A lei 12.971/14 e o conflito entre os art.(s) 302, §2º e 308, §2º do CTB: As incoerências legislativas tradicionais

15/12/2015

  Por Yuri Carneiro Coêlho - 15/12/2015

A lei 12.971/14 alterou o CTB e dentre suas modificações iremos nos deter naquela que compreendemos mais relevante, qual seja, o conflito existente entre as normas do art. 302, §2º e do art. 308, §2º do CTB. Apesar de não ser esta “novidade” um “assunto de momento”, as implicações jurídicas são sérias e não devem cair no esquecimento de nossos debates, ou seja, é preciso termos em consideração que os equívocos legislativos não podem ficar como se nada tivesse acontecido, anestesiando juridicamente nosso pensamento.

O delito de participação em racha do art. 308 tipificou, “participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada” e quando for qualificada pelo resultado morte, não sendo hipótese de dolo eventual, o art. 308, §2º diz que, “se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo”.

O que temos que observar claramente, portanto, depois da leitura do dispositivo é que o legislador criou a figura da “participação em racha qualificado pela morte culposa”. Ora, neste caso então, surge a indagação. O delito do art. 308, §2º do CTB não se afigura com o mesmo conteúdo do art. 302, §2º do CTB, em sua segunda parte, que, diz ser qualificado o homicídio culposo “se o agente...participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística...não autorizada pela autoridade competente”? Não temos dúvida que, ontologicamente, estamos tratando da mesma conduta, tendo o legislador se repetido, com algumas palavras diversas e em ordens distintas.

Primeiramente deve-se salientar que, o elemento definidor da identidade de conteúdo de duas normas não será apenas a similitude de expressões linguísticas, mas, sim, o conteúdo que estas expressões trazem e sua finalidade, seu sentido, o contexto histórico cultural em se inserem, não sendo adequada uma mera interpretação gramatical para alcançar o sentido integral das normas jurídicas.

O legislador criou em tipos penais distintos, condutas de conteúdo idêntico, causando um conflito real – e não aparente – dentro do nosso sistema normativo. O agravamento desta “barbeiragem legislativa” se encontra, portanto, na imputação de penas completamente distintas a situações idênticas, ou seja, as partes que compõe os artigos e que dizem respeito à morte culposa causada em participação na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, com penas de 2 a 4 anos (Art. 302, §2º do CTB) ou de 05 a 10 anos (Art. 308, §2º do CTB).

Qual critério deve ser utilizado então para a resolução deste conflito? Inicialmente, cumpre apontar que não se resolverá pelo critério da especialidade nem tampouco por critério temporal, posto que, primeiramente, nenhuma das duas normas contém características de especialidade em relação à outra, em segundo, porque entraram em vigência ao mesmo tempo, integrando a mesma lei, não existindo distinção temporal entre ambas.

Compreendo então, que a única possibilidade será a aplicação da norma do art. 302, §2º do CTB, em face da incidência do princípio da legalidade material. Isto se justifica porque o alcance do princípio da legalidade não se limita apenas à compreensão de que ele veda a criação de delitos e penas que não seja por meio de lei e sim que ele veda o tratamento mais prejudicial ao réu quando este não foi realizado por meio de lei, violando-se, neste caso, portanto, o conteúdo material do princípio que se compreende em uma escala de valores que impede tratamento mais gravoso que não seja claro e sem contradições na norma jurídica, evitando sua imprecisão.

O novo modelo de Direito Penal que precisamos construir deve ser pautado na construção dos valores constitucionais emergentes, concretos, sob pena inconstitucionalidade das normas infraconstitucionais. Conforme Friedrich Muller “legítima é a atuação do Estado, no caso, uma lei, quando, com base no critério de aferição da Constituição (primeiro grau) e pela via da ação legal (segundo grau), as normas centrais e os princípios estruturais da constituição, bem como os textos constitucionais individuais afetados tiverem sido respeitados, finalmente, em termos de conteúdo (terceiro grau); e quando continua sendo permitida uma discussão aberta, livre, baseada em argumentos, sobre essas questões. Isso – os critérios do primeiro grau, mais os do segundo, mais os do terceiro grau – é constitucionalidade lato senso”[1].

Infelizmente, esta é a realidade de nosso sistema normativo, cada vez mais retalhado e construído sem um mínimo sentido sistemático, lógico e coerente com um direito penal de garantia, incidindo permanentemente em inconstitucionalidades e tratando aspectos referentes ao respeito à nossa Constituição como se fossem elementos de menor importância.


Notas e Referências:

[1] MÜLLER, Friedrich. O significado teórico de “constitucionalidade/inconstitucionalidade” e as dimensões temporais da declaração de inconstitucionalidade de leis no direito alemão. Palestra proferida em 19/9/2002 em evento sobre Sistemas de Controle de Constitucionalidade, promovido pela PGM em conjunto com a Faculdade de Direito da UERJ, Trad. por Peter Neumann. Disponível em: <http://www. rio.rj.gov.br/pgm/>. Acesso em: 20 jun. 2007, p. 3.


Yuri Carneiro Coêlho

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Yuri Carneiro Coêlho é Mestre e Doutor em Direito pela UFBA. Professor de Direito penal Unijorge / Ruy / Estácio (SSA) e FAN (FSA). Professor das Pós-Graduações em Direito Penal da UCSal / SSA e do Damásio Educacional (SP). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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