A judicialização da palavra “golpe”

23/05/2016

Por Samuel Mânica Radaelli – 23/05/2016

“O que é que eu posso fazer Com a minha juventude Quando a máxima saúde hoje É pretender usar a voz?...”

Conheço meu lugar, Belchior

A controvérsia em torno da natureza jurídica e política, ou apenas política como entendem alguns, do processo de impeachment, desaguou em uma controvérsia semântica, no tocante a compreensão do processo como golpe. O uso deste vocábulo para designar a cassação da presidenta tem provocado polêmica tão grande quanto o evento. A pretensão de barrar o seu uso tem desencadeado fatos que espantam e por isso provocam o pensamento.

O Prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, em visita ao Senado da República, proferiu um discurso sobre o tema, ao usar a palavra Golpe provou da etiqueta e diplomacia daqueles que pugnam pela saída de Dilma, além da pouca polidez, ao final veio a exigência de retirar das notas taquigráficas tal vocábulo por ele usado. Este fato ilustra bem o esforço, feito também pela mídia, em emudecer as vozes que o usam, ao mesmo tempo trata de reiterar as falas que tentam desmentir a palavra inadequada.

No âmbito da Suprema Corte, alguns membros, de forma preventiva e falando fora do autos, se empenharam em esclarecer que não há golpe e principalmente criticar o uso da expressão. Por continuidade, chega-se a interpelação judicial criminal ajuizada pelos Deputados Federais: Júlio Luiz Baptista Lopes, Carlos Henrique Focesi Sampaio, Pauderney Tomaz Avelino, Rubens Bueno, Antônio José Imbassahy da Silva, Paulo Pereira da Silva, junto ao STF contra Presidenta afastada.

Feita nos seguintes termos: “ao comportar-se da maneira como vem fazendo, a Senhora Presidente da República deixa toda a nação em dúvida, recomendando, portanto, a presente interpelação, a fim de que possa explicar qual a natureza, os motivos e os agentes desse suposto “golpe”, por Sua Excelência alardeado”, bem como “(...) urge delimitar as insinuações feitas no sentido de que membros da Câmara dos Deputados estariam possivelmente implementando um golpe de estado. Essas afirmações dão margem a interpretações diversas, sobretudo àquelas de cunho negativo para as Instituições democráticas brasileiras. Assim, lastreado em tais razões, que se reclamam elucidações indispensáveis”. Esta interpelação judicial foi aceita pela Ministra Rosa Weber, sendo determinada a intimação da interpelada.

Diante da acolhida desta ação, considerando ainda, que o STF tem manifestado majoritariamente a possibilidade de apreciação das questões formais do processo em tramitação no Congresso, tem-se o fato de que o mérito do processo de impeachment não pode ser judicializado, mas sua semântica sim. Seria irônico se tal fato não ocorresse em um contexto dominado pelo cinismo, expresso de forma contumaz, por aqueles que praticam “pedaladas fiscais” e promovem o indiciamento da chefe do Executivo Federal por isso, ou ainda por ministro do STF que almoça com réu.

O espanto pergunta: qual a razão do uso de uma palavra causar tanto mal-estar?

Trata-se de uma tentativa de retirar das notas taquigráficas da consciência uma interpretação dos fatos presentes, buscando fugir do rigor da história. Soma-se a isso, a pretensão de convencer da legitimidade deste evento, usando para isso a repetição incessante de mantras como: “as instituições funcionam bem”, “a Constituição prevê”, bem ao estilo daqueles que ganham dinheiro e mandato berrando em nome de Jesus.

Os que tentam vedar o uso da palavra golpe são os mesmos, que até a pouco, lutavam renhidamente para tirar o substantivo “presidenta” do vernáculo. O autoritário não suporta determinadas palavras, pois elas são a presença do mundo que a linguagem institui, revela e carrega, vê-se agora no STF a tentativa de controlar uma palavra, com intuito de domesticar os sentidos que a linguagem produz.

Ao que parece, a misofonia política pode tornar mais tonitruante o som desta palavra.


Samuel Mânica Radaelli. Samuel Mânica Radaelli é Doutorando em Direito (UFSC), Mestre em Direito Público (UNISINOS), Professor do Instituto Federal do Paraná – IFPR e advogado. Membro do Grupo de Estudos Direitos Sociais e América Latina – GEDIS. Email: radaelliadvocacia@yahoo.com.br. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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