A invasão de Marte e o caso - Brasil: estaremos diante de um perigo claro e presente?

14/10/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 14/10/2015

Olá a todos!!!

A notícia veiculada nas últimas semanas informando a descoberta de água em Marte[1] é interessante, porém desatualizada. Em realidade, em 30 de outubro de 1938 a Terra já havia sido invadida por marcianos. Bem, ao menos de acordo com transmissão de rádio realizada pela Columbia Broadcasting System (CBS) nos Estados Unidos. A transmissão era baseada no clássico “Guerra dos Mundos” de H. G. Wells e, conquanto no início da transmissão tenha sido avisado que se tratava de uma peça de ficção, muitos ouvintes ligaram o rádio depois e entraram em pânico ao perceber que a notícia era anunciada com cada vez maior intensidade, desde a “descoberta” de objetos metálicos saindo do planeta vermelho até a efetiva invasão já em solo terráqueo. Segundo dados oficiais, 875 pessoas ligaram para o New York Times perguntando o que fariam; e, no hospital de St. Michael, em Newark, 15 pessoas tiveram que ser atendidas por conta de choque e histeria. Há registro até mesmo de pessoas comparecendo às Delegacias locais para perguntar a que horas o mundo fora invadido e informando que já estavam prontas para a evacuação da cidade[2].

Lembre-se que naquela época não havia internet e mesmo os veículos de comunicação não estavam desenvolvidos ao ponto de se saber com um clique o que está ocorrendo, em tempo real, em qualquer parte do mundo. Mesmo atualmente, em que se verificam condições totalmente diversas, em 2013 o jornalista Ricardo Boechat iniciou seu programa na Rádio Bandnews relembrando a mesma narrativa feita pela Columbia Broadcasting System, da mesma forma como veiculada havia muitos anos, o que já foi suficiente para ensejar diversos telefonemas perguntando acerca da veracidade da informação, assim como comentários de ouvintes dizendo que retornaram aos seus lares em função do ocorrido[3].

Naquela situação, em 1938, imagine o leitor que o aparelho público, acreditando na suposta invasão, tivesse tomado medidas emergenciais para a proteção do planeta Terra e, inclusive, requerido em Juízo diversas providências com esse mesmo objetivo, fundamentando o pleito na absoluta urgência que o caso encerrava. Será que essa linha argumentativa, por si só, poderia, diante daquele caso, ensejar a superação de precedentes, textos normativos, ou até mesmo da moldura constitucional vigente?

A teoria fundamentada nesta absoluta premência do pedido ficou conhecida, desde o julgamento dos casos Abrams e Schenk vs. EUA pela Suprema Corte norte-americana, como doutrina do perigo claro e presente (clear and present danger), consistindo em um exame contextualizado da situação de urgência e a necessidade ou não de, diante do quadro apresentado, medidas excepcionais serem adotadas, ainda que em afronta à coerência externada por precedentes, ou derrotando regras[4].

Agora bem, consideremos a seguinte situação: a economia do Brasil não está estável, o clima político tampouco; já se aventa a possibilidade de impeachment; dólar subindo em velocidade de cruzeiro; real desvalorizado ao extremo; inflação batendo às portas do cidadão; preços de produtos em elevação, assim como o valor dos combustíveis; corrupção fazendo sangrar o governo e entidades estatais; pouca credibilidade nas instituições; direcionamento político de condutas questionáveis quer no plano nacional, quer internacional; credibilidade pessoal da Presidente atacada diuturnamente e sendo motivo de piadas quanto às suas manifestações em público; popularidade do governo em queda livre. Enfim, estaremos vivendo um momento de perigo claro e presente a justificar medidas extremas e que impliquem superação de leis, precedentes ou até mesmo do quadro constitucional?

Mas, de qual quadro constitucional estou falando? Bruce Ackerman, ao tratar da democracia dualista, identifica momentos constitucionais que podem ensejar movimentos democráticos de transformação do sistema e, com isso, a possibilidade de que o futuro esteja aberto às decisões políticas de movimentos populares[5]. Há uma espécie de legitimação dinâmica da Constituição a partir de movimentos populares. David Strauss, em “The living Constitution” corrobora essa mesma dinamicidade da Carta Constitucional, compreendendo-a como um documento em permanente mudança[6]. Esta parece ser a opinião também de Warren E. Burger, outrora Chief Justice na Corte Suprema norte-americana, ao tratar especificamente da Constituição viva em seu livro “It is so ordered”, salientando que uma característica marcante da Constituição norte-americana é a sua brevidade e, por isso, a necessidade de expansão das ideias nela contidas[7].

Seria, portanto, o caráter dinâmico da Constituição, acaso assim aceito, o que motivaria a possibilidade de adoção da doutrina do perigo claro e presente como aporte teórico inclusive para apreciação de instabilidades institucionais, políticas e econômicas? Acaso positivo, como, nesse contexto, encontrar um mínimo de estabilização do sistema político, econômico e jurídico a balizar comportamentos e condutas?

A atuação dos Poderes constituídos, nesse quadro de excepcionalidade institucional, assume elevada importância, porque ao mesmo tempo em que dispõem de um arsenal teórico para a prolação de decisões e tomadas de posição que ultimem por legitimar excepcionalidades, também devem manter a temperança e equilíbrio.

A argumentação, nesse prisma, pode se converter tanto no principal instrumento de racionalidade, como na legitimação de exceções, decisões episódicas e ad hoc, em qualquer faceta do Poder.

Não há, evidentemente, nada de errado em teorizar a respeito da urgência, reconhecer excepcionalidades, ou abertamente defender a movimentação democrática. O cuidado, no entanto, deve ficar por conta do reconhecimento da veracidade da invasão de marcianos e as consequências que a legitimação disto vierem a ensejar.

Estaremos, atualmente, mais para reconhecer a invasão, ou para afastá-la, porque inverídica? Talvez os próximos dias e meses nos tragam a resposta.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Notícia pode ser encontrada em http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI343184-17770,00-NASA+REVELA+DESCOBERTA+DE+AGUA+EM+MARTE.html. Acesso 12 de outubro de 2015.

[2] A notícia pode ser consultada em http://noticias.terra.com.br/educacao/voce-sabia/ha-75-anos-radio-transmitiu-invasao-alienigena-a-terra-e-assustou-milhoes,afb3d216fa802410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html. Acesso em 12 outubro de 2015. A íntegra da entrevista na emissora de rádio, por sua vez, pode ser encontrada em http://youtu.be/Xs0K4ApWl4g. Acesso em 12 outubro de 2015.

[3] Confira em http://www.adnews.com.br/midia/boechat-diz-no-radio-que-ets-estao-a-ponto-de-invadir-a-terra. Acesso em 12 outubro 2015.

[4] O caso, relatado por Oliver Wendell Holmes, Jr. em 1919, consistiu, muito resumidamente, no exame da legalidade da conduta de distribuição de panfletos socialistas inicialmente por Jacob Abrams em aparente malferimento à Sedition Act de 1918. A condenação considerou as circunstâncias da Primeira Guerra Mundial e a relativização à liberdade de expressão que o “perigo claro e presente” ensejava e devia ser considerado para fins de estabilização política do país. Notícia dos casos pode ser encontrada em http://www.pbs.org/wnet/supremecourt/personality/landmark_abrams.html. Acesso em 12 outubro de 2015.

[5] ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano – fundamentos do direito constitucional. Tradução de Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 10-11 e 29-30.

[6] STRASSUS, David. A. The living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010.

[7] BURGER, Warren E. It is so ordered. A Constitution Unfolds. New York: William Morrow and Company, 1995, p. 99.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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