Por Wendy Elisa Lopez Diaz Abreu – 08/09/2017
A adoção da pena privativa de liberdade como programa oficial de política criminal destinado a enfrentar o crime e a criminalidade, parece apresentar uma importante contradição entre os seus fins declarados e a realidade que enfrenta a pessoa apenada, o que nos permite questionar a própria eficácia da pena em nosso ordenamento penal.
Compreendida como privação da liberdade ambulatória, a prisão abrange duas espécies: 1) a que decorre de sentença penal condenatória irrecorrível, que possui efetivamente o caráter de “pena” e 2) a que ocorre sem o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, como no caso das prisões cautelares processuais.
A prisão-pena é definida por Fernando da Costa Tourinho Filho como o sofrimento imposto pelo Estado ao autor do fato delituoso, na execução de uma sentença penal, como forma de retribuição ao mal praticado, a fim de reintegrar a ordem jurídica abalada.[1]
O ordenamento jurídico brasileiro reconhece na pena a presença de três funções: retributiva, preventiva e de reintegração social, quando dispõe no art. 59 do Código Penal que: “O juiz, atendendo à culpabilidade [...], estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime: as penas aplicáveis dentre as cominadas [...]”, e no art. 1º da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal) que: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.
Diante disso, a divisão das funções da pena em três etapas, de acordo com o momento ou fase de que se trate, parece adequada ao nosso ordenamento, conforme ensina Luiz Flávio Gomes[2], baseado na fórmula tripartida de Roxin.
Segundo Gomes[3], na primeira etapa, quando da sua cominação legal abstrata, a pena tem a função de prevenção geral, que se divide em: prevenção geral negativa, consistente na intimidação e prevenção geral positiva, que tem por objetivo chamar a atenção para a relevância do bem jurídico protegido.
Já na segunda etapa, que ocorre com a aplicação judicial da pena, esta assume três funções: a) função de prevenção geral, que tem por finalidade reafirmar a seriedade da ameaça abstrata e a importância do bem jurídico violado; b) função de repressão, que tem por fim reprovar o mal do crime, reprovação esta fundada e limitada na culpabilidade; e c) função de prevenção especial, que busca abrandar o rigor da repressão de modo a privilegiar institutos ressocializadores alternativos[4].
Por fim, a última etapa ocorre na fase da execução da pena, sendo que nesta fase ela exerce a função de prevenção especial positiva, que visa proporcionar condições para a ressocialização[5].
Contudo, ainda de acordo com o mesmo autor, a função de prevenção especial positiva não vem sendo cumprida. Na realidade, o que se cumpre é a função preventiva negativa, ou inocuização, que consiste no mero enclausuramento do recluso, sem que lhe sejam oferecidas quaisquer formas de assistência ou condições que favoreçam a sua reinserção na sociedade[6].
Ademais, Gomes[7] ressalta que a pena de prisão no Brasil é cumprida de forma inconstitucional, já que atenta contra a dignidade da pessoa humana, além de ser cruel e torturante. Os presídios, esvaziados de condições mínimas para se alcançar a pretendida reintegração social do preso, acabam por produzir efeitos devastadores na personalidade da pessoa, em flagrante descumprimento do artigo 1º da LEP[8].
No mesmo sentido, Tourinho Filho[9] assevera que, muito embora a principal finalidade da pena de prisão seja a de reeducar, reinserir e reintegrar o condenado na comunidade, o cárcere não tem a função educativa, representando pura e simplesmente um castigo.
