A interpretação das normas ambientais

16/09/2018

Introdução.

A evolução da sociedade, a constituição de novas formas de organização da produção e do trabalho, o incremento do uso da tecnologia, os problemas de ordem climática, a escassez de água, dentre outras mudanças socio, econômica e ambiental aproximou o direito de temas do cotidiano do Ser Humano, impulsionando o desenvolvimento e a constituição de um direito público do ambiente.

Na academia, o estudo do direito ambiental, outrora tratado como apêndice do direito administrativo, alcançou o status de um ramo do direito, com raiz constitucional (art. 225) voltado para tutelar o meio ambiente e concretizar o bem-estar através da proteção de todas as formas de vida. A consciência de proteção do meio ambiente transbordou os muros da ciência jurídica, um movimento que despertou a atenção para os cuidados com o ambiente, para a elaboração de normas jurídicas e para a constituição de um direito autônomo, interdisciplinar e transversal.

O direito ambiental, que nasceu com a função de disciplinar, ordenar e compatibilizar o desenvolvimento econômico com a sustentabilidade, acabou por evoluir para a constituição de um sistema próprio de regras, princípios métodos exegéticos específicos. No presente artigo, discute-se algumas linhas de interpretação das normas ambientais.

A interpretação e o ordenamento jurídico.

Inicialmente, advirta-se, conforme ensinou MAXIMILIANDO (2003), hermenêutica e interpretação não se confundem. A primeira refere-se ao estudo dos processos e métodos de interpretação, fixando-os e sistematizando-os. Já a intepretação é a aplicação dos métodos buscando o sentido e o alcance da Lei[1].

A especificidade histórica da criação do direito ambiental exige do interprete das normas jurídicas ambientais socorrer-se das regras gerais do ordenamento jurídico e, ainda, dos princípios próprios que orientam do direito ambiental, com atenção especial para os seguintes princípios: a) prevenção; b) precaução, c) desenvolvimento sustentável, d) in dubio pro ambiente e o e) a não aplicação do fato consumado. 

A dinâmica de interpretação requer, também, atenção especial em relação aos seguintes pontos de controle:

1. Verificação se as normas analisadas foram editadas sob a égide dos regimes constitucionais anteriores. Nesse caso, é necessário fazer o juízo de recepção das normas sob o aspecto material, ou seja, se a norma foi ou não recebida pela Constituição de 1988 em razão de seu conteúdo.

2. Verificação se a entidade federativa editora do ato normativo possui competência para a sua prática, à luz dos art. 22, 24, 30 da CF/88 – competência legislativa. Segundo a regra de competência constitucional, União, Estado, DF e Municípios podem legislar concorrentemente sobre meio ambiente; salvo as competências privativas contidas no art. 22, incisos IV, XII, XXVI.

 

O princípio geral do ordenamento aplicado à interpretação das normas ambientais.  

  1. Princípio da interpretação conforme a constituição.

A interpretação conforme a Constituição é uma das modernas formas de hermenêutica, que visa impedir a retirada precoce do ordenamento jurídico de normas infraconstitucionais que se revelam, num primeiro momento, incompatíveis com o Texto Maior. DORNELES (2018) explica que por esta interpretação, o intérprete pode alargar ou restringir o sentido da norma supostamente inconstitucional para adequá-la ao ordenamento, evitando a decretação de nulidade e a consequente exclusão do cenário jurídico, configurando-se como uma técnica de salvamento da norma[2].

Com efeito, as normas plurissignificativas deverão ser compatibilizadas com a Constituição, garantindo a prevalência da presunção relativa de validade das normas infraconstitucionais em ralação ao ordenamento jurídico. A titulo de exemplo, o art. 2º da Lei n.º 6.938/81 (norma infraconstitucional anterior a CF/88), ao fixar que o meio ambiente é um patrimônio público deve ser interpretado à luz do art. 225 da CF/88, para interpretar patrimônio público não como propriedade de pessoa jurídica de direito público e sim como bem de uso comum do povo.

2. Princípio da máxima efetividade ou da interpretação efetiva.

Trata-se de hermenêutica constitucional, voltada à interpretação das garantias fundamentais, a fim de conferir-lhes, sempre que possível, a máxima efetividade. A aplicação do princípio exige que a interpretação jurídica seja realizada com o auxílio do conhecimento técnico derivado de outras ciências. Conforme explica o Ministro do STF Humberto Martins, citado por AMADO (2012, p. 20)[3]  a interpretação das normas que tutelam o meio ambiente não comporta apenas, e tão somente, a utilização de instrumentos estritamente jurídicos, pois é fato que as ciências relacionadas ao estudo do solo, ao estudo da vida, ao estudo da química, ao estuda da física devem auxiliar o jurista na sua atividade cotidiana de entender o fato lesivo ao Direito Ambiental.

