A Defensoria Pública e o Direito Processual Penal Brasileiro

05/07/2015

Por Geraldo Prado - 05/07/2015

Introdução

Em 07 de outubro de 2009 foi editada a Lei Complementar nº 132, que alterou dispositivos da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, responsável pela organização da Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e pela prescrição de normas gerais para organização da Defensoria Pública nos Estados da Federação.

Sob a ótica da nova lei e dos objetivos declarados para a Defensoria Pública justifica-se refletir sobre alguns importantes aspectos do processo penal brasileiro.

Compreende-se que seja assim por muitas razões: em primeiro lugar porque é inegável que a LC 132 veio fortalecer o sistema de assistência judiciária estatal no contexto de um país de dimensões continentais e distorções de renda e de qualidade de vida ainda bastante significativas, em que a judicialização de pretensões próprias das aspirações de um estado do bem-estar social desafia dificuldades de acesso à justiça, inaceitáveis para os padrões civilizados; em segundo lugar porque a vida e a liberdade das pessoas dos grupos e classes sociais mais desfavorecidos não podem ficar à mercê das políticas de índole punitiva, levando-se em consideração o fato indiscutível de que a “promessa constitucional” de realização de um estado de bem-estar social frustrou-se com a reviravolta neoliberal da década de 90 do século passado, e uma das expressões mais claras disso consistiu na multiplicação do encarceramento de pessoas, nos últimos dez anos, a comprovar empiricamente que há um “Estado Policial” embutido na democracia liberal.

A correia de transmissão que faz passar a energia gerada pela tensão entre as promessas e ações em busca de dignidade para todos e a reação das forças econômicas e políticas que sustentam, com base em uma ideologia do individualismo possessivo, que o paraíso na terra depende das conjunções favoráveis do mercado, é afetada pelo invariável recurso de se valer do sistema de justiça criminal para dar conta das disfunções que surgem, transformando a Justiça Criminal em locus privilegiado de luta, que não raro colhe de um lado (dos acusados) uma multidão de pessoas às quais se nega em concreto a possibilidade de acesso a meios e recursos para enfrentar por conta própria as dificuldades reais e do outro encontra o aparato estatal de repressão, que se consolidou ao longo de dois séculos e que se aperfeiçoou na tarefa de funcionar por fora dos limites que são reconhecidos como próprios do Estado de Direito.

A tradição inquisitorial do processo penal brasileiro revela-se neste aparato, cujas ações ainda são dirigidas prioritariamente contra os que estão na base econômica da sociedade ou integram grupos frágeis assim definidos historicamente. E mesmo encerrado o ciclo das ditaduras, com a Constituição da República de 1988, esta tradição sobrevive da permanência de uma cultura inquisitorial que se vale de tudo: desde leis manifestamente inconstitucionais, que violam o direito de defesa e a garantia do contraditório, a práticas policiais e judiciais igualmente em desarmonia com os direitos fundamentais.

Por isso uma instituição como a Defensoria Pública não apenas é necessária no Brasil, mas é verdadeiramente essencial, se o que se quer é trilhar o caminho do Estado de Direito e da universalização dos meios para que se assegure a todos a condição de vida digna que está na base de nosso pacto social (artigo 1º, inciso III, da Constituição da República).

O processo penal inquisitorial no Brasil de hoje

Não obstante a boa vontade de parte da doutrina processual penal brasileira e o diligente trabalho de revisão da jurisprudência em matéria penal, levado a cabo pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos sete anos, a verdade nua e crua é que ainda se vive por aqui sob a égide de um processo penal inquisitorial, mesmo que, à semelhança do modelo alemão, se possa chamá-lo de “processo penal inquisitorial reformado”.

Não é difícil perceber os sinais inquisitoriais de nosso processo penal, malgrado a reforma processual penal de 2008[1].

Com efeito, as bases para um processo penal acusatório dependem da estruturação de procedimentos em que as principais funções processuais – acusar, defender e julgar – estejam escrupulosamente distribuídas entre sujeitos processuais distintos: acusador, acusado e seu defensor e juiz.