Para Alessandro Baratta[10], os institutos de detenção produzem efeitos que vão de encontro à reeducação e à reinserção do condenado, e, ao contrário do que se espera, produzem efeitos que favorecem a sua estável inserção na população criminosa. Segundo ele:
O cárcere é contrário a todo moderno ideal educativo, porque este promove a individualidade, o auto-respeito do indivíduo, alimentado pelo respeito que o educador tem dele. As cerimônias de degradação no início da detenção, com as quais o encarcerado é despojado até dos símbolos exteriores da própria autonomia (vestuários e objetos pessoais), são o oposto de tudo isso. A educação promove o sentimento de liberdade e de espontaneidade do indivíduo: a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e uniformizante.[11]
Baratta assinala que o encarceramento e a sua duração têm efeitos negativos sobre a psique do indivíduo, concluindo que a pena de prisão não é eficaz como instrumento de educação. Assevera o autor que:
Exames clínicos realizados com os clássicos testes de personalidade mostraram os efeitos negativos do encarceramento sobre a psique dos condenados e correlação destes efeitos com a duração daquele. A conclusão a que chegam estudos deste gênero é que “a possibilidade de transformar um delinquente anti-social violento em um indivíduo adaptável, mediante uma longa pena carcerária, não parece existir” e que “o instituto da pena não pode realizar a sua finalidade como instituto de educação”[12].
Na mesma esteira, Luigi Ferrajoli ressalta que a prisão possui elementos de aflição física e de aflição psicológica, indo muito além da mera privação da liberdade:
[...] é preciso reconhecer que a prisão tem sido sempre, em oposição a seu modelo teórico e normativo, muito mais do que a “privação de um tempo abstrato de liberdade”. Inevitavelmente, tem conservado muitos elementos de aflição física, que se manifestam nas formas de vida e de tratamento, e que diferem das antigas penas corporais somente porque não estão concentradas no tempo, senão que se dilatam ao longo da duração da pena. Ademais, à aflição corporal da pena carcerária acrescenta-se a aflição psicológica: a solidão, o isolamento, a sujeição disciplinária, a perda da sociabilidade e da afetividade e, por conseguinte, da identidade, além da aflição específica que se associa à pretensão reeducativa e em geral a qualquer tratamento dirigido a vergar e transformar a pessoa do preso[13].
O autor mencionado, defensor da abolição da pena privativa de liberdade, considera que a prisão é capaz de lesar a dignidade das pessoas, além de ser penosa e inutilmente aflitiva, o que por si só justificaria a sua extinção, ou, no mínimo, o restringimento do tempo de duração, pois os sofrimentos que impõe não são compensados por qualquer vantagem lhe possa ser atribuída[14].
A prisão, que surgiu como meio de abrandar os rigores das penas que antes eram impostas (em especial a pena de morte), atualmente já não demonstra sua eficácia no que tange à sua função ressocializadora (prevenção especial positiva), assim como não é eficaz quanto à sua função de prevenção dos delitos, por meio de intimidação (prevenção geral).
Isso porque, sob o pretexto de propiciar a intimidação, as reformas que atualmente se inserem em nosso ordenamento são contaminadas por um desmedido rigor penal, reforçando a ideia prevencionista, tanto no sentido da prevenção especial, que se dá com a aprovação de penas cada vez mais restritivas, como no sentido da prevenção geral, resultando em constantes aumentos de pena e agravamento da execução. O exemplo clássico é a Lei dos Crimes Hediondos, que parte do falso pressuposto de que a cominação abstrata basta para solucionar o problema da criminalidade existente em nosso país.
Essa tendência legislativa contraria a própria vocação de ultima ratio do Direito Penal, no sentido de que o Direito Penal jamais deve ser utilizado de forma meramente simbólica para resolver problemas econômicos, políticos e sociais enfrentados, porquanto deve-se recorrer à criminalização de condutas quando não existirem mais formas de reprimi-las por intermédio dos outros ramos do Direito.
Além disso, o modo de atuação dos órgãos da persecução penal fere a igualdade, devido ao seu caráter seletivo e discriminatório. Uma breve análise da realidade prisional brasileira demonstra que a prisão recai sobre a população vulnerável, seja pela pobreza, baixa escolaridade, seja por questões raciais e, muito embora haja delinquência em todas as classes sociais, por razões não declaradas, algumas raramente são atingidas pela persecução penal.
