A garantia da liberdade de expressão, da liberdade acadêmica e da autonomia constitucional das Universidades como pilares da Democracia Constitucional na ADPF n. 548 

27/10/2018

Ao longo da última semana uma série de decisões judiciais e atos administrativos praticados em conjunto por vários juízos eleitorais do País determinaram a busca e apreensão de materiais alocados nas Universidades Federais que repudiam o autoritarismo e o fascismo, bem como fazem a defesa da democracia. Além do mais, algumas decisões chegaram mesmo a impedir a realização de aulas públicas sobre temas que, de uma forma ou outra, os juízos eleitorais indicavam que estavam favorecendo o candidato Fernando Haddad em detrimento de Jair Bolsonaro. É bom registrar que em vários casos as pretensas violações à lei eleitoral não se deram porque teria havido o apoio ou o repúdio a certo candidato mas, sim, porque alunos de Instituições de Ensino se posicionaram em defesa da democracia e contra o fascismo. Ora, como tais manifestações podem ofender a legislação que trata, justamente, do exercício da democracia?  

Para citar algumas universidades que sofreram busca e apreensão em materiais, impedimento de realização de atividades acadêmicas, em poucos dias, UFGD, UFF, UFCG, UFSJ, UERJ, UFMG, UFU, UNILAB, inclusive em instituições privadas como a Universidade Católica de Petrópolis.  

Diante de tamanho autoritarismo por parte de órgãos jurisdicionais que devem garantir os direitos políticos e o processo eleitoral democrático, a Procuradoria-Geral da República ajuizou ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental perante o STF. Na causa de pedir, a PGR alega ofensa à liberdade de manifestação do pensamento e ofensa também à autonomia universitária e pede que o Supremo Tribunal Federal tutele tais preceitos fundamentais, garantidos nos arts. 5º, inc. IV, IX e XVI, bem como nos arts. 206, inc. II e III e art. 207 da Constituição da República de 1988, bem como determine a nulidade de tais atos e impeça o ingresso de agentes públicos nas instituições de ensino, públicas e privadas, o recolhimento de materiais e a interrupção de aulas e atividades acadêmicas. Portanto, na verdade, pede que o art. 24 da Lei 9.504/97 tenha uma interpretação constitucionalmente adequada com os preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, além de pedir medida liminar4 

A ADPF recebeu o número 548 e foi distribuída para a relatora Ministra Carmen Lúcia. No dia subsequente, a Ministra Relatora concedeu a medida cautelar pleiteada para suspender os atos judiciais e administrativos que possibilita o ingresso de agentes públicos nas instituições públicas ou privadas, o recolhimento de documentos e a interrupção das atividades acadêmicas que servem aos cidadãos como livre divulgação das ideias e do pensamento no ambiente universitário, conforme transcrito a seguir:  

[...] em face da urgência qualificada comprovada no caso, dos riscos advindos da manutenção dos atos indicados na peça inicial da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental e que poderiam se multiplicar em face da ausência de manifestação judicial a eles contrária, defiro a medida cautelar para, ad referendum do Plenário deste Supremo Tribunal Federal, suspender os efeitos de atos judiciais ou administrativos, emanado de autoridade pública que possibilite, determine ou promova o ingresso de agentes públicos em universidades públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e discentes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários ou em equipamentos sob a administração de universidades públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos5. (grifos nossos) 

Cabe dizer que as decisões dos juízos eleitorais pretendiam embasar-se na suposta violação ao art. 37 da Lei 9.504/97 que assim dispõe: “Nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos bens de uso comum, inclusive postes de iluminação pública, sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos, é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados”. Referida disposição normativa está inserta na regulamentação da propaganda eleitoral em geral.  

Na verdade, a proibição contemplada no referido ato normativo se expressa em relação aos atos diretamente praticados pelos candidatos e à forma de divulgação da campanha eleitoral e não propriamente à veiculação do pensamento por parte de cidadãs e cidadãos que livremente expressam suas ideias. Ainda que - com uma grande má vontade democrática - se acreditasse entender que não se poderia veicular “propagandas eleitorais” de qualquer forma nas instituições universitárias, porquanto são bens pertencentes à União ou cujo uso depende de permissão da entidade federativa, tal entendimento deve sofrer uma interpretação conforme à Constituição para se coadunar ao Estado Democrático de Direito.  

É que, como se sabe, o Estado Democrático de Direito se assenta em uma liberdade fundamental, qual seja, a livre circulação de ideias e pensamentos como formas de constituir uma sociedade realmente plural e aberta ao constante diálogo e aprendizado social, vedado o discurso de ódio com o qual ela não se confunde. A liberdade de pensamento, dessa forma, implica que cidadãs e cidadãos, no processo eleitoral, possam manifestar sua opinião, suas divergências em relação às propostas dos candidatos. A democracia constitucional exige e permite o dissenso e o conflito político.  

De tal garantia fundamental extrai-se que cidadãs e cidadãos devem ser livres de qualquer coerção no seu pensamento e em suas ideias, mesmo em suas manifestações públicas, desde que respeitem entre si a igualdade, a liberdade e a dignidade de todas e todos.  

