A INCONSTITUCIONALIDADE DO PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL À LUZ DA TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA

06/06/2019

Está para retornar a pauta de julgamento no mês que vem (Junho de 2019) o RE635659 que trata sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Tecerei breves comentários sobre a possibilidade de argumentar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas sob a ótica da Teoria da Imputação Objetiva, comentando-a brevemente, pois o propósito é fundamentar a aplicação desta na lei objeto de análise na Suprema Corte. Os votos já proferidos pelos Ministros Barroso1, Fachin2, e Gilmar Mendes3 não mencionaram essa possibilidade.

 

Imputação Objetiva e Teoria do Crime:

            Consiste, a teoria da imputação objetiva, num conjunto de pressupostos jurídicos que condicionam a relação de imputação de um resultado jurídico a um determinado comportamento penalmente relevante.

Dentro do conceito analítico de crime, temos como elementos do crime: o Fato Típico, Antijurídico e Culpável. Destrinchando cada um deles, fato típico é composto por: Conduta, Resultado naturalístico (para crimes materiais), Tipicidade, que se subdivide em formal e material (poder-se-ia ainda, adotando a teoria de Zaffaroni acrescentar aqui a tipicidade conglobante e para outros ainda, a tipicidade subjetiva colocando aqui o dolo e a culpa) e o Nexo Causal, onde temos como regra a teoria da conditio sine qua non.

A teoria da imputação objetiva tem como finalidade limitar o alcance da relação de causalidade, que se levada a efeito, regressa ad infinitum, criando situações teratológicas no nexo causal (a exemplo de imputar relação causal à mãe do criminoso por ter gerado este). Ao não adotar a Imputação Objetiva, possibilita-se que apenas o dolo e a culpa acabem sendo os únicos instrumentos de limite do alcance da relação causal.

Por ser insuficiente o dolo e a culpa para evitar imputações desnecessárias (a exemplo de punir alguém por praticar um fato não proibido por lei, ainda que tenha agido com dolo ou culpa), analisaremos os mais importantes requisitos da teoria, que são três:

 

CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO ou DIMINUIÇÃO DO RISCO:

Por esta, temos que não pode haver imputação objetiva de um resultado lesivo quando a ação não criou um certo risco para o bem jurídico lesionado ou, se criou, não era juridicamente relevante4. A título de exemplo: alguém manda outro a um bosque, durante uma tempestade, com esperança que seja alcançado por um raio. Ainda que isso venha a ocorrer, não há criação de risco não permitido. Portanto, ações típicas são sempre lesões de bens jurídicos na forma de realização de riscos não permitidos, criados pelo homem5.

Roxin traz outro exemplo, o de alguém conduzindo um veículo corretamente, respeitando as regras de trânsito quando, alguém, inesperadamente atravessa e acaba por ser atropelado. Por estar de acordo com as normas regulamentares, não há ação típica de lesão corporal ou homicídio. O risco produzido pelo condutor era permitido. A causalidade acaba por ser uma condição necessária, mas não suficiente para o injusto penal.

 

CRIAÇÃO DO RISCO NO RESULTADO:

No mesmo exemplo acima, imagine que o condutor vinha em alta velocidade e, desacelerou seu veículo, chegando ao limite permitido, quando então houve o acidente, com alguém atravessando a rua inesperadamente e produzindo o atropelamento.

Na análise da relação causal, temos que: se não tivesse dirigido anteriormente acima da velocidade, não teria chegado ao lugar no momento em que a pessoa atravessou a rua (logo, sua ação anterior foi causa para o resultado). Porém, através deste requisito da imputação objetiva, a criação do risco proibido não se deu no resultado, pois no momento do atropelamento, estava o condutor dentro da velocidade permitida. Logo, não houve a criação do risco no resultado.

 

RESULTADO AO ALCANCE DE PROTEÇÃO DO TIPO:

A imputação também não se dará se o resultado concretamente verificado não se incluir no alcance da norma. Trata-se, de um critério de interpretação teleológica do tipo. A exemplo, temos que não se pode punir a título de homicídio alguém que vende drogas a outrem que acaba por ter uma overdose, pois o resultado morte não está dentro do âmbito de proteção do tipo vender drogas, não havendo um resultado dentro do alcance do tipo. O próximo item poderia até mesmo estar contido neste, mas a título didático vamos expô-lo em separado.

