A Desigualdade Social, a Desconfiança Generalizada e a Educação como Questões Chaves para a Compreensão Integral do Fenômeno da Corrupção

09/04/2017

Por Affonso Ghizzo Neto – 09/04/2017

A sociedade contemporânea, em todo planeta, está passando por um momento crítico marcado por incertezas, por instabilidades políticas, movimentos extremistas, desigualdades econômicas e convulsões sociais, presente uma crise global com uma visível perda de referências, sendo também constatável o comportamento radical de grupos religiosos e/ou ideológicos, ausente a temperança necessária para a convivência plural, pautada pelo respeito mútuo e a aceitação das diferenças humanas.

Parece ser notória uma desigualdade mundial marcada por injustiças, violações, governos corruptos e exercício arbitrário do poder, afetando todos os continentes do planeta, países, regiões, cidades e pequenos vilarejos desfavorecidos, vítimas da ganância do mercado, presas fáceis para aqueles que administram a especulação do mercado através da distribuição de oportunidades e a concentração de riquezas. Essa desigualdade é sem dúvida um dos maiores desafios a serem enfrentados pelas sociedades modernas, haja vista que determinante de muitos dos conflitos existentes na atualidade. E, junto com a crise atual, consta-se uma intensificação desse processo consistente no agravamento dos problemas socioeconômicos das pessoas menos privilegiadas.

Como se sabe, a desigualdade social – identificada como a diferença de poder aquisitivo entre castas sociais –, enquanto fenômeno social, acarreta outras consequências igualmente preocupantes em sociedades de massas, múltiplas anomalias sociais que resultam em diversos malefícios à população em geral. Percebe-se que os países onde a desigualdade social é mais elevada, também registram índices igualmente elevados de outros fenômenos negativos, dentre os quais, violência, criminalidade e impunidade; desemprego e miséria; desigualdade e discriminação raciais; guerras, revoluções e revoltas sociais; educação precária, manipulação da opinião pública e desvirtuamento das informações; falta de acesso às políticas públicas de qualidade; assim como a diferenciação de tratamento e de oportunidades entre os mais abastados e os mais pobres.

Essa desigualdade social também se materializa quase sempre em desigualdade econômica, visível em sociedades marcadas por distribuição de rendas engessadas, desiguais e injustas. São espaços onde o mérito e o esforço pessoal não encontram as mesmas oportunidades no tecido social, desde o processo de formação escolar até a inserção no mercado de trabalho. Enquanto uma pequena minoria possui a maior parte dos recursos econômicos, uma maioria sobrevive com sobras, com as migalhas disponíveis para o contento. Dito de outra forma, um processo de exclusão da cidadania, daqueles que não possuem o direito a uma vida digna, com acesso à moradia, educação, trabalho, saúde, previdência etc.

De acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)[1], os rendimentos de 1% dos indivíduos mais ricos no planeta são compatíveis a fração de 57% dos cidadãos mais pobres. A BBC afirmou que a riqueza acumulada por 1% dos mais ricos no mundo equivale à riqueza dos 99% restantes da população no planeta, fazendo referência a um estudo da organização não-governamental britânica Oxfam, a partir da análise de dados do banco Credit Suisse, em outubro de 2015.[2] Ainda segundo dados da BBC, datados de 16 janeiro 2017, as oito maiores fortunas do planeta detêm juntas mais riquezas que a metade dos mais pobres no mundo.[3] Essas estatísticas confirmam a diferença na concentração de renda entre ricos e pobres em todo o planeta, situação esta que tem reflexo prático na qualidade de vida das pessoas, desde o acesso a alimentos até a utilização de bens de consumo, enfim, em relação a serviços elementares para a sobrevivência humana.