Não é à toa, pois, que a Constituição da República estabelece o pluralismo político como um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inc. V). Além de se constituir em uma garantia individual, a liberdade de manifestação do pensamento é uma das pedras angulares na regulamentação institucional. Basta citar, pois, as imunidades materiais dos parlamentares, a vedação à censura, a necessidade de fundamentação das decisões jurisdicionais e administrativas, a impossibilidade de restrição da liberdade de pensamento e de crença mesmo em estado de sítio e de defesa, a vedação do monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social. A liberdade de manifestação do pensamento é uma garantia transversal em todo o texto constitucional, abrangendo não só um direito individual, mas a constituição das instituições, incluindo, por óbvio, a mesma Justiça Eleitoral que parece desconhecer os 30 anos de vigência da CR/88. 

Neste passo, cabe dizer especificamente que a liberdade acadêmica e a autonomia universitária, constitucionalmente garantidas, não significam apenas a possibilidade que têm as Instituições de Ensino Superior de auto-organização administrativa, financeira e operacional. A liberdade acadêmica e a autonomia universitária assumem um papel decisivo para a constituição de um Estado Democrático de Direito (arts. 205 a 207; 218, da Constituição).  

Aliás, as instituições universitárias historicamente se constituíram em um espaço de resistência democrática em nossos períodos autoritários. Isso só foi possível em virtude da própria compreensão que a sociedade e o corpo social universitário têm de constituírem-se em um espaço sagrado cujo respeito não é mais do que a liberdade acadêmica, de ensino, de pesquisa, de extensão e de aprendizagem, no sentido do pleno desenvolvimento da pessoa, da preparação para o exercício da cidadania e da qualificação para o trabalho (art. 205, da Constituição Brasileira).  

Portanto, a autonomia universitária da forma como contemplada na Constituição Federal de 1988 contempla a possibilidade de auto-organização institucional e um amplo espaço de liberdade na livre circulação de ideias, de forma a garantir o desenvolvimento de um pensamento crítico e reflexivo sobre as diversas formas políticas como emanação do pluralismo político do art. 1º, V da Constituição.  

A decisão liminar da Min. Carmen Lúcia toca exatamente neste ponto e oferece uma interpretação constitucionalmente adequada do art. 37 da Lei 9.504/97: 

A autonomia é o espaço de discricionariedade deixado constitucionalmente à atuação normativa infralegal de cada universidade para o excelente desempenho de suas funções constitucionais. Reitere-se: universidades são espaços de liberdade e de libertação pessoal e política. 

Seu título indica a pluralidade e o respeito às diferenças, às divergências para se formarem consensos, legítimos apenas quando decorrentes de manifestações livres. Discordâncias são próprias das liberdades individuais. As pessoas divergem, não se tornam por isso inimigas. As pessoas criticam. Não se tornam por isso não gratas. Democracia não é unanimidade. Consenso não é imposição. Daí ali ser expressamente assegurado pela Constituição da República a liberdade de aprender e de ensinar e de divulgar livremente o pensamento, porque sem a manifestação garantida o pensamento é ideia engaiolada6 

Ora, a decisão liminar conclui de forma enfática que a constrição na liberdade de pensamento e livre divulgação de ideias como expressão da própria democracia, ainda mais quando oriunda  do Estado, é uma forma de autoritarismo que deve ser erradicada de um sistema jurídico democrático e não encontra guarida na Constituição. Por isso, as decisões judiciais e atos administrativos se revestem da mais absoluta ilegalidade e devem ser erradicados em face do Estado Democrático de Direito erigido no Brasil.  

Em pleno processo eleitoral, cuja marca fundamental e terrível tem sido o emergir de um sentimento odioso de menosprezo às liberdades públicas e à democracia; em que se verificam atentados à integridade física, moral e à vida de cidadãs e de cidadãos; o discurso de ódio de classe, de raça, de gênero, de orientação sexual e de procedência; e mesmo o assassínio político de lideranças culturais e de minorias mais vulneráveis; além da ameaça negritada às instituições; e da promessa de perseguições, de expulsões e mesmo de extermínio dos divergentes e dos opositores por parte de candidato à Presidência da República; eis uma decisão judicial que visa a garantir a liberdade de expressão, a liberdade acadêmica e a autonomia constitucional das universidades, como indispensáveis à democracia.  

Cabe, portanto, destacar a centralidade desta decisão tomada pela Min. Carmen Lúcia, ainda que em sede liminar, não apenas em face do atual processo eleitoral, mas em razão dos princípios constitucionais em que se fundamenta, ou seja, como uma garantia daquele espaço sagrado de livre ensino-aprendizado, de pesquisa e de reflexão crítica, de diálogo e de parcerias com os diversos setores sociais na construção do conhecimento, que deve se orientar à soberania nacional, à cidadania, à solução de problemas brasileiros e ao pleno desenvolvimento social do País, nos termos e objetivos fundamentais previstos pela Constituição da República.  

Desde a redemocratização nossas Instituições e o sistema democrático nunca estiveram tão debilitados. De outro lado: “Paz sem voz não é paz é medo", já diz uma canção popular. Não é censurando as manifestações espontâneas de brasileiros/brasileiras que se dirigem à defesa da democracia que vamos avançar. Estamos no limiar entre civilização e barbárie: mais do que nunca é necessária a vigília e mobilização de discentes, docentes, juízes, promotores, etc. na luta pela democracia. É na livre manifestação em defesa da democracia que não permitiremos que vençam o medo e o fascismo. 

 

Imagem Ilustrativa do Post: #EleNão 29.09 // Foto de: Sâmia Bomfim // Sem alterações

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