A aplicação do princípio da máxima efetividade considera, em regra, o caráter transdisciplinar do estudo e da aplicação das normas ambientais, exigindo que o interprete tenha ou obtenha conhecimentos mínimos das ciências ambientais não jurídicas (biologia, química, engenharia ambiental, arquitetura), sob pena de não compreender o sentido e o alcance real das normas jurídicas.

Os princípios específicos da interpretação das normas ambientais.  

3. Princípio da prevenção[4]

Trata-se de princípio contido na Constituição Federal de 1988, art. 225, ao destacar que cabe ao Poder Público e a Coletividade o dever de proteger e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

O princípio consiste na aplicação de regras de comportamento que busquem afastar ou antecipar os riscos de agressão ao meio ambiente. Para Rodrigues (2005, p. 203)[5], a importância do princípio da prevenção está diretamente relacionada ao fato de que, se ocorrido o dano ambiental, a sua reconstituição é praticamente impossível. O mesmo ecossistema jamais pode ser revivido. Uma espécie extinta é um dano irreparável. Uma floresta desmatada causa uma lesão irreversível, pela impossibilidade de reconstituição da fauna e da flora e de todos os componentes ambientais em profundo e incessante processo de equilíbrio, como antes se apresentavam.

O princípio da prevenção foi inserido na Política Nacional de Meio Ambiente, art. 2º, incisos I, IV e IX, retratando, adequadamente, a regra de proteção e de preservação do ambiente: 

Art. 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios:

I - ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo;

(...)

IV - proteção dos ecossistemas, com a preservação de áreas representativas;

(...)

IX - proteção de áreas ameaçadas de degradação;

Para Machado (2012, p. 46)[6], a aplicação prática do princípio da prevenção ocorre por meio de cinco ações administrativas:

1º) identificação e inventário das espécies animais e vegetais de um território, quanto à conservação da natureza e identificação das fontes contaminantes das águas do mar, quanto ao controle da poluição;

2º) identificação e inventário dos ecossistemas, com a elaboração de um mapa ecológico;

3º) planejamentos ambiental e econômico integrados;

4º) ordenamento territorial ambiental para a valorização das áreas de acordo com a sua aptidão; e

5º) Estudo de Impacto Ambiental.

O princípio da prevenção exige que o exegeta considere na interpretação das normas ambientais, às medidas técnicas que evitem atentados, agressões ou lesões ao meio ambiente, considerando o adágio filosófico moderno: é melhor prevenir que remediar.

4. Principio da precaução.

O princípio cuida de interpretação jurídica que privilegia e condiciona a norma jurídica aos cuidados quanto aos riscos abstratos de intervenção no meio ambiente. O debate jurídico, diferentemente do que acontece no princípio da prevenção (existência de risco real e concreto), ocorre no âmbito da ausência de certeza cientifica quanto ao resultado da ação humana sob o meio biótico.

O exemplo típico de aplicação do princípio da precaução pode ser visto a partir da disputa jurídica que circundou a autorização, no Brasil, do plantio da soja transgênica. Toda a exegese sobre a legalidade do plantio de soja geneticamente modificada foi (ou deveria ser) realizada a partir da inexistência de estudos científicos que fossem capazes de comprar que o plantio da soja geneticamente modificada não resultaria em danos ao ambiente natural e à saúde do Ser Humano. Portanto, pela precaução, a intervenção do Ser Humano no meio ambiente deve ser interpretada a partir de elementos que possam garantir, ao menos cientificamente, a inexistência de externalidades significativas (danos) ao ambiente natural e ao Ser Humano.

5. Princípio do desenvolvimento sustentável[7].

Sob o ponto de vista normativo, o art. 225 da Constituição Federal denomina de sustentabilidade a garantia de um desenvolvimento socioeconômico que seja, sob o ponto de vista ambiental, ecologicamente equilibrado com vista a permanência de todas as formas de vida do presente no futuro, a saber:

Art. 225.   Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Em linguagem corrente, o termo sustentabilidade pressupõe a realização, ao mesmo tempo, do desenvolvimento socioeconômico e da preservação do ecossistema. Trata-se, na lógica tradicional, de um axioma simples: sustentabilidade, oriundo de sustentável, significa aquilo que pode ser mantido ao longo do tempo. Logo, é possível pressupor que uma sociedade será sustentável quando for capaz de se manter, harmônica e equilibrada com o ecossistema no presente e no futuro – um futuro longevo e que atravesse séculos e gerações.

A sustentabilidade é um postulado ou um axioma cuja proposição não é provada ou demonstrada, mas considerada como obvia ou como um consenso inicial necessário para a construção de uma teoria[8]. A sustentabilidade é, portanto, uma verdade aceita como essencial para discussão que circunda o dilema ecológico do mundo – como viver o presente, abonando que as gerações do futuro terão a oportunidade de viver em um planeta equilibrado ecologicamente? 