No Brasil – em que pese o País figurar em 2015 entre os 10 (dez) países mais ricos do mundo com um PIB de 1.774,72 dólares americanos[4] – a desigualdade social se materializa na corrupção e na impunidade institucionalizada, decorrência da visível má distribuição de renda. Essa desigualdade também pode ser percebida na violência cotidiana, visível no caos social instalado e no descontrole do sistema de segurança pública, especialmente nos grandes centros urbanos. Espaços urbanos estes, caracterizados pela favelização, pobreza, miséria, desemprego, desnutrição e todo o tipo de marginalização possível, situação agravada por um sistema penal ineficiente e criminoso, totalmente avesso aos fins que deveria objetivar, quais sejam: punir e recuperar. Na verdade, uma “fábrica de loucos e criminosos”.

Essa desigualdade social é antiga, formatada ainda no período em que o País era colônia de Portugal, sendo possível identificar procederes que foram determinantes para a formação da peculiar desigualdade econômica brasileira, com destaque para: a) a influência do proceder aético e voraz dos colonizadores; b) a negociação de títulos de nobreza e a distribuição de grandes latifúndios; e c) a exploração da mão de obra escrava. Como observado na obra Corrupção, Estado Democrático de Direito e Educação[5]:

A entrada no estamento depende da personalidade e das qualidades individuais do indivíduo, não havendo exigência de padrão econômico, compondo um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade social. O estamento é estrutura comum presente nas sociedades menos desenvolvidas onde o mercado ainda não dominou por completo a economia, a exemplo das sociedades feudal e patrimonial. Identificado apenas residualmente nas sociedades capitalistas contemporâneas, o estamento pressupõe distanciamento e exclusividade social, objetivando a realização de vantagens materiais e espirituais próprias, todas consagradas pelas convenções tradicionais, alheias ao ordenamento legal. O encastelamento do estamento acaba por determinar a apropriação das oportunidades econômicas, com os monopólios de atividades lucrativas e o exercício dos principais cargos públicos.

Com o passar dos anos, com o crescimento dos índices de miséria e de pobreza, assim como o distanciamento do poder aquisitivo entre as classes sociais – visível ainda hoje na dificuldade de acesso à educação, saúde, trabalho, segurança, previdência etc. –, muitos brasileiros não experimentaram a experiência do real exercício da cidadania, vivendo em condições de exploração social onde, por exemplo, o voto é só mais uma mercadoria a ser negociada no grande comércio da corrupção governamental institucionalizada.

Diante de tais ocorrências, faz-se necessário concluir que uma distribuição de renda desproporcional e injusta – uma desigualdade social que determina condições de vida indignas a muitos brasileiros – está diretamente relacionada com os índices de insatisfação, desconfiança e pessimismo, ausente a coesão social necessária para o exercício equilibrado de uma democracia material e plena.

Ademais, estes índices negativos, materializados através da falta de confiança no bom funcionamento das instituições, também têm relação direta com práticas corruptas institucionalizadas, assim como com os altos índices de impunidade relacionados aos chamados “crimes do colarinho branco”.

Como argumenta Eric Uslaner[6], o sentimento social de desconfiança, ou seja, a crença de que a maioria das pessoas não sejam confiáveis, é um fator determinante para a reprodução banalizada de práticas corruptas. E, geralmente, esse sentimento de desconfiança é menor em sociedades onde os índices de desigualdade social são baixos.

Por outra perspectiva, Uslaner[7] – a exemplo do que sustentamos desde 2002 com os fundamentos do projeto “O que você tem a ver com a corrupção?” – também concorda que a educação tenha um papel preponderante e decisivo no combate à corrupção e, por consequência, na formação de sociedades mais justas e equilibradas, com índices mais baixos de desigualdade social, enfim, com uma melhor distribuição de renda. Em seu trabalho The historical roots of corruption: mass education, economic inequality, and state capacity[8], Uslaner comprova a relação direta existente entre os baixos níveis de educação e os altos índices de corrupção em 78 (setenta e oito) países.

Aliás, segundo Uslaner[9], os EUA, a exemplo de outros países desenvolvidos, possui uma longa tradição histórica baseada em sistemas de educação universal, pautado pela igualdade e pelo amplo acesso social. Como é sabido, as instituições políticas funcionam melhor em sociedades mais educadas, igualitárias e justas.