 

IV - AUTOCOLOCAÇÃO EM RISCO:

Florence afirma que outra hipótese em que pode ocorrer a exclusão da imputação dá-se quando o perigo é provocado pela vítima e proveniente de sua vontade, mesmo conhecendo o risco existente em sua ação.

A causa de exclusão da imputação, se dá por motivo de política criminal adotada pela teoria da imputação objetiva, focada em uma visão do Direito Penal que deve agir como ultima ratio, analisando os tipos penais de acordo com sua finalidade dentro do contexto social com que atuam.

Roxin traz o exemplo de absolvição pelo Supremo Tribunal Alemão onde um policial, mesmo sabendo da inclinação suicida de sua noiva, deixou a arma carregada sem precaver-se de que ficava ao alcance desta. Afirmou que corretamente o tribunal o absolveu. Isto porque não é missão do Direito Penal proteger os sujeitos responsáveis frente às autolesões conscientes de terceiros, provocadas por eles mesmos.

Só se legitimaria, caso o indivíduo não tivesse nenhuma autonomia. Outro exemplo foi a absolvição de homicídio culposo por venda de heroína, onde o consumidor faleceu por causa da droga (overdose). Na ementa do tribunal: “as autocolocações em perigo realizadas responsavelmente, não fazem parte do tipo de lesões, nem do homicídio, sempre que o risco conscientemente assumido coincida com o perigo realizado. Quem só produz, facilita ou favorece uma autocolocação em perigo, não se responsabiliza por um delito de lesões ou homicídio”.

Isso poderia servir de base até para discutirmos, mais adiante, a inconstitucionalidade também, do delito de auxílio ao suicídio. Logo, o tráfico não está ao alcance do tipo matar alguém, não podendo ser imputado este resultado ao vendedor de drogas no caso acima exposto. Diante disso, vamos a nossa análise.

 

Teoria da Imputação Objetiva aplicada no porte de drogas para consumo pessoal:

Como vimos para haver a imputação de um fato a alguém, é necessário que a criação do risco seja não permitido, que a criação do risco seja no âmbito do resultado e este resultado deve estar ao alcance do tipo, não havendo imputação também, quando a autocolocação em risco.

Assim sendo, o delito do art. 28 da lei de drogas, tem como pressuposto argumentativo para sua criminalização, a alegação de que, ao usar drogas, o indivíduo pode cometer delitos, como furtos, roubos para sustentar seu vício. Impossível não comentar acerca do equívoco em comparar, todo e qualquer usuário, como um dependente químico e autor de fatos delituosos.

Mas, como disse o Ministro Fachin em seu voto: para prevenir e reprovar as eventuais condutas excessivas dos usuários de drogas, o Direito Penal já oferece uma série de outras sanções. O usuário de drogas que furta ou rouba para sustentar seu vício deve ser punido pelas ações delituosas de furto ou roubo, mas não pelo uso em si da droga.

Mas analisando dentro da teoria explicitada, vemos que o porte de drogas para consumo pessoal, por mais que possa ensejar um risco não permitido (pois portar drogas é descrito no tipo do art.28 da lei de drogas), fato é que não há resultado ao alcance do tipo, e que há totalmente uma autocolocação em risco. Isso porque a conduta de portar drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei 11,343/06), não está dentro do âmbito do alcance do tipo de furto, roubo ou qualquer outro delito. Estes, por si só, já se constituem como delitos autônomos previstos no ordenamento.

Quanto à autocolocação em risco, os usuários de drogas fazem uso dessas substâncias com consciência e vontade, assumindo os riscos e resultados, não havendo porque falar em imputação a estes. Dessa forma, ao excluir o resultado ao alcance do tipo, exclui-se a imputação objetiva, excluindo o fato típico, tornando o fato um indiferente penal.   

 

Notas e Referências

Disponível em:< http://s.conjur.com.br/dl/leia-anotacoes-ministro-barroso-voto.pdf>. Acesso em 03 de junho de 2019.

Disponível em:< http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE635659EF.pdf. Acesso em 03 de junho de 2019.

Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE635659.pdf>. Acesso em 03 de junho de 2019.

FLORENCE, Ruy Celso Barbosa. Teoria da Imputação Objetiva: sua aplicação aos delitos omissivos no direito penal brasileiro. São Paulo. Editora Pilhares. 2010. Página 121.

ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. 2ª Edição. Porto Alegre. 2013. Página 40.

 

 

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