constituição?

10/11/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 10/11/2015

Olá a todos!!!

Ayelet Shaked, a ministra da Justiça de Israel, propôs ao Parlamento, por intermédio de um projeto de lei, a redução da idade mínima de prisão para 12 anos para crianças que estiverem “envolvidas em atos de terrorismo”. A proposta foi feita em um momento de comoção, após um adolescente palestino de 13 anos ter esfaqueado, junto com seu primo de 15, um israelense de 13 e outro de 24 anos. O primo foi morto pela polícia, mas o adolescente ficou ferido e foi detido.

A discussão em torno da possibilidade de aplicação de reprimendas penais aos adolescentes não é nova, principalmente no Brasil em que, como se sabe, apenas se aplicam medidas sócio-educativas aos menores de 18 anos de idade. Em Israel, embora a atual legislação disponha que os menores possam ser incriminados a partir dos 12 anos, só podem ser enviados à prisão a partir dos 14[1].

A questão de fundo pertinente à redução da maioridade penal é rica, complexa e envolve diversos aspectos relacionados ou não às crianças e adolescentes. Eis alguns: a política carcerária, que deverá ser reestruturada acaso se admita a prisão de menores de idade; a educação, o Judiciário, em seu aparelho interdisciplinar que lida diretamente com a faixa etária afetada; entre outros possíveis de se cogitar.

Há, ademais, a questão constitucional a trabalhar, que, ao que parece, deve também considerar o ponto de vista da norma acaso a questão venha a ser levada às Cortes. Isso porque se, de um lado, a maioridade penal relativizada, no Brasil e alhures, encontra como seu primeiro ponto de contato no debate a linha argumentação factual lançada no sentido de que a violência envolvendo adolescentes, sobretudo, é crescente e não apresenta sinais de estabilização ou queda, por outro enfoque é de se questionar se este aspecto deve mesmo ser levado em consideração para fins de formação da linguagem decisória que diga respeito à (in)admissibilidade da sanção criminal também a esta faixa etária.

De certa forma, assim, a questão interessa também à teoria da norma, uma vez que, reconhecida a possibilidade da inserção de elementos factuais, pragmáticos ou simplesmente empíricos no seio da formação e consideração do direito posto[2], por bloqueio argumentativo este dado teórico haverá de ser hic et nunc levado em consideração em outros momentos decisórios[3].

Esta parece, em primeira visada, uma discussão estéril e o leitor que avançou até este momento decerto está pensando que o colunista acabou de desembarcar no Brasil e, como parece evidente, jamais leu qualquer precedente das Cortes brasileiras, em especial do Supremo Tribunal Federal que, em iterativos casos, já deixou claro o seu posicionamento quanto a admissibilidade de discussões fáticas no âmbito da constitucionalidade de normas questionadas sob o manto da premissa constitucional de referência.

Bem, esta pode ser uma forma de ver o assunto, mas um futuro embate na Corte Suprema envolvendo a constitucionalidade de norma que, aprovada no Parlamento, admita a imposição de sanção criminal aos menores de 18 anos conterá em seu bojo um elemento distintivo em relação a todos os demais casos já analisados em que as questões factual, empírica ou pragmática já foram considerados, quer a título de obiter dictum, quer como ratio decidendi. É que, nesta situação, estaremos diante da possibilidade de se introduzir como critério argumentativo decisório o ser na formação do dever-ser. O raciocínio dedutivo baseado em premissas estará, acaso assim se proceda, definitivamente reconhecido como insuficiente para o trato das questões de índole complexas, interdisciplinares ou ricas em contextualização dinâmica. Ao revés, poderá ceder passo, conforme a forma como desenvolvido o assunto na Corte, à pragmática no âmbito da norma, à tópica enquanto forma de ver o direito, ou, quiçá, até mesmo à de análise dinâmica que decorre da leitura da Constituição viva.

Estas são apenas algumas possibilidades a demonstrar algo muito mais complexo: que a própria Constituição pode acabar sendo lida, significada e ressignificada à luz de argumentos situados em quadrantes decisórios.

A afirmação, se lida isoladamente, ou de maneira descontextualizada, pode parecer uma nota de aplauso ao arbítrio, ainda que oriundo do Poder Judiciário, ou até mesmo uma direta e clara mensagem à utilização da retórica sofista para fins de obtenção do Poder outorgado pelo povo, por intermédio da Constituição, aos Poderes constituídos. Duas breves observações, porém, contrárias a este modo de pensar: i) em primeiro lugar, não aparenta, relendo precedentes recentes oriundos da Suprema Corte brasileira, que deixe de existir espaço para o pensamento ora veiculado; ii) a Constituição integra o quadro normativo em vigor que, evidentemente, está sujeito a interpretação e análise. Sob a veste, portanto, do exame e leitura dos preceitos normativos constitucionais, poderá estar sendo desenvolvida e trabalhada a própria norma Constitucional, ainda que assim não se revele expressamente; e, nem por isso, a decisão que assim proceda deverá ser considerada como produto de arbítrio.

Para que tal não ocorra, a tônica da discussão deve mudar. De nada adiantará verificar se a decisão encontra-se fundamentada, se carente de argumentação; assim como pouca importância haverá, para fins de legitimidade, se o discurso decisório aparentemente ajusta-se aos dados trazidos pelo direito posto, se em seu meta-discurso, no nível da metalinguagem, afigura-se completamente apartado das exigências mínimas da argumentação: coerência, imparcialidade argumentativa e racionalidade.

A complexidade que os conflitos trazem à baila demandam, na outra ponta da linha, decisões complexas, assim entendidas não aquelas que discorrem sobre os inúmeros posicionamentos doutrinários pátrios e estrangeiros acerca de determinado tema e, para enriquecer o julgado, citam decisões de todas as partes do mundo; também não podem ser assim vistas aquelas decisões que se atém a rememorar inúmeros precedentes da Corte enquanto forma de comprovar uma consistência e coerência que, na origem, pode estar viciada. Ao revés, decisões que pretendam resolver conflitos complexos devem desatar esta complexidade ao nível da sua formação argumentativa, apresentando um discurso dialogicamente comprovável e aferível, tanto no âmbito da linguagem imediatamente disponível para análise, como naquela que significa o seu pilar de sustentação.

Critérios procedimentais aliados a sustentações fáticas e jurídicas devidamente alocadas em momentos adequados permitirão, aliados a observância de requisitos argumentativos mínimos, o incremento da legitimidade decisória, mesmo nos momentos em que a pragmática da norma constitucional deva ser inserida como fiel da balança para a decisão de um caso complexo, qual o da diminuição da maioridade penal.

Do contrário, viveremos incertezas não de leis, mas de julgados; não de normas postas, mas de soluções pressupostas; não de decisões, mas de achismos decisórios. E, assim caminhando, quem sabe não discutamos algum dia a responsabilidade criminal de crianças, animais, ou até fetos recém-nascidos que causaram o falecimento de sua mãe ao momento do parto. Tudo ao sabor da conveniência do momento...

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] A íntegra da notícia pode ser encontrada em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/10/ministra-de-israel-quer-permitir-prisao-de-criancas-partir-de-12-anos.html Acesso: 19/10/2015.

[2] Para uma interessante visão sobre o tema: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1978. E, também: MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Tradução de Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2011.

[3] “Bloqueio argumentativo” é uma técnica da argumentação que garante que casos iguais sejam julgados de maneira igual e aqueles diversos tenham o sinal diferencial evidenciado. Também é conhecida como “princípio da imparcialidade argumentativa”, “inércia perelmaniana”, ou “coerção da justiça formal”, dependendo do marco teórico que se tenha como referência.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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