Neste particular vale referência ao artigo intitulado 4 Charts that Show How Rising Income Inequality Increases Pessimism[10], de Nick Bunker, assistente de pesquisa da equipe de Política Econômica do Center for American Progress, que, ao fazer referência aos estudos de Uslaner, revela que o aumento da desigualdade social nas últimas décadas nos Estados Unidos levou muitos americanos a perder a confiança em alguns aspectos-chave do chamado "sonho americano", consistente na crença inabalável de que o futuro será melhor do que o passado. Segundo observa o autor, a desigualdade social torna as pessoas menos propensas a acreditar que “o que me afeta também diz respeito ao outro”, estando também igualmente propensas a acreditar que pessoas comuns não possuem o poder de controle sobre seus representantes políticos e os acontecimentos futuros. A respeito da realidade americana Bunker adverte:

Rising income inequality in the United States has increased pessimism among Americans, according to data analyzed in a new Center for American Progress working paper by University of Maryland political scientist Eric Uslaner. Below are some key charts from the working paper, “Inequality, Pessimism, and Social Cohesion,” that show how the public has become less optimistic about economic growth, more pessimistic about the welfare of the average person, and less trusting of other people, as income inequality has skyrocketed over the past 30 years. 

(…) Uslaner’s paper calculates how much pessimism—measured by specific polling questions—has been affected by rising income inequality. 

As these charts show, rising income inequality has resulted in greater pessimism among Americans with regard to economic growth, the welfare of the average person, and the trustworthiness of other people and the government. For a more detailed explanation (…).

Em resumo, índices elevados de desigualdade social podem levar os indivíduos a um pessimismo coletivo generalizado em relação às expectativas futuras, gerando, dentre outros fatores: a) a desconfiança entre os próprios cidadãos; b) o sentimento de falta de legitimidade dos governos eleitos; e c) a desconfiança em relação ao bom funcionamento das instituições. Esse pessimismo generalizado conduz, em regra, a uma menor coesão social, polarizando-se equivocadamente os debates sobre os problemas nacionais, assim como ideias e respectivas soluções, tornando as questões políticas “desinformadas”[11] e muito mais difíceis.

Conforme já tive oportunidade de matutar no escrito intitulado Iguales pero diferentes[12], fazendo referência à reflexão proposta pelo filósofo espanhol Fernando Savater, as pessoas muitas vezes acabam se fixando em pequenas diferenças em relação ao outro, esquecendo de que compartilhamos em comum muitas outras coisas mais significativas e importantes, inclusive, no caso brasileiro, as consequências nefastas deste processo político e social caracterizado por uma flagrante desigualdade social e a institucionalização da corrupção e da impunidade nos governos.

Assim, se mantivermos um olhar atento e mais amplo à realidade que nos rodeia, esquecendo esta polarização política estúpida, despropositada, irrelevante e inútil, notadamente visível nas redes sociais em embates estéreis resumidos em rivalidades entre esquerda e direita, capitalismo e socialismo, Partido 'A' e Partido 'B' etc. – tendo a capacidade solidária de relativizar nossas diferenças e opiniões ideológicas, superando a atual desconfiança social generalizada e criando novos círculos virtuosos a partir de redes sociais de controle que fomentem o otimismo, a esperança e a confiança coletiva – poderemos descobrir o quanto compartilhamos em comum com os nossos semelhantes.

Para tanto, como se pode concluir, torna-se necessário – ao tentar romper o forte e poderoso círculo vicioso da desigualdade social brasileira – revolucionar o sistema educativo brasileiro, valendo-se de uma educação universal de qualidade como instrumento decisivo de transformação para a construção de um País mais justo, igualitário e com uma melhor distribuição de renda e, consequentemente, com índices mais baixos de corrupção e de impunidade. Eis o grande desafio nacional, restando descobrir como implementá-lo com eficiência, efetividade e resultados práticos.