Desta forma, a prisão passa a assegurar a desigualdade social, pois os processos de estigmatização e etiquetamento aos quais é exposto o apenado dificultam, se não tornam impossível, a sua reabilitação para a vida em sociedade.
O estigma de criminoso faz com que o encarcerado seja visto pela sociedade como perturbador do meio social, e mesmo quando se torna egresso, a visão retributiva não é descartada. Pois, tendo em conta que o egresso certamente teve a oportunidade de aprimorar suas técnicas no crime, de aumentar sua baixa auto-estima, seu ódio contra a sociedade, seu sentimento de rejeição pela família, tudo isso faz com que seja rejeitado pela sociedade, dissolvendo as chances de recolocar-se no mercado de trabalho, o que acaba por favorecer a reincidência [15].
Desta forma, pelo fato de a pena de prisão ser inócua em termos de medidas retributivas e preventivas, Cezar Roberto Bitencourt propõe que a imposição de pena que priva o indivíduo de sua liberdade, nos casos em que for extremamente necessária, seja aperfeiçoada; e quando for possível e recomendável, seja substituída. Além disso, recomenda que a pena de prisão somente deva ser aplicada às penas de longa duração e aos condenados efetivamente perigosos e de difícil recuperação, sendo que, no mais das vezes, não se justifica, pois o objetivo é limitar a prisão às situações de extrema necessidade, evitando-se o agravamento da ação criminógena que este tipo de pena acarreta[16].
Para Bitencourt, “os chamados substitutivos penais constituem alternativas mais ou menos eficazes na tentativa de desprisionalizar, além de outras medidas igualmente humanizadoras dessa forma arcaica de controle social, que é o Direito Penal”[17].
Ao partir da premissa de que inexiste finalidade de reeducação na pena de prisão, Ferrajoli ensina que a única coisa que se pode e deve esperar da pena é que esta não venha a perverter o apenado, ou seja, “[...] que não reeduque, mas também que não deseduque, que não tenha uma função corretiva, mas tampouco uma função corruptora; que não pretenda fazer o réu melhor, mas que tampouco o torne pior”[18].
O mencionado autor salienta que, para que isso se verifique, é necessário que as condições de vida dentro do cárcere sejam as mais humanas e menos aflitivas possíveis; que haja previsão de trabalho não obrigatório (mas facultativo) em todas as instituições penitenciárias; que haja a maior quantidade de atividades coletivas, tais como atividades recreativas e culturais; que sejam disponibilizados espaços de liberdade e de sociabilidade na vida dentro do cárcere, garantindo-se os direitos fundamentais da pessoa; e que se promova a abertura da prisão, através dos encontros conjugais, permissões, etc., com a previsão de direitos iguais para todos, e não como forma de distribuição de prêmio e privilégios para uns[19].
Para substituir a pena privativa de liberdade, Ferrajoli sustenta que poderiam ser utilizadas penas que privem parcialmente a liberdade, tais como: a semiliberdade, a liberdade vigiada, a prisão domiciliar, a limitação de fim de semana. Não de forma a integrar a pena privativa de liberdade, mas sim, na qualidade de alternativas a esta, sendo elevadas à categoria de penas principais, aplicadas no momento da condenação. A prisão, em relação a estas penas, seria a mais severa, reservada aos casos mais graves, mas de qualquer forma, estaria destinada à abolição, pois “A liberdade como a vida – é, na realidade, um direito personalíssimo, inalienável e indisponível e, por conseguinte, [...], sua privação total deveria ser proibida”[20].
Nesse liame, o argumento decisivo contra a falta de humanidade das penas é, ao contrário, o princípio moral do respeito à pessoa humana, sendo que o apenado nunca deve ser tratado como um “meio” ou “coisa”, mas como “fim” ou “pessoa”. A pena, pois, não deve ser cruel ou, tampouco, desumana. Por isso, “[...] acima de qualquer argumento utilitário, o valor da pessoa humana impõe uma limitação fundamental em relação à qualidade e à quantidade da pena”[21].
E é fundado neste valor que se deve repudiar a pena de morte, as penas corporais, as penas infames, assim como a prisão perpétua, as penas de prisão nas quais o período de encarceramento é excessivamente longo, ou aquelas que submetem o encarcerado a condições que aviltam a sua dignidade.
Nos dizeres de Michel Foucault, apesar de a prisão estar presente na sociedade antes mesmo da utilização sistemática das leis penais, tendo surgido como alternativa às penas cruéis por volta do final do século XVIII, início do século XIX, constatou-se desde sua incorporação no sistema que ela é uma forma de punir desumana, senão inútil. Entretanto, até hoje não encontramos meio de substituí-la. Encaramo-na como sendo “[...] a detestável solução, de que não se pode abrir mão”[22].
Há, pois, que se pensar em alternativas, vislumbrando outras formas de punição em que não seja necessária a tão maléfica privação de liberdade, principalmente por longos períodos, a não ser quando for efetivamente imprescindível.
Nesse sentido, faz-se necessário e urgente deixar de lado a concepção de que o Direito Penal é resposta para tudo, e de que penas mais graves e detenções mais longas irão resolver o problema da criminalidade.
É importante que se deixe de utilizar o Direito Penal como mero efeito simbólico a fim de tentar apaziguar uma sociedade que clama por mais segurança, menos violência, menos crimes e menos impunidade, salientando-se que estes são fenômenos mais sociais do que jurídicos e que não serão resolvidos por meio da prisão e pelo recrudescimento das penas, senão agravados, na medida em que mais pessoas serão criminalizadas, inseridas no sistema prisional, e maiores serão as taxas de reincidência, fomentando o próprio aumento da criminalidade.
Notas e Referências:
[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 6.ed. rev., atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 565.
[2] GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1037, 4 maio 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8334>. Acesso em: 31 ago. 2017, p. 2.
[3] Ibid., p. 2.
[4] Ibid., p. 2.
[5] Ibid., p. 2.
[6] Ibid., p. 3
[7] Ibid., p. 4.
[8] O STF, ao conceder medida cautelar na ADPF 347, reconheceu a existência de um “estado de coisas inconstitucional” no sistema carcerário brasileiro, por conta da violação generalizada de direitos fundamentais dos presos.
[9] Ibid., p. 565-566.
[10] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.183.
[11] Ibid., p. 184.
[12] Ibid., p. 184.
[13] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 331.
[14] Ibid., p. 331.
[15] Ibid., p. 5.
[16] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tribunal penal internacional: pena de prisão perpétua. Revista CEJ. v. 4. n. 11. mai/ago 2000. Disponível em: <http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewArticle/345/547>. Acesso em: 31 ago 2017, p. 10.
[17] Ibid., p. 10.
[18] Ibid., p. 319.
[19] Ibid., p. 319.
[20] Ibid., p. 336-337.
[21] Ibid., p. 318.
[22] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 195-197.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tribunal penal internacional: pena de prisão perpétua. Revista CEJ. v. 4. n. 11. mai/ago 2000. Disponível em: <http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewArticle/345/547>. Acesso em: 31 ago 2017. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, do Distrito Federal, Relator: Min. Marco Aurélio, de 19/02/2016. Disponível em <http///www.stf.jus.br>. Acesso em: 31 ago 2017. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1037, 4 maio 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8334>. Acesso em: 31 ago. 2017. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 6.ed. rev., atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2004.
Wendy Elisa Lopez Diaz Abreu é Graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Formada pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina. Especialista em Direito Processual Penal pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Especialista em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. Atualmente ocupa o cargo de Assistente Jurídica na Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina. E-mail: wendyldiaz@gmail.com
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