A INCONSTITUCIONALIDADE DO NOVO DECRETO PRESIDENCIAL

23/10/2019

O presidente da República assinou, no último dia 18 de outubro, o Decreto nº. 10.073/19, (re) definindo as atribuições da Polícia Rodoviária Federal. Dentre estas, ficou expressamente consignado que os policiais rodoviários federais poderão, doravante, lavrar termos circunstanciados de ocorrência, nos termos do art. 69 da Lei nº. 9.099/95, além de proceder a investigações imprescindíveis à elucidação dos acidentes de trânsito.

Sem dúvidas, trata-se de decreto flagrantemente inconstitucional, pois as atribuições da Polícia Rodoviária Federal estão taxativamente previstas no § 2º., do art. 144, da Constituição Federal, segundo o qual cabe à Polícia Rodoviária Federal, tão-somente, patrulhar ostensivamente as rodovias federais, sendo as funções de polícia judiciária e de investigação exercidas pelas polícias civis e pela Polícia Federal, nos termos dos §§ 1º. e 4º., daquele mesmo artigo da Constituição.

Nestes termos, evidentemente, não cabe à lei, muito menos a um decreto presidencial, acrescentar mais atribuições a um determinado órgão da Segurança Pública.

A propósito, no dia 09 de junho de 2015, o Conselho Nacional do Ministério Público julgou improcedente pedido de providências instaurado para discutir aparente extrapolação de atribuição do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ao firmar acordo de cooperação técnica com o objetivo de viabilizar a confecção de termos circunstanciados de ocorrências por policiais rodoviários federais nas rodovias estaduais.

Naquela oportunidade, decidiu-se que “a lavratura dos de termos circunstanciados de ocorrências não deve ser confundida com a investigação criminal, atividade inerente à polícia judiciária e a outras instituições, nem 'autoridade policial' há de ser compreendida estritamente como delegado de polícia. Trata-se de simples atividade administrativa.

Nesta decisão, ficou consignado que a lavratura dos referidos termos circunstanciados pela Polícia Rodoviária Federal estaria de acordo com os critérios adotados pela Lei nº 9.099/95, notadamente a oralidade, a celeridade e a simplicidade das formas e procedimentos, atendendo-se também ao princípio constitucional da eficiência.[1]

Contrariamente a este posicionamento, entendo que a expressão “autoridade policial”, contida no art. 69 da Lei nº. 9.099/95, refere-se unicamente aos Delegados da Polícia Civil e da Polícia Federal, dentro das respectivas atribuições indicadas nos §§ 4º. e 5º., do art. 144, da Constituição.                      

Mutatis mutandis, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o Decreto nº. 1.557/2003, do Estado do Paraná, que em seu art. 1º. determinava que “nos municípios em que o Departamento de Polícia Civil não contar com servidor de carreira para o desempenho das funções de delegado de Polícia de carreira, o atendimento nas delegacias de Polícia será realizado por subtenente ou sargento da Polícia Militar”.

Esta Ação Direta de Inconstitucionalidade (de nº. 3614) foi ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sob o argumento de que a Polícia Militar (tampouco a Polícia Rodoviária Federal, digo eu) não teria habilitação adequada para atender em delegacias, investigando crimes ou lavrando termos circunstanciados. A ação pedia que fosse reconhecida atribuição exclusiva da Polícia Civil para a realização das atividades inerentes à polícia judiciária, nos termos do art. 144, caput, incisos IV e V e §§ 4º. e 5º. da Constituição Federal, que definem claramente as atribuições da Polícia Civil e da Polícia Militar.

Nesta ação, a Ministra Cármen Lúcia entendeu tratar-se de desvio de função a transferência de funções específicas para pessoas que não integram o cargo de Delegado de Polícia. Para a Ministra, essas funções só poderiam ser realizadas por bacharéis em direito e, caso o Supremo Tribunal Federal permitisse isso, poderia gerar uma situação de “legitimação” do desvio de função, algo inaceitável na Administração Pública.

Naquela oportunidade, o Ministro Cezar Peluso advertiu que “antes da lavratura do termo circunstanciado o delegado tem que fazer um juízo jurídico de avaliação dos fatos que são expostos”.

Ora, sendo uma atividade inerente a Delegados de Polícia, únicos habilitados para as funções de polícia judiciária, a Polícia Militar não teria habilitação adequada para essas funções, o que comprometeria todo o processo penal decorrente dessas funções.

Entendo que, na esteira deste julgamento, a mesma inconstitucionalidade dá-se com a possibilidade de lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência pela Polícia Rodoviária Federal, cuja atribuição, como acima já foi dito, é a de patrulhar ostensivamente as rodovias federais, e não de exercer funções típicas de polícia judiciária, não tendo ela qualquer atribuição investigatória criminal; e a lavratura de um Termo Circunstanciado de Ocorrência, tal como a de um Inquérito Policial, é atividade estritamente de natureza investigatória criminal.

Nota-se, nada obstante, que alguns Ministérios Públicos Estaduais, como o da Bahia por exemplo, firmaram convênios “dando autonomia” à Polícia Rodoviária Federal para lavrar termos circunstanciados, nos casos de infrações penais de menor potencial ofensivo, sem a necessidade de encaminhamento do suposto autor do fato para a Polícia Civil ou à Polícia Federal.

Concluindo: Termo Circunstanciado de Ocorrência lavrado por um policial rodoviário federal é um procedimento inexistente juridicamente, pois produzido em flagrante contrariedade à Constituição da República, não se prestando para dar justa causa ao Ministério Público, seja para propor a transação penal, seja para oferecer a peça acusatória.

                                                          

Notas e Referências

[1] http://www.conamp.org.br/pt/comunicacao/noticias/item/848-cnmp-considera-valida-a-confeccao-de-termos-circunstanciados-pela-prf.html, acessado em 22 de outubro de 2019.

 

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