Por Denize Carolina da Cunha - 24/07/2016
“Ele será um magistrado. Usará das melhores gravatas, as colônias mais cheirosas, os ternos mais caros e julgará a sociedade sem nunca ter atravessado a ponte. Defenderá a justiça que, segundo Aristóteles, está no meio, sem conhecer o lado de lá. Ele saberá que em latim “res” é a coisa pública. Saberá escrever a realidade, mas estará muito distante dela. Interpretará a lei e a vida como um pirata caolho.”[1]
A palavra consistente da vítima. A ausência de provas congruentes para o decreto condenatório. A clandestinidade da prática delituosa. Para a vítima, inexiste frágil conjunto probatório. No que se refere ao acusado, há possibilidade de justificar a acusação ou a prática do ilícito. E ao juiz imparcial, a emissão de um juízo sobre outrem, cabe observar e conhecer quem é julgado. A habilidade necessária para trabalhar com imagens inconstantes e distorcidas de olhares doentes tornou-se a peculiaridade oculta de um julgamento.
Um conjunto de interpretações visando o mesmo fim – um julgamento acolhendo a interpretação por uma das partes construída. Uma interpretação que, sob o olhar do juiz, seja coerente. Não obstante, a coerência também requerer, além de sua própria interpretação, um diálogo com as perspectivas sob as quais o acusado pode ser olhado. Aliás, a conversão de um caminho pode nem sempre apresentar a direção, e a utilidade de uma decisão nem sempre representa o conhecimento mais adequado.
De fato, a premissa, o homem naturalmente bom comporta exceção – a história de um indivíduo é estritamente singular. O julgamento não se trata apenas de um juízo moral e sancionatório, mas de conhecer aquele que se apresenta diante do soberano juiz no ‘momento final’. Mas, o que significa conhecer, de modo a poder avaliá-lo? Num cenário onde a vítima aguarda a condenação do acusado, a defesa confiante em sua persuasão, e a sociedade em êxito com o decreto condenatório antecipatório, o pensamento dos outros, torna-se, sobretudo, preguiçoso. Julga-se por vezes a pessoa, e não os fatos. Vê-se aquilo em que se acredita, não necessariamente aquilo que se vê.
Naturalmente, os indivíduos reprovam ações ruins e egoístas, como o latrocínio, estupro, fraude e qualquer forma de violência gratuita e aprovam ações boas e gloriosas, como um gesto de generosidade e honestidade. E, segundo o filósofo escocês David Hume, “aprovar um caráter e condenar outro são apenas duas percepções diferentes” [2]. Não é relevante se a pessoa a qual se julga é conhecida ou estranha, conterrânea ou estrangeira. Isso porque, algumas qualidades adquirem o seu mérito por serem imediatamente agradáveis, da mesma forma, há outras que são imediatamente desagradáveis em razão de seus efeitos, os quais representam, por si só, o julgamento adequado.
Logo, o juiz singular é um indivíduo julgando outrem, como muitos outros, escrevendo a partir de dentro, observa os preconceitos arraigados, as imagens construídas e os desejos das mais severas punições – tornando o julgamento por vezes recíproco. Surge, neste cenário, a necessidade de colocar-se no lugar do outro, mas na distância adequada. O momento de testar os ‘sapatos’ dos envolvidos – mas não tornando como seus.
A justiça, pela sua própria estruturação histórica, revela-se como uma necessidade humana a qual está envolvido o procedimento de conhecer e julgar pessoas. E conhecer implica a dobrar-se sobre si mesmo. Retomando a analogia dos ‘sapatos’, usá-los possibilita ao juiz singular a análise precisa das circunstâncias dos fatos. É uma dupla exigência, observar o indivíduo antes de ser movido pelo mesmo fio.