A estrita diferenciação das funções obedece à lógica própria do Estado de Direito de que o exercício do poder punitivo sofre condicionamentos e somente é considerado válido quando observa os limites constitucionais e legais que orientem a atuação estatal na busca de uma condenação conforme preceitos éticos que alicerçam a vida em sociedade.

Assim, o propósito de reprovação das condutas criminosas não se impõe por si só. Punir após a determinação da “verdade” da responsabilidade penal do acusado não está acima da verificação do vínculo entre os meios (processuais) e o respeito à dignidade da pessoa do próprio acusado, independentemente da acusação que pese contra ele.

Este contorno ético, verdadeira fronteira axiológica, dentro da qual as atividades das partes têm lugar para determinar a responsabilidade penal do acusado, inibe qualquer “pretensão” de o juiz determinar o objeto do processo, quer para orientar o exercício futuro da ação penal (portanto, veda-se a atuação ex officio na fase de investigação), quer para fazer nascer o processo (como dispunha a redação primitiva do artigo 531 do Código de Processo Penal, reformado pela Lei nº 11.719/08), quer ainda para modificar a própria acusação, alterando-lhe o objeto com autonomia em face do Ministério Público (preceito anterior do artigo 384 do Código de Processo Penal, também reformulado pela Lei nº 11.719/08).

O caráter inquisitorial do processo penal não está apenas na definição dos limites da acusação. Talvez com maior sutileza percebe-se a fusão das principais funções processuais na figura do juiz, característica do modelo inquisitório, na atuação judicial em tese dirigida à proteção do processo (medidas cautelares decretadas sem provocação das partes) e na denominada gestão da prova, a respeito da qual com tanta ênfase Jacinto Nelson de Miranda Coutinho se pronuncia.

O poder instrutório, tal seja, a capacidade de o juiz produzir provas não requeridas pelas partes, é da essência do modelo inquisitorial, pela estrutura mental que é peculiar a esta atividade: a atuação probatória consiste em subministrar meios de demonstração da existência de fatos que conferem suporte às teses jurídicas (hipóteses) apresentadas pelas partes, acusação e defesa.

Tem-se aí, pois, o juiz “propondo” a si mesmo meios de prova para se convencer de algo que não foi determinado por ele, que sequer podia fazer isso. São meios de provas olvidados pelas partes, mas que ao olhar do juiz são imprescindíveis para demonstrar, em regra, a responsabilidade penal do acusado, confirmando-se a hipótese acusatória[2].

O reformado artigo 156 do Código de Processo Penal, alvo da Lei nº 11.690/08, em sua nova versão, preserva em mãos do juiz o poder de produzir provas de ofício, ainda antes do início do processo:

“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. ”

O dia a dia forense sugere a dispensa de qualquer pesquisa empírica para se ter por demonstrada a satisfação com que, na maioria das vezes, os magistrados acolhem de boa-fé estes poderes instrutórios.

Karl Heinz Gössel chamará atenção para isso também na Alemanha, alertando para a máxima do senso comum inquisitorial, em razão da qual se supõe que “se a verdade deve ser investigada [no processo], verdade que, por suposto, é indivisível, resulta natural confiar somente ao tribunal da causa a busca da verdade”[3]. O citado autor chama as inclinações inquisitoriais dessa natureza de “extravios funestos”!

A naturalidade com que os magistrados incorporam esta função probatória explica a grande rejeição da corporação em relação à instituição do juiz das garantias, proposta nos artigos 14 a 17 do Projeto de Lei do Senado nº 156 (novo Código de Processo Penal), para atuar na salvaguarda dos direitos fundamentais dos imputados:

“A criação da comissão da AMB para analisar o projeto de lei da reforma do Código de Processo Penal (CPP) foi destaque na edição desta quarta-feira (28), na editoria Direito e Justiça, do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro.  O presidente da AMB, Mozart Valadares Pires, criticou a implementação do juiz de garantias, que segundo o novo CPP, será responsável pelo controle dos direitos fundamentais investigados e pela legalidade da investigação criminal. ”[4] [Grifo nosso].

Alberto Binder afirma que em essência o inquisitorialismo é uma cultura e uma prática[5]. E é assim que se deve examinar o processo penal concreto, que afeta a vida das pessoas para além das definições teóricas hegemônicas.

