Por Soraia da Rosa Mendes – 13/03/2017
Como bem já afirmava Juarez Cirino dos Santos nos idos da década de oitenta, no célebre Raízes do Crime, a realidade criminológica na América Latina pode ser definida como a repressão impiedosa das classes dominadas, para as quais existem os Códigos Penais e outras leis especiais ainda mais rigorosas, a polícia, os tribunais e as prisões; e, de igual sorte, pela imunidade das classes dominantes por suas práticas criminosas contra a vida, a saúde, a integridade e o patrimônio do povo, abrangida pela criminalidade do colarinho-branco.[1]
Pois bem: mais de trinta anos passaram desde a publicação da obra, veio à luz uma nova Constituição, e a constatação de Juarez Cirino ainda se faz atual.
Neste abril de 2017, no mesmo passo em que os jornais estampam a antes chamada “Lista de Janot”, agora rebatizada “Lista de Fachin”, pelos corredores do Congresso Nacional, também ganham corpo negociações para (re)alinhamentos políticos que busquem garantir a impunidade dos implicados. E, no gabinete da Presidência da República, estratégias são desenhadas para que permaneçam em seus postos, dentre outros[2] ministros agora investigados, ninguém menos que Eliseu Padilha (PMDB), da Casa Civil, e Moreira Franco (PMDB), da Secretaria-Geral da Presidência da República.
O coração governo foi atingido, mas as palavras de ordem nos palácios em Brasília é “ganhar tempo” e “acelerar” o já frenético ritmo dos projetos de reformas avassaladoras de direitos de trabalhadores e trabalhadoras.
Pela imprensa, no dia da divulgação da lista, um repórter da Globo News, ao vivo, em meio à repercussão das citações dos mais importantes nomes do atual governo nas delações, faz referência à entrada, naquele instante, de Alexandre de Moraes no Palácio do Planalto. Sem polemizar, sem perguntar nada, sem nenhuma curiosidade (característica cantada em prosa e verso como própria de jornalistas), e sem, ao menos, ruborizar, a comandante do jornal daquele horário na emissora, ao ouvir a informação vinda de fora do estúdio, apenas relembrou que Moraes “foi indicado pelo Presidente Temer, fez parte do governo, e sempre foi seu aliado”.
O que será do Brasil nos próximos meses? Ou, o que sobrará desta já em frangalhos república nos capítulos seguintes do livro de nossa história?
Estão escancaradas as relações que na cúpula dos poderes no Brasil ligam os presidentes da Câmara e do Senado[3], os mais importantes ministros do governo Temer, e políticos, antes vorazes defensores da moralização do país, que agora têm seus nomes estampados nos jornais[4]. Por outro lado, a Lava-Jato, por mais que as didáticas denúncias em powerpoint tentem ilustrar, não é a salvação do país.
Longe disso, o que os resultados dos acordos de delação premiada, vindos da República de Curitiba, têm demonstrado é um processo seletivo de execução penal a la carte[5] aos “colaboradores” dos quais as longas penas em regime fechado, conhecidas pelos/as pretos/as e pobres brasileiros, estão muito distantes.
Em resumo, a violência institucional, “produzida direta ou indiretamente pelas instituições políticas do Estado, como aparelhos do poder organizado de classe (e, acrescento eu, de raça e gênero) que garantem a disciplina das relações sociais conforme exigências e necessidades do poder estabelecido (...) e os aparelhos ou órgãos judiciários e administrativos que aplicam sanções ou medidas legais aos casos concretos de violação ou transgressão da disciplina legal das relações sociais”[6], é a dura realidade com a qual ainda nos defrontamos.
Como sói acontecer em um lugar do globo definido por desigualdades gritantes, no Brasil, os rostos por traz das grades são corpos marcados conforme a classe social a que pertencem, os tons escuros de suas peles e seu gênero, em garantia dos interesses político criminais daqueles/as que historicamente mantêm-se em posição de comando na política e economia brasileiras.
Notas e Referências:
[1] Segundo o autor, dentro do segundo aspecto ainda poderia ser citada , bem como, a imunidade complementar do terror institucionalizado (nos dias atuais representado pelas chacinas e torturas que a olhos vistos seguem impunes), o genocídio indígena, o trabalho escravo etc. O terceiro aspecto seria a sutil violência do imperialismo ideológico “que impõe o consumo de teorias importadas que esta está na base do conformismo mimetista irresponsável da maioria dos intelectuais e ‘teóricos’ latino-americanos, imersos no descaso pelo funcionamento da justiça criminal, caracterizada pelas distorções de classe que explicam a aplicação seletiva e diferencial das leis penais” (SANTOS, Juarez Cirino. Raízes do Crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984. Pp. 71).
[2] São também investigados: Gilberto Kassab (PSD), da Ciência e Tecnologia, Helder Barbalho (PMDB), da Integração Nacional, Aloysio Nunes (PSDB), das Relações Exteriores, Blairo Maggi (PP), da Agricultura, Bruno Araújo (PSDB), das Cidades, Roberto Freire (PPS), da Cultura, e Marcos Pereira (PRB), da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
[3] Tanto Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara dos Deputados, quanto Eunício Oliveira (PMDB) serão investigados a pedido da Procuradoria-Geral da República.
[4] Na lista de Fachin estão os senadores Aécio Neves (MG), presidente do PSDB, Romero Jucá (RR), presidente do PMDB, além do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), ex-presidente do Senado.
[5] LOPES JR. Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2016. Pp. 180.
[6] SANTOS, Juarez Cirino. Raízes do Crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984. Pp. 96.
. Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e pós-doutoranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. .
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