Alguém poderá arguir a impossibilidade de testar os ‘sapatos’. Afinal, é um outro que não seja eu mesmo. Um ser que não representa a imagem do ser virtuoso, por ora, construído. Um ser que não se mostrou como é. Ocorre que, diferentemente do que a literatura por vezes construiu, num julgamento torna-se necessário testar ‘sapatos’. Hume, no Tratado da Natureza Humana, alega, com expressividade singular, a uniformidade dos indivíduos:
[...] a natureza preservou uma grande semelhança entre todas as criaturas humanas, e qualquer paixão ou princípio que observemos nas outras pessoas podem encontrar, em algum grau, um paralelo em nós mesmos. O que se passa com a trama da mente é o mesmo que ocorre com o corpo. Embora as partes possam diferir em sua forma ou tamanho, sua estrutura e composição são em geral as mesmas. Uma notável semelhança mantém-se em meio a toda sua diversidade; essa semelhança deve contribuir muito para nos fazer penetrar nos sentimentos alheios, abraçando-os com facilidade e prazer.[3]
Ainda, acrescentou:
Se alguém, por uma fria insensibilidade ou um temperamento estreitamente egoísta, não for afetado pelas imagens da felicidade ou miséria humanas, deverá permanecer igualmente indiferente às imagens do vício e da virtude; assim como se observa, inversamente, que uma ardente preocupação pelos interesses de nossa espécie é sempre acompanhada de uma refinada sensibilidade para todas as distinções morais: uma forte indignação pelas ofensas feitas às pessoas, uma viva satisfação pelo seu bem-estar. A este respeito, embora se possa observar uma grande superioridade de uma pessoa em relação a outra, ninguém é tão completamente indiferente ao interesse de seus semelhantes a ponto de não reconhecer quaisquer distinções de bondade e maldade morais em conseqüências das diferentes tendências de ações e princípios. Como supor, de fato, que um ser dotado de um coração humano, se lhe fosse submetido à apreciação de um caráter ou sistema de conduta benéfico e outro pernicioso à sua espécie ou comunidade, não viesse a manifestar pelo menos uma moderada preferência pelo primeiro, ou atribuir-lhe algum mérito e consideração, por menores que sejam.[4]
Ou seja, o juiz singular, incapaz de ‘ser tocado’ – de usar ‘sapatos’ que não os seus – é também incapaz de refletir para poder julgar o quadro total. Deve interessá-lo o conhecimento e a necessidade dos fatos que se julgam – onde se encontra a debilidade em relação aos fatos. E o empréstimo de ‘sapatos’ enseja a imaginação do juiz singular – como qualquer outro indivíduo – faz com que tenha uma experiência semelhante àquela atribuída ao envolvido. Até porque, o julgamento não envolve apenas o conjunto normativo, mas, conjuntamente, a utilidade da decisão e reflexo moral. E, por ora, quando não testado ‘os sapatos’ pouco se observa em relação a uma necessidade da aplicação da norma; a dicotomia da interpretação de cada conduta humana.
Em linhas finais, o julgamento valorativo dos fatos, que por consequência abrange também outro indivíduo, envolve cada vez mais o uso de ‘sapatos’, mesmo que isso resulte em certo empobrecimento da análise de si mesmo. É uma resposta simetricamente ao outro. O problema, então, não é de testar sapatos, mas deixar que o juízo da multidão o determine em razão de adular suas próprias inclinações.
Não se questiona, ou melhor, não se crítica a aplicação do puro texto legal, mas da ausência da elasticidade interpretativa oferecidas pelos ‘sapatos’. Não se trata apenas de uma experiência, mas do conflito de ações que indagará o que é devido e por quê. Talvez usá-los não solucionará as discordâncias interpretativas. Porém, oferecerá outro critério ao argumento; a necessidade de conciliar o interesse em conhecer com a imparcialidade em julgar.
A passividade dos juízos aleatórios envolvendo os fatos julgados – quando as flutuações passam a ser dirigidas – quando o juiz opta por juízos públicos como regra para os seus, não se trata de um mero erro, fundamentado numa crença errada, mas de um erro criado e sustentado como verdade. Que o homem imparcial, ao contrário do público, não seja um observador apaixonado, que não determine o que outro não é do que ele realmente é. Antes de qualquer juízo, teste os ‘sapatos’.
Notas e Referências:
[1] FENIANOS, Eduardo Emílio. O Urbenauta: manual de sobrevivência na selva urbana, p. 97.
[2] HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. Débora Danowski. 2.ed. rev. E ampliada. São Paulo: Editora UNESP. 2009, III, I, I.p. 496.
[3] Id. II,I,XI.p.352
[4] HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: UNESP. 2004, p.293.
BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. São Paulo: Abril, 1972.
FLANAGAN, O. e RORTY, A. (eds). Identity, Character, and Morality. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1990.
DUARTE, L. B. A impossibilidade humana de um julgamento imparcial. In: Revista da Ajuris, t. I, n. 85 (2002).
HUME, David. Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral. Tradução: José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Unesp, 2004.
______. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. Débora Danowski. 2. ed. rev. E ampliada. São Paulo: Editora UNESP. 2009.
Denize Carolina da Cunha é Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí, UNIDAVI, Brasil. Voluntária – Assessoria de Gabinete – no Poder Judiciário de Santa Catarina. Membro estudante do Grupo de Pesquisa em Filosofia da Mente e Ciências Cognitivas (CNPq) e Grupo Hume da Universidade Federal de Santa Catarina. Organizadora do Livro Interfaces da Filosofia Contemporânea.
Imagem Ilustrativa do Post: Shoes // Foto de: Tirolix // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/tirolix/8627788507
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.