A distribuição rigorosa das principais funções processuais, que marca o modelo acusatório de processo, não é fruto de capricho, inocência teórica ou generosidade para com quem quer que seja.

Em realidade, a conquista histórica de que resultará este modelo, de definição tão imprecisa, como salienta Mirjan Damaska[6], comprova que o afastamento do juiz da função acusatória operou na lógica pela qual o magistrado passa a cumprir outras importantes funções, nitidamente distintas da acusação, mas que estão longe de significar inércia ou paralisação.

Com efeito, o deslocamento da atuação judicial derivou do reconhecimento dos excessos notados no funcionamento cotidiano do Sistema de Justiça Criminal (que incorpora a Polícia), a exigir uma figura com autoridade para coibir estes excessos e evitar, tanto quanto possível, o uso indevido da máquina judiciária criminal.

O juiz do modelo acusatório é um juiz de garantias o tempo todo!

Na primeira etapa da persecução criminal caberá a ele preservar as liberdades públicas das pessoas envolvidas, condicionando a intervenção dos órgãos estatais de persecução no âmbito destas liberdades à prova da necessidade e utilidade da compressão dos direitos e, mesmo assim, definindo restritivamente (em profundidade e extensão) as fronteiras da intervenção (prisão, interceptação das comunicações telefônicas, busca e apreensão etc.).

No segundo momento caberá a este juiz avaliar se a acusação realmente tem uma causa penal. Em outras palavras, se o Ministério Público tem justa causa para acionar o acusado, se há base para supor verídica a imputação, se ela é viável, se pode ser provada com os meios de prova propostos pela acusação e, finalmente, se a aquisição das informações que configuram a alegada justa causa obedeceu aos rigores constitucionais e legais.

E na terceira etapa o juiz avaliará a prova produzida pelas partes, velando para que estejam em condições de igualdade e paridade de armas, pois que, conforme salientou Karl Heinz Gössel, “um Estado obrigado pela vigência jurídica e justiça não pode entregar o imputado à mercê unicamente da superioridade evidente dos órgãos de persecução penal”[7].

Ora, quando a lei contempla poderes instrutórios a cargo do juiz e, além disso, a prática do foro reafirma a postura política dos magistrados, em face da reforma proposta no PLS 156 para eliminar a mencionada iniciativa probatória, visando com a ação política preservar estes poderes em prol do conhecimento de uma inatingível (e desmoralizada epistemologicamente) “verdade real”, a existência de uma defesa concreta no processo penal, que funcione como óbice à sistemática violação de direitos e garantias processuais penais dos mais débeis, que formam a imensa maioria dos destinatários do processo penal, é uma exigência do Estado de Direito para o qual, neste contexto, a Defensoria Pública revela-se instituição de defesa da democracia.

Ressalte-se que a perseverante prática inquisitorial em regra se apoia na boa-fé e nas boas intenções dos magistrados, que também se vêem às voltas com dificuldades concretas aparentemente insuperáveis. Não são raros os relatos de juízes que estão impedidos de trabalhar porque o Ministério Público não dota de promotores de justiça em número suficiente as Comarcas, ou até porque a este número insuficiente de promotores de justiça soma-se o pequeno plantel de defensores públicos, o que obriga estes profissionais a se desdobrarem, deixando apenas nas mãos dos juízes a condução integral dos processos.

Do ponto de vista psicológico, compreendem-se assim as práticas e até determinada jurisprudência, que tende a preservar a validade de processos penais que sem dúvida alguma são nulos.

Como pode um juiz julgar com imparcialidade, quando se vê solitário, na sala de audiências, em um processo criminal, premido este juiz pelas exigências estatísticas dos órgãos de controle (corregedorias e Conselho Nacional de Justiça), a ter de ser, simultaneamente, acusador, defensor e juiz?

Do somatório disso que constitui o cotidiano dos julgamentos criminais cristaliza-se, em grande parte, a cultura inquisitorial: por contingência ou convicção muitos juízes criminais não atuam como juízes das garantias, conforme o modelo acusatório, e terminam por consagrar o modelo inquisitorial.

