A invenção do Nordeste e do western nordestino

29/04/2016

Por Elpídio Paiva Luz Segundo – 29/04/2016

Nordeste. Palavra agreste. Cabra da peste. A criação do nordeste e o do arquétipo do nordestino são recentes. Em 1926, o manifesto regionalista do Recife[1], que abrangia intelectuais do porte de José Lins do Rego, Raquel de Queirós, Graciliano Ramos, dentre outros, pretendia recuperar valores e tradições de uma região que, da condição de centro, no período colonial, passou, com a República, a exercer um papel secundário, seja do ponto de vista político, econômico, cultural ou simbólico.

Ao tratar da cultura do açúcar, que teria produzido ricos doces e trato social ameno (que está na base do mito do brasileiro pacífico/cordial), ou, ainda, do elogio à música, à cozinha e ao artesanato locais, em oposição à imitação servil do estrangeiro, Gilberto Freyre[2] assinalara que o movimento pretendia inspirar um novo modo de organização do Brasil.

Em linhas gerais, o manifesto criticava o modismo de se adotar costumes, leis, instituições políticas, hábitos de consumo alienígenas, sem observar as características geográficas, políticas e sociais do país, seja na organização econômica, no cancioneiro popular, na comida, no trabalho dos artesãos, na paisagem urbana da cidade, no tratamento social, nas roupas e vestuários.

O texto indica também a presença intelectual na vida pública de personalidades regionais que ganharam projeção nacional, tais como: José de Alencar, Joaquim Nabuco e Capistrano de Abreu, e reforça a ideia de legado e de uma cultura regional a ser defendida e desenvolvida[3].

Os participantes do Congresso de Recife estavam inseridos na discussão sobre o movimento modernista no Brasil e não poderiam imaginar a miríade de vozes que incorporariam o conceito de “Nordeste”, tornando-o equívoco e até mesmo um adjetivo pejorativo: "nordestino", que se cristalizou como falso enigma ou preconceito (no sentido do ato de julgar sem conhecer o que se julga).

Pois bem. Os autores da literatura regionalista dos anos de 1930, que abordaram, em tom de denúncia, as clivagens entre o sertão e o litoral estão nas raízes do cinema novo, que fora capitaneado por Glauber Rocha, bem como da Tropicália, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que são responsáveis, em alguma medida, pela noção de Nordeste/nordestino hoje existente.

É comum, desde os anos de 1950, a ideia de Nordeste como lugar da pobreza, da corrupção, do atraso e de terra sem lei. Como isso ocorreu? Há pistas que podem auxiliar para um melhor entendimento do assunto.

Segundo João Carlos Teixeira Gomes[4], o filme “O cangaceiro” (1953), de Lima Barreto, proporcionou uma das poucas ocasiões em que o cinema brasileiro obteve repercussão no exterior, antes dos anos de 1960. A obra, apesar das críticas e de uma suposta idealização “hollywoodesca”, inaugurou o ciclo cinematográfico do cangaço[5].

No início dos anos de 1960, o Cinema Novo ganhou impulso nos criativos e conturbados dias do governo de João Goulart, não porque houvesse incentivo do Estado, mas por uma ebulição de ideias no cinema, no teatro e na música, sendo esta animada pelos festivais de televisão.

Películas como “O pagador de promessas” (1961), de Anselmo Duarte, “Vidas Secas” (1963-1964), de Nelson Pereira dos Santos, e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme emblemático de 1964, trouxeram consigo a ideia de Nordeste como faroeste, nordestern[6], terra sem lei, de violência e crueldade, traçando-o como imagem unívoca e totalitária. Além disso, os filmes inscrevem a presença do messianismo em uma sintaxe de bangue-bangue de sabor nacionalista.

Em “A estética da fome”, Glauber Rocha[7] afirma que:

[...] o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagem roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo.

À vida rural, pobre, às figuras do jagunço, do beato e do coronel, opõe-se a vida urbana, alegre e bela da então capital federal (Rio de Janeiro). A compreensão do manifesto regionalista do Recife é rasurado. Muda-se a coloração do debate, pois, não se trata mais de reconhecer a diversidade entre as diferentes localidades do país, mas fixa-se o discurso do “nós” e do “eles”, a dualidade como chave de interpretação dos problemas do Brasil, que é de longa tradição, quais sejam: o sertão e o litoral (Euclides da Cunha), o semeador e o ladrilhador (Sérgio Buarque de Holanda), a casa grande e a senzala (Gilberto Freyre), o senhor e o escravo (Caio Prado Júnior) o patrimonialismo do Estado e a virtude do mercado (Raymundo Faoro), o desenvolvimento e o subdesenvolvimento (Celso Furtado), a casa e a rua (Roberto Damatta), dentre outros.