Notas e Referências:

[1] “Essas porcentagens ainda não expressam toda a gravidade do problema. O abismo entre ricos e pobres vem aumentando nos últimos anos. Hoje, o 1% mais rico da população mundial tem renda equivalente à dos 57% mais pobres. O Pnud investigou a concentração de renda em 116 países. E concluiu que as maiores desigualdades ocorrem em Serra Leoa, na República Centro-Africana, em Suazilândia, no Brasil e na Nicarágua. A Cúpula do Milênio, promovida pela ONU em 2000, aprovou um conjunto de metas para erradicar a pobreza até 2015. Tratava-se de um projeto ambicioso e também de uma corrida contra o tempo. Em 2001, passado um ano, porém, verificou-se que grande número de países nem sequer começara a trabalhar pelo cumprimento dos objetivos fixados. A meta de reduzir em dois terços a mortalidade de menores de 5 anos, por exemplo, não estava sendo respeitada por 93 países (62% da população mundial). E o objetivo de diminuir pela metade o número de pessoas que recebiam menos de 1 dólar PPC por dia não fora alcançado por 74 nações (mais de um terço dos habitantes do planeta).” Disponível em: http://camargoaranha3ma.blogspot.com/2015/06/idh-subdesenvolvimento-linha-da-pobreza.html

[2] Site BBC. 1% da população global detém mesma riqueza dos 99% restantes, diz estudo. Por Anthony Reuben, BBC News, matéria datada de 18 janeiro 2016. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfam_fn

[3] Site BBC. Os 8 bilionários que têm juntos mais dinheiro que a metade mais pobre do mundo. Matéria datada de 16 janeiro 2017. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/internacional-38635398

[4] “O nosso Brasil acumulou um PIB de USD $ 1.774.72 trilhões em 2015, apesar da crise que assolou o país, onde o PIB regrediu 3,8%. Nossa economia vem principalmente de seus setores de serviços, fabricação de produtos de mineração, e agricultura. Na verdade, é a maior economia dos países sul-americanos.” Top 10 países mais ricos do mundo (PIB/2015). Disponível em: http://top10mais.org/top-10-paises-mais-ricos-do-mundo-2012-2/

[5] GHIZZO NETO, Affonso. Corrupção, estado democrático de direito e educação, 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.30.

[6] USLANER, Eric. Argumentos obtidos pelo autor deste artigo em entrevista pessoal realizada com o professor Eric Uslaner em 17 de fevereiro de 2017 (Eric Uslaner is professor in 
Department of Government and Politics
 University of Maryland
College Park, home page: http://gvptsites.umd.edu/uslaner/).

[7]  USLANER, Eric. _____ IDEM.

[8] USLANER, Eric. The historical roots of corruption: mass education, economic inequality, and state capacity. Available in: https://www.researchgate.net/profile/Eric_Uslaner/project/A-new-book-The-Historical-Roots-of-Corruption-see-the-first-paper-in-Comparative-Politics/attachment/57f427a508aeb96356374d27/AS:413589065224193@1475618725809/download/Uslaner+The+Historical+Roots+of+Corruption+Proposal.docx?context=projectDetails 

[9] USLANER, Eric. Argumentos obtidos pelo autor deste artigo em entrevista pessoal realizada com o professor Eric Uslaner em 17 de fevereiro de 2017.

[10] BUNKER, Nick. Article 4 Charts that Show How Rising Income Inequality Increases Pessimism.        Center for American Progress, Available in: https://www.americanprogress.org/issues/economy/news/2012/12/05/46886/4-charts-that-show-how-rising-income-inequality-increases-pessimism/

[11] Considerando essa “desinformação” em sentido mais amplo, incluindo, além da falta de informação e comunicação política; a manipulação da informação pelos “donos do poder”, assim como o respectivo desvirtuamento dos fatos pela grande mídia.

[12] GHIZZO NETO, Affonso. Artigo Iguales pero diferentes, Jornal A Notícia, 04 de novembro de 2015. Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/comunidade/2015/11/04/iguales-pero-diferentes/


affonso-ghizzo-neto. . Affonso Ghizzo Neto é Promotor de Justiça. Doutorando pela USAL. Mestre pela UFSC. Idealizador do Projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”. aghizzo@gmail.com / aghizzo@usal.es. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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