A tudo não se deve deixar de acrescentar a pressão que a opinião pública com alguma frequência exerce sobre os juízes, em busca da punição “rápida e exemplar” dos criminosos. No seio da mídia que cobre e forma essa “opinião pública” domina a ideia de que o processo é inimigo da punição. E entre todos, são os Defensores os inimigos públicos nº 1!

O Defensor Público e o processo inquisitorial: a defesa necessária em busca do modelo acusatório

A partir do momento em que a consciência democrática ganha vida e passa a exigir tomada de posição no processo penal brasileiro, contra as práticas autoritárias inquisitoriais, a própria concepção do que representa o processo penal acusatório irá jogar papel decisivo na delimitação das atividades defensivas.

Assim é que para a arquitetura normativa constitucional, a “planta” do processo penal sobre a qual os “operários” trabalharão cotidianamente, em investigações e processos, o eixo normativo é constituído pela presunção de inocência, definida no artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Toda a dinâmica processual penal deve operar conforme a lógica da presunção de inocência. A investigação criminal há de respeitar o patrimônio de direitos da pessoa investigada e as medidas incidentes sobre seus direitos fundamentais são excepcionais. Estas medidas somente hão de ser providas quando estritamente necessárias à formação da justa causa e após a indispensável ponderação entre os interesses jurídicos afetados pela reclamada intervenção e os objetivos procedimentais perseguidos. Não se pode tomar provisoriamente do suspeito ou investigado bem da vida que não lhe seria desapropriado na hipótese de ser acusado e condenado. É vedada a antecipação da tutela penal consistente em qualquer das consequências de uma condenação penal: prisão, limitação da liberdade de alguma outra maneira e perda de disponibilidade sobre os próprios bens.

E será assim também no que concerne ao processo.

Com isso, o juiz não tem iniciativa em âmbito cautelar, salvo para resguardar a liberdade do imputado, indevidamente atingida por ato de autoridade, bem como o magistrado não dispõe de iniciativa para o processo, quer no que toca a determinar seu início, quer no que concerne à imputação e tampouco no que se refere à propositura dos meios de prova.

A presunção de inocência atua igualmente como salvaguarda do imputado (investigado ou acusado), ao fazer recair sobre a acusação o ônus da prova. Cabe ao Ministério Público demonstrar que o acusado é penalmente responsável pela infração que atribui ao acusado na denúncia, devendo arregimentar os meios de prova que possam cumprir esta função.

Na tensão entre a “estrutura normativa acusatória” e o cotidiano predominantemente inquisitorial de nosso processo penal é exatamente o eixo da presunção de inocência o aspecto mais afetado pelas energias autoritárias.

Certamente por isso Claus Roxin não tem dúvida em definir a função do Defensor no processo penal como: “garante jurídico-constitucional da presunção de inocência para o imputado”[8].

E a defesa da presunção de inocência depende, instrumentalmente, de serem assegurados o direito de defesa e a garantia do contraditório, previstos no artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República.

Ao desavisado, pois, pareceria estranho ver a LC 132/2009 instituir o artigo 3º - A, para deduzir, entre os objetivos da Defensoria Pública, a tarefa de velar pela “garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório”.

Aos que conhecem processo penal, mas não sabem o endereço do fórum ou das delegacias de polícia, a previsão normativa padeceria de um estranho pendor por repetir a máxima constitucional.

Infelizmente, mesmo na academia (e principalmente aí) há os que vivem em um mundo apartado da experiência cotidiana, novos paleopositivistas que, por receio do significado pejorativo da expressão, buscam abrigo em uma das múltiplas facetas do neoconstitucionalismo, entrincheirados na retórica que em passado recente era chamada de redoma.

Aos que vivem as dores experimentadas por acusados presos em condições insalubres, muitas vezes por força de decisões carentes de fundamentação, e que se veem imbuídos da missão de lutar pela liberdade dessas pessoas, enfrentando os prejuízos e preconceitos que dão forma a um moderno direito penal do autor (vide o caso dos processos contra acusados de tráfico de drogas), a reafirmação do preceito constitucional como objetivo da Defensoria Pública em verdade é a arma da luta civilizada que podem travar, como Defensores Públicos, em busca de... civilização!