O discurso do Nordeste como lugar exótico, de uma terra sem lei, corrupta e sem ordem, é endossada, paradoxalmente, pela filmografia do cinema novo, ainda que o escopo dos cineastas fosse de denúncia social e não de reafirmação. O mesmo pode se dizer da tropicália, que reanimou o mito “Bahia, terra da felicidade”, originariamente, um verso da música de Ary Barroso intitulada “Na Baixa do Sapateiro”, composta em 1938, no período estadonovista, imortalizada na voz de Carmen Miranda, e, mais tarde, nos registros de João Gilberto e de Caetano Veloso.

Essa ideia contrasta com o Sul opulento, das instituições sólidas e do trabalho. Para corroborar o argumento, Jessé de Souza[8], na recente obra “A tolice da inteligência brasileira”, afirma que os textos das ciências sociais no Brasil são invocados como um mantra para justificar situações históricas de exclusão. Essa postura contribui para a criação de arquétipos frágeis, como o do caipira, do nordestino, do seringueiro, do vaqueiro dos pampas, e outros mais, visto que uma sociedade política não comporta tipos estáticos, encontráveis na natureza, mas são, em considerável parcela, construídos socialmente.

Neste sentido, a tese da singularidade cultural brasileira é quebradiça, pois pretende articular, de modo absoluto, a existência de um povo com atributos ímpares, exclusivos, que funcionariam como uma “segunda pele” para os brasileiros[9].

Ademais, o Nordeste, como espaço geográfico, tem certidão de nascimento. O Estado Novo estabeleceu a primeira divisão regional do Brasil, em cinco regiões. Eram elas: Norte, Nordeste, Leste, Sul e Centro-Oeste. Como se vê, não há um ethos nordestino, mas a fabricação de um conceito que tinha o objetivo de enquadrar o sistema dos coronéis[10] em torno de uma sociedade de massas dirigida por um líder carismático, Getúlio Vargas.

O nacionalismo varguista incorporou as sugestões do manifesto regionalista, que se baseava nas regiões, e validou diferentes concepções econômicas e culturais. Os tipos ideais da baiana, do vaqueiro, do jangadeiro, do seringueiro, do caipira e do gaúcho passaram a integrar o acervo dos livros escolares da época.

Criou-se também uma versão “científica” para lidar com os problemas do Nordeste, como se a região fosse condenada inexoravelmente pela história. Nesse âmbito, “A geografia da fome”, de Josué de Castro, e a atuação de Celso Furtado contribuíram para a delimitação analítica de uma região galvanizada na criação da Sudene.

Seguramente, “o Nordeste” atual, seja lá o que isso significa, não é aquele narrado pela literatura regionalista dos anos de 1930, muito menos o dos filmes de Glauber Rocha, ou o lócus da “indolência”, da “preguiça” ou da “felicidade”. Para utilizar uma metáfora poética, é um lugar qualquer, com suas casas, laranjeiras e janelas, com seus desafios e perspectivas.

Nordeste. Palavra agreste. Cabra da peste. Será?


Notas e Referências:

[1] MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil, v. II.  Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 620. Diferentemente do exposto no texto, o crítico literário Wilson Martins afirma que o Manifesto foi redigido somente em 1952, ano em foi publicado pelas Edições Região, do Recife, e não em 1926.

[2] FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/freyre/freyre.pdf. Acesso em 20 abr. 2016.

[3] FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/freyre/freyre.pdf. Acesso em 20 abr. 2016.

[4] GOMES, João Carlos. Glauber Rocha: esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 140.

[5] PEREIRA, Fabiana Gonçalves da Câmara. O Western americano na poética de Glauber Rocha e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Disponível em:

http://www.contracampo.uff.br/index.php/revista/article/viewFile/529/276 .Acesso em 20 abr. 2016.

[6] A expressão foi cunhada pelo crítico de cinema Salvyano Cavalcanti de Paiva.

[7] GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber: esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 595 – 596.

[8] SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2015, p. 101.

[9] Idem, p. 29.

[10] LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 58.


Elpídio Paiva Luz Segundo. Elpídio Paiva Luz Segundo é Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA/RJ). Professor da Faculdade Guanambi (FG/BA) e Advogado. . .

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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