A decretação da preventiva após o relaxamento da prisão na audiência de custódia é possível?

20/05/2017

Por Rafael de Deus Garcia – 20/05/2017

A audiência de custódia consiste na apresentação pessoal do preso ao juízo logo após sua prisão em flagrante.

Seu objetivo é permitir a avaliação da legalidade do flagrante, devendo o juízo relaxar a prisão quando identificar sua ilegalidade. Não havendo ilegalidades na prisão em flagrante, o juízo passa à análise do eventual cabimento das medidas cautelares diversas da prisão ou se é caso de conversão do flagrante em preventiva.

A audiência de custódia se presta também à análise de outras irregularidades, como abuso de autoridade ou tortura por parte dos agentes condutores do flagrante, se revelando como importante instrumento de controle judicial e externo dos atos policiais ou de outros membros do poder executivo.

Observada a ilegalidade do flagrante, a Constituição Federal prevê seu imediato relaxamento pela autoridade judiciária. O que isso significa?

Trata-se de um reconhecimento judicial de que a prisão em flagrante do cidadão se deu de forma ilegal, indicando que os limites impostos pela lei foram ultrapassados, inclusive, sugerindo a existência de abuso de autoridade. Até aí tudo bem...

E quais as consequências do relaxamento da prisão em flagrante em sede de audiência de custódia?

Nenhuma!

Jogo que segue. O juiz apitou, indicou a falta, mas o jogo segue normalmente, como se nada tivesse acontecido.

É exatamente isso o que tem acontecido todos os dias nas audiências de custódia por todo o país. O juiz relaxa a prisão em flagrante e decreta a prisão preventiva logo em seguida. Com isso, deixa em aberto algumas perguntas: Quais os efeitos jurídicos do reconhecimento judicial da ilegalidade do flagrante? Qual a consequência para o Estado, que efetuou uma prisão ilegal de uma pessoa?

Vamos às seguintes hipóteses:

Após meses de investigação policial, foi possível finalmente identificar a autoria de determinado fato criminoso. A autoridade policial, em vez de requerer um mandado de prisão à autoridade judicial, designou seus agentes para efetuar seu flagrante.

Levado à audiência de custódia (que mais parece audiência de convalidação), o juiz reconhece a ilegalidade da prisão em flagrante e decreta a preventiva do indiciado! Novamente, pergunto: Que consequência há para a ilegalidade reconhecida? Pois bem, nenhuma.

Em outra situação, a prisão em flagrante em si se deu nos conformes legais, porém, durou extensos 7 dias sem que um juiz tenha apreciado sua legalidade. Levado finalmente à audiência de custódia (ou seria de desamparo), o juiz relaxa a prisão em flagrante e decreta a preventiva. O que temos aí?

Trata-se de efetiva convalidação da ilegalidade estatal. Mais do que isso, transforma-se em letra morta uma garantia fundamental prevista no art. 5º da Constituição Federal.

A competência do juízo da audiência de custódia é condicionada e limitada. Condicionada pelo flagrante realizado - uma vez que a jurisdição específica só é invocada quando há realização de um flagrante - e limitada ao art. 310 do CPP. E não me parece haver aqui algo como um salto triplo carpado hermenêutico.

Vamos ao 310 do Código de Processo Penal:

Art. 310.  Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:   

I - relaxar a prisão ilegal; ou           

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou            

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.           

São, claramente, três as opções: relaxar a prisão ilegal (I), cumprindo a garantia prevista na CF, ou, não havendo ilegalidade do flagrante, converter a prisão em preventiva (II) ou conceder a liberdade provisória (III). Inventa quem entende ser possível conversão de flagrante ilegal em preventiva.

Assim, ao relaxar a prisão em flagrante, não é cabível a discussão sobre eventual cabimento ou não das medidas cautelares. Cabe tão somente a restituição do status de liberdade ao indivíduo que teve suas garantias constitucionais violadas e judicialmente reconhecidas. Sem essa garantia, não há democracia, muito menos liberal. É esse, infelizmente, a mais efetiva forma de obrigar o Estado a cumprir a lei. Que a responsabilidade dessa soltura recaia sobre as autoridades que efetuaram um flagrante ilegal.

Isso quer dizer que o sujeito não possa ser preso em hipótese nenhuma? Não. Óbvio que não. Apenas não pode ser preso pelo juiz da audiência de custódia, que não pode invadir a competência do juiz prevento e decidir sobre outros elementos que estão fora do Auto de Prisão em Flagrante Delito, já declarado ilegal.

Ao juiz prevento, permanece a possibilidade de decretar a preventiva ou as demais medidas cautelares. Até porque a ilegalidade do flagrante não necessariamente invalida as provas obtidas, mas apenas aquelas que foram obtidas com nexo de causalidade com o flagrante declarado ilegal.

A convalidação judicial da ilegalidade policial põe em risco a razão de ser do processo, instrumento de legitimação do poder punitivo estatal. Além disso, inverte o próprio sentido da audiência de custódia, que devia justamente ser o primeiro contato do preso com a justiça e com a Justiça.

Corremos o risco, inclusive, de os requerimentos de mandados de prisão serem substituídos por simples prisões ilegais. Ora, se o efeito é o mesmo, por que não? Até tornaria mais célere o procedimento, diriam alguns.

Aos defensores: quando um juiz relaxar a prisão em flagrante e, em seguida, decretar a preventiva, de forma educada pergunte: quais os efeitos do reconhecimento judicial da ilegalidade? Deixa para o juiz explicar pro preso que o reconhecimento judicial da violação de suas garantias constitucionais não significa nada.


Rafael Garcia. . Rafael de Deus Garcia é Professor de Processo Penal na UFLA. . . .


Imagem Ilustrativa do Post: Fingerprints & Handcuffs // Foto de: NewYork Lawyers // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/133325184@N07/20069611156 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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