Ao se assumir teoricamente que o papel da Defesa no processo penal consiste em tutelar a presunção de inocência e se defi nir, no relevante plano normativo de uma Lei Complementar (à Constituição da República) que a Defensoria Pública se orienta à defesa da “ampla defesa e do contraditório”, as perspectivas de transformação do processo penal de inquisitório para acusatório multiplicam-se.

Em verdade e para além da mera retórica ufanista, têm-se aqui as ferramentas para erradicar decisões dos tribunais que, prestando inconsciente homenagem ao passado ditatorial, reproduzem velhos jargões, muitas vezes elevados à condição de enunciados jurisprudenciais, que não sobreviveram em tese à Constituição de 1988, mas que ainda assim continuam sendo invocados pelos tribunais, certamente sem a real percepção do significado autoritário que trazem embutido.

Exemplo disso pode ser traduzido no verbete nº 523 das Súmulas do Supremo Tribunal Federal:

“NO PROCESSO PENAL, A FALTA DA DEFESA CONSTITUI NULIDADE ABSOLUTA, MAS A SUA DEFICIÊNCIA SÓ O ANULARÁ SE HOUVER PROVA DE PREJUÍZO PARA O RÉU. ”

Muito provavelmente os julgadores não se deram conta de que este verbete entrou em vigor dez dias antes de o AI 5 completar o primeiro aniversário de sua nefasta existência (Sessão Plenária de 03/12/1969)! E que as razões de um e outro eram complementares, em perfeita harmonia com o Brasil da época.

Ao não se prestigiar a ampla defesa – e tolerar, portanto, a condenação fundada em processo em que as alternativas de resistência à imputação sofreram reconhecida limitação por obra do defensor – o Supremo Tribunal Federal reforça a resistência à cultura acusatória, que deveria incentivar.

Vale aqui citar a título de exemplo a decisão proferida pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em 24 de novembro de 2009, em habeas corpus (nº 97413/SP) da relatoria do Ministro Dias Toffoli:

Ementa

EMENTA Habeas corpus. Processual penal. Improcedência da alegação de deficiência técnica da defesa prévia apresentada pelo defensor dativo. Prejuízo não demonstrado pelos impetrantes. Incidência da Súmula nº 523 do STF. Precedentes da Corte. 1. A alegação de deficiência técnica da defesa prévia apresentada pelo defensor dativo não encontra respaldo nos autos, uma vez que os impetrantes não lograram demonstrar eventual prejuízo causado ao paciente de modo a justificar a concessão da ordem.

A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a nulidade por deficiência na defesa do réu só deverá ser declarada se comprovado o efetivo prejuízo. Esse entendimento está, ainda, preconizado na Súmula nº 523/STF, que assim dispõe: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. 3. Habeas corpus denegado. [Itálico nosso]

A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Carlos Ayres Britto. 1ª Turma, 24.11.2009.

A mudança de cenário depende muito, e fundamentalmente, da Defensoria Pública.

Em um contexto adverso, em que o domínio da cultura inquisitorial é reforçado pelo modo como os meios de comunicação lidam com a questão criminal, não há dúvida de que o respaldo legal fortalece a posição da Defensoria Pública, no cumprimento de uma missão que se reputa essencial ao Estado de Direito, tendo em mira o objetivo maior de assegurar a dignidade de todas as pessoas.

Assim, se por um lado ainda são visíveis as marcas inquisitoriais, a atuação de Defensores Públicos nos tribunais superiores tem sido responsável por acelerar o processo de “modernização acusatória” de nosso processo penal.

Para ilustrar vale a citação do acórdão, proferido em grau de repercussão geral, em julgamento realizado em 19 de novembro de 2009, em processo da relatoria do Ministro Cezar Peluso, em que se defendia o emprego, exclusivamente em benefício da defesa, de prova obtida mediante gravação de conversas:

RE 583937 RG-QO/RJ - RIO DE JANEIRO

REPERCUSSÃO GERAL POR QUEST. ORD. RECURSO

EXTRAORDINÁRIO

Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO

Julgamento: 19/11/2009          

Publicação

REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO

DJE-237 DIVULG 17-12-2009 PUBLIC 18-12-2009

EMENT VOL-02387-10 PP-01741

Parte(s)

RECTE.(S): FERNANDO CORREA DE OLIVEIRA

ADV.(A/S) DPE-RJ - CLÓVIS BOTELHO

ADV.(A/S) : DPE-RJ - ADALGISA MARIA STEELE MACABU

RECDO.(A/S)  : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Ementa

EMENTA: AÇÃO PENAL. Prova. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida.  Recurso extraordinário provido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro.

Decisão: O Tribunal, por maioria, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, reconheceu a existência de repercussão geral, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da admissibilidade do uso, como meio de prova, de gravação ambiental realizada por um dos interlocutores e deu provimento ao recurso da Defensoria Pública, para anular o processo desde o indeferimento da prova admissível e ora admitida, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Eros Grau e, neste julgamento, o Senhor Ministro Carlos Britto. Plenário, 19.11.2009. [Negrito nosso].

Considerações finais

Verifica-se assim que há muitas razões, pois, para a Cidadania festejar a aprovação da Lei Complementar nº 132/2009!

Para os que militam no processo penal, independentemente de serem Defensores Públicos, entre muitos motivos de peso para alegrar-se com a LC destaca-se a afirmação jurídica de um instrumental, posto em forma de missão da Instituição, que tende a balançar a agulha do Sistema Criminal em direção ao modelo acusatório e assim harmonizar o trato cotidiano das causas penais aos mandamentos constitucionais de tutela da dignidade da pessoa humana.

O longo caminho a ser percorrido por certo encontra Defensores Públicos com consciência de suas responsabilidades e preparados para o embate democrático, que, em outras palavras, nada mais é do que a luta por Justiça Social.


Este artigo foi redigido em fevereiro de 1995 e publicado originalmente no livro Em torno da Jurisdição, de Geraldo Prado. A obra em questão é uma coletânea de textos, votos e artigos produzidos pelo autor entre 1995 e 2010.

PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 157-168


Notas e Referências:

BINDER, Alberto. Introdução ao Direito Processual Penal, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2003.

DAMASKA, Mirjan. Las Caras de La Justicia y El Poder del Estado: análisis comparado del proceso legal.  Editorial Jurídica de Chile, Santiago, 2000.

GÖSSEL, Karl Heinz. La Defensa en El Estado de Derecho y las limitaciones al Defensor, em El Derecho Procesal Penal en El Estado de Derecho, Tomo 1, Buenos Aires, Rubinzal, 2007.

ROXIN, Claus. Presente y futuro de la defensa en el proceso penal del Estado de Derecho, in Pasado, presente y futuro del Derecho Procesal Penal, Rubinzal, Buenos Aires, 2004.

[1] Leis nº 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/08.

[2] O fato de o processo penal brasileiro ser orientado pela presunção de inocência, como disciplina o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República responde sem delongas à questão óbvia: se há alguma dúvida ao fi m da instrução probatória, esta se resolve em favor do acusado, dispensando-se qualquer outra atividade probatória que, para reverter este quadro, precisaria estar comprometida com a tese acusatória.

[3] La Defensa en El Estado de Derecho y las limitaciones al Defensor, em El Derecho Procesal Penal en El Estado de Derecho, Tomo 1, Buenos Aires, Rubinzal, 2007, p. 61.

[4] Extraída do sítio eletrônico da AMB em 01 de agosto de 2010: h[ p://www.amb.com.br/index. asp?secao=mostranoticia&mat_id=21103.

[5] Introdução ao Direito Processual Penal, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2003.

[6] Las Caras de La Justicia y El Poder del Estado: análisis comparado del proceso legal.  Editorial Jurídica de Chile, Santiago, 2000.

[7] Op. cit., p. 62.

[8] Presente y futuro de la defensa en el proceso penal del Estado de Derecho, in Pasado, presente y futuro del Derecho Procesal Penal, Rubinzal, Buenos Aires, 2004, p. 39.


Sem título-1

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Geraldo Prado é professor da UFRJ e consultor jurídico.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                


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