Mesmo sendo uma verdade aceita ou um ponto de partida reconhecido como verdadeiro, o termo sustentabilidade é controverso e possui pouco consenso teórico e prático, estando muito mais ligado às diversidades de interesses ou as diferenças ideológicas que permeiam e engendram o debate de grupos políticos, de grupos econômicos; de países ou conglomerados de Estados e de sociedades empresariais transnacionais[9].

Por outro lado, parece existir dois consensos transversais imanentes em todo Ser Humano:

1. O modo de vida e de desenvolvimento atual da sociedade não é sustentável;

2. A causa da insustentabilidade está ligada a lógica do sistema de produção e de consumo implementadas pelo capitalismo.

Em meio a esse debate, cabe ao jurista buscar interpretar as normas de direito ambiental considerando o dilema ecológico prescrito no art. 225 da Constituição Federal – garantir a sadia qualidade de vida, limitando o crescimento econômico a partir de postulados fundados na defesa do meio ambiente. Exige, portanto uma interpretação que considere a imbricação entre o art. 170, inciso VI e o art. 225 da Constituição Federal.       

- Principio in dubio pro ambiente.

O princípio indica que as regras e os princípios ambientais exigem uma hermenêutica própria, privilegiando o enunciado normativo que seja mais favorável ao meio ambiente. Na lição de MORATO LEITE e de GERMANA BELCHIOR, citado por AMADO (2012, p. 28), com fundamento na doutrina de J.J. Gomes Canotilho, é viável a utilização do in dubio pro ambiente ou interpretação mais amiga do ambiente, expressão esta utilizada por Canotilho, o que não acarreta em uma visão radical na defesa do meio ambiente. Aponta o doutrinador lusitano que o princípio da interpretação mais amiga do ambiente, como expresso ou ratio da maioria das normas jurídicas aplicáveis ao caso, é inatacável, não goza de termos apriorísticos e abstractos, de uma prevalência absoluta.

- Princípio da não aplicação do principio do fato consumado.

Pelo princípio, em matéria de direito ambiental, um ato ilegal praticado contra o meio ambiente não se convalida pelo decurso do tempo, devem ser combatidos, mesmo após uma consolidação. A posição é amplamente aplicada pelos Tribunais, com posição sedimentada pelo STJ, no julgamento RE 609.748 AgR/RJ, de 23/agosto/2011.

Agravo regimental no Recurso Extraordinário. Direito ambiental. Mandado de segurança. Ausência de licença ambiental. Matéria infraconstitucional. Reexame de fatos e provas. Inaplicabilidade da teoria do fato consumado.

Conclusão.

Conclui-se, sem pretender esgotar o tema, que o direito ambiental exige do operador do direito, primeiro, a compreensão de relatividade da ciência jurídica quanto a capacidade de interpretação e resolução dos fatos sociais isoladamente, ou seja, o direito, apenas pelas teorias do ordenamento jurídico não é capaz de solucionar os conflitos ocorridos no meio ambiente, sendo necessário que o jurista apreenda ou esteja aberto as suscetibilidades dos conteúdos de outras ciências, cujas especificidades exercem papel de complementariedade para a compreensão do problema e, consequentemente, para a tomada de decisão. Segundo, que o direito ambiental exige uma hermenêutica própria, capaz de agregar aos métodos clássicos a consciência de transversalidade do direito do ambiente, um direito que deve ser interpretado e aplicada à luz do direito à vida, um direito que seja inclusivo e não exclusivo do Ser Humano.    

 

Notas e Referências

[1] MAXIMILIANDO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

[2] DORNELES, Tatiana Poltosi. O controle de constitucionalidade e a interpretação conforme a Constituição. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, IX, n. 35, dez 2006. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_%20artigos%20_leitura&artigo_id=1528>. Acesso em set 2018.

[3] AMADO, Frederico Augusto Di Trindade.  Direito ambiental esquematizado. 3ª ed. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2012.

[4] Recorte do artigo Os princípios do direito do ambiente, publicado na Revista Empório do Direito no dia 08 de jul. 2018, disponível em  http://emporiododireito.com.br/leitura/os-principios-do-direito-do-ambiente.

[5] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 203.

[6] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo, Malheiros Editores, 2012, p. 46

[7] Recorte do artigo A teoria da sustentabilidade, publicado na Revista Empório do Direito em 11 de fev. 2018, disponível em http://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-da-sustentabilidade.

[8] Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Axioma - Acesso em 05 de fev. 2018

[9] ROCHA, Jefferson Marçal da. SIMAN, Renildes Fortunado. Desenvolvimento sustentável: desmistificando um axioma. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/266405200_Desenvolvimento_sustentavel_desmistificando_um_axioma - Acesso em 06 de fev. 2018.

 

Imagem Ilustrativa do Post: NATURE // Foto de: Ritesh Agarwal  // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/125484914@N02/